domingo, 1 de março de 2015

Ucrânia, um debate por fazer (I)

Qualquer que seja a opinião que se tenha sobre Václav Klaus, será difícil não lhe reconhecer a clareza e o desassombro que sempre coloca no expressar dos seus pontos de vista - a defesa liberdade e da economia de mercado, o repúdio dos venenos do multiculturalismo e do globalismo universalista, a recusa do consequencialismo neocon do "fim da história" ou o combate ao ecologismo delirante. Num tempo em que o "politicamente correcto" reina, inclusive em sedes que se reclamam adeptas do conservadorismo (quando não do libertarianismo...), o afrontar o pensamento único vigente impõe com frequência um preço pessoal elevado: o isolamento e, pior, o esquecimento advindo da supressão/ocultação da opinião dissidente. A meu ver, "A Contra-Corrente" seria um título que se ajustaria a umas eventuais memórias que entenda vir a escrever (leia-se, por exemplo, esta entrevista).

Václav Klaus
Klaus - talvez o principal artífice, a seguir à "Revolução de Veludo", do quadro institucional pós-comunista na antiga federação da Checoslováquia, da privatização em massa de uma economia estatizada onde se soube evitar a emergência de clãs oligarcas, e da separação, negociada e pacífica (incluindo a moeda), entre as duas nações que a compunham - é agora ainda mais ostracizado devido à leitura que faz dos acontecimentos na Ucrânia. Tendo terminado o seu segundo mandato presidencial em Março de 2013, Klaus fundou entretanto um Instituto através do qual, acompanhado nomeadamente pelo seu antigo chefe de gabinete, Jiří Weigl, vai mantendo um repositório das suas intervenções. É desse repositório, que escolhi um texto co-assinado por Klaus e Wegl, publicado em 15 de Abril de 2014, cujo título - Let's start a real Ukrainian debate ("Iniciemos um debate a sério sobre a Ucrânia") - não escondia ao que vinha. Passados mais de dez meses sobre a sua publicação, o debate para que apelava o texto não aconteceu. Para a esmagadora maioria da opinião publicada entre nós, como no Ocidente em geral, não só perdura o maniqueísmo dos "bons" contra os "maus" como, de então para cá, ele se acentuou. Como ainda ontem voltou a suceder com uma nova "prova" (mas afinal eram ainda necessárias mais?) da alegada malignidade do Kremlin. Deste modo, cremos que o texto mantém toda a actualidade. O debate sobre a Ucrânia continua por fazer.

Tratando-se de um texto algo longo, iremos publicá-lo por partes. A primeira tem por finalidade dar um enquadramento histórico sumário do espaço geográfico ucraniano e relembrar que as linhas de demarcação conhecidas por fronteiras têm, as mais das vezes, muito de arbitrário e volátil, situação que o checo Klaus, casado com uma eslovaca, conhece aliás particularmente bem.
15 de Abril de 2014
Por Václav Klaus e Jiří Weigl


Parte I: Introdução - A herança difícil do passado

O estado ucraniano de hoje é um triste resultado das tentativas de Estaline para misturar nações e fronteiras, perturbar laços históricos naturais e criar um novo homem soviético transformando nações originais em meros resíduos étnicos e remanescências históricas. Ter isto em consideração é o ponto de partida do nosso pensamento, algo que infelizmente está em falta nos debates políticos de hoje.
A cacofonia de declarações e comentários sobre os desenvolvimentos recentes na Ucrânia faz perder o essencial da questão: que o primeiro e principal contributo para a dramática situação actual que lá se vive é o óbvio fracasso político, económico e social da Ucrânia enquanto estado independente. Este fracasso, a nosso ver, foi causado pelos seguintes factores:
  1. A Ucrânia, tal como a conhecemos hoje, não tem tradição histórica de configuração estatal, e em mais de vinte anos da sua existência o país não conseguiu criar um estado que fosse aceite pela generalidade da sua população. O estado não nasceu dos esforços dos seus habitantes para conquistar a autodeterminação e a soberania. Surgiu da dissolução da União Soviética pela sua liderança política, e da emancipação das artificiais repúblicas soviéticas, criadas por Moscovo nas suas então fronteiras válidas.

  2. O sentimento anti-Moscovo da população, genericamente passiva de há muito, foi agravado pela perestroika de Gorbatchev e pelos seus catastróficos resultados. A nomenklatura do partido soviético local também temia as políticas de Yeltsin que visaram esmagar o antigo sistema.

  3. Nos inícios da sua independência, a Ucrânia funcionava sob a liderança da elite soviética de expressão russa da parte oriental do país como se tratasse de uma espécie de estado russo "B", parte do vasto espaço pós-soviético com um enorme potencial. Pelo menos no papel: 52 milhões de pessoas (o maior a seguir à Rússia), a base industrial no Donbass, o maior potencial agrícola do continente europeu, os portos chave do Mar Negro, a Crimeia, uma elite relativamente bem-educada, e a Europa central às suas portas.

  4. O novo estado emergiu de uma parcela administrativa, essencialmente artificial, da União Soviética totalitária, que queria mostrar ao mundo como a questão nacional podia ser resolvida de uma vez por todas através da substituição das nações individuais pelo "povo soviético". As áreas russas e russificadas do leste e do sul da Ucrânia (com 300 anos de história russa de herança) foram artificialmente ligadas às áreas que originalmente pertenceram à Galícia polaca e à Ruténia subcarpática, conquistadas por Estaline após a II Guerra Mundial, terras que nunca haviam pertencido a nenhum dos antigos estados eslavos do Leste.

  5. O estado independente ucraniano não existia antes de 1991, a menos que consideremos como tal o breve período de guerra civil após a revolução de Outubro de 1917, quando as tentativas frustradas de independência da Ucrânia contaram com figuras tão controversas como as do general Skoropadsky, dos cossacos Machno e Petliura, ou de Stepan Bandera na II Guerra Mundial. O seu legado (anti-semitismo, afinidade com os nazis alemães) é considerado muito controverso no exterior da Ucrânia ocidental nacionalista.

  6. As tradições históricas mais antigas favorecem laços fortes com a Rússia - o período do Rus de Kiev, a aceitação do cristianismo ortodoxo, ou a tradição dos cossacos de Zaporozhian que lutaram contra os turcos e os polacos e trouxeram a Ucrânia daquele tempo para a Rússia czarista. A experiência comum russo-ucraniana dos tempos soviéticos assim como a da II Guerra Mundial, criaram fortes laços humanos, sociais, económicos e políticos que não podem ser facilmente substituídos.

  7. Os mais de vinte anos de independência que se seguiram, não foram suficientes para criar uma identidade ucraniana comum e convencer o povo desta terra muito heterogénea que a Ucrânia independente é a formação social certa, que preenche as suas aspirações nacionais. Essa ambição é observada especialmente entre os ucranianos étnicos que vivem no oeste (Galícia, Volínia) que acentuam a experiência trágica da era soviética (deportações, gulags, fome), que nutrem sentimentos anti-russos e desejam construir um estado-nação ucraniano. A tese de um "segundo" estado russo, seguida pelos anteriores presidentes Kravchuk e Kuchma, é-lhes inaceitável. Não é por acaso que esta parte ocidental da Ucrânia, atrasada e débil, foi a força motriz por trás da Revolução Laranja de 2004, bem como dos protestos da Maidan em 2014.
Os russos da Ucrânia - membros de uma grande nação cultural, outrora dominante em toda a região - não partilham nem podem partilhar as ambições nacionalistas dos ucranianos ocidentais. O rompimento dos laços estreitos com a Rússia, hoje em geral mais rica, mais bem-sucedida e ordeira, é-lhes impensável. Eles não vêem a era soviética como uma ocupação por uma potência estrangeira; situam-se a si próprios entre os vencedores da II Guerra Mundial, não como suas vítimas. Aos seus olhos, os simpatizantes de Bandera são traidores e fascistas pelo que um estado construído sobre um tal legado é inaceitável. Como os russos, desconfiam do Ocidente e não querem fazer parte de blocos que visem confrontar a Rússia.


A russofobia militante dos nacionalistas ocidentais ucranianos é-lhes insultuosa e ameaçadora. Devido à tradição soviética, esta parte da população de há muito que era indiferente às questões nacionais. Todavia, os desenvolvimentos a que temos assistido tornaram este grupo mais consciente dos sentimentos nacionais e o sentimento entre eles é cada vez mais antagonístico a este respeito.

Depois de vinte anos de independência, a Ucrânia é um país dividido, no limiar da bancarrota económica. É o lar de duas nações com diferentes e provavelmente antagónicas visões do futuro, cada vez mais separadas entre si a cada dia que passa. As duas nações olham para o mundo exterior com expectativas irrealistas - uma para o Ocidente, a outra para a Rússia.

A Ucrânia, na sua forma actual, poderia vir a ser salvaguardada por várias décadas de desenvolvimento pacífico com uma política externa modesta e sofisticada, respeitando a posição geopolítica do país e melhorando gradualmente a sua economia e os padrões de vida. Nada disso estava escrito nas estrelas. As tentativas de mudança radical representam uma ameaça fundamental num país tão frágil, heterogéneo e politicamente sensível. Infelizmente é isto que está a acontecer na Ucrânia de hoje, com todos os riscos que acarreta para a Europa e para o mundo.
(Continua aqui)

1 comentário:

LV disse...

Caro Eduardo,

Que oportuno caminho nos abre esta sua tradução. Para, no espaço da blogosfera interessada e crítica, se poderem colocar os problemas em contexto, abrindo visões e interpretações mais livres. Libertas de um sufocante facciosismo, tão útil para as verdades oficiais de consumo imediato.
Basta que se contemplem os alinhamentos dos principais meios de comunicação de massas para compreender a necessidade destes esforços.

Venha a próxima parte.

Saudações,
LV