sábado, 20 de agosto de 2011

Da hermenêutica cavaquista

Constitucionalizar uma variável endógena como o défice orçamental – isto é, uma variável não directamente controlada pelas autoridades – é teoricamente muito estranho. Reflecte uma enorme desconfiança dos decisores políticos em relação à sua própria capacidade de conduzir políticas orçamentais correctas.
-- Cavaco Silva, hoje, no Facebook
Décadas de reiteradas mistificações provocaram em muitos uma verdadeira impermeabilização à racionalidade e à verdade histórica. Por exemplo, na opinião publicada portuguesa, persiste o mito de que terá sido a  "desregulamentação", e com ela, a emergência dessa, tão tenebrosa como inexistente coisa - o neoliberalismo (?!) -, que provocou a grande crise de 2008 que se vem prolongando até hoje. Quando vejo o "senador" Mário Soares repetir essa mentira (admitamos, vá lá, por ignorância) apetece-me pespegar-lhe com isto (fonte: The Economist):


tabela que ilustra a evolução do peso da despesa pública no PIB em vários paises da OCDE. "It can't go on" (Isto [o crescente peso da despesa pública no PIB] não pode continuar). Para Portugal veja-se, por exemplo, o Quadro I deste documento.


Cavaco Silva é um adepto dos "multiplicadores" keynesianos, como a sua tese de doutoramento já amplamente demonstrava. Ele acredita que com o adequado mix de políticas "correctas", é possível "navegar" no meio da turbulência, sem perder o rumo (lembram-se?). Se alguém, alguma vez, teve dúvidas disso, ou seja, que Cavaco não é hoje nem foi ontem um liberal, então nunca percebeu Cavaco. Por outro lado, e ao contrário do seu amigo Victor, foi também um estudioso atento, e até mesmo teorizador, das "regiões monetárias óptimas" de Mundell, razão pela qual as questões dos défices externos - ainda que expressos na mesma unidade monetária da "região" -, sempre foram para Cavaco um factor restritivo ao pleno funcionamento dos supraditos "multiplicadores" (ao contrário do que pensava o amigo Victor).

Por isso, em caso de recessão económica, e não havendo como há a fortíssima restrição para que o endividamento externo nos arrastou, a actuação tecnicamente adequada (Cavaco chamar-lhe-ia "correcta") seria apenas deixar o défice orçamental subir (ou, em caso remoto, o superavit diminuir) pelo simples facto de as receitas fiscais diminuírem automaticamente. A outra componente da "receita" da vulgata keynesiana - a subida da despesa pública para compensar uma retracção do consumo privado - não seria julgada "correcta" por Cavaco dado a circunstância de sobreendividamento. Já o accionar o "corte" da despesa pública, em plena recessão, seria considerado um erro grave, uma heresia (apesar das lições da recessão de 1920-21 e dos cortes draconianos de levados a cabo por Harding).

Em resumo, não há nenhuma surpresa na declaração de Cavaco. O competente economista keynesiano não pode aceitar que qualquer país se autolimite quanto às prescrições disponíveis para o tratamento das "doenças" que num dado momento afectem os países. Por isso se manifesta contra esta ideia alemã. É o professor keynesiano de finanças que fala.

Eu próprio sou muito céptico (tal como Tavares Moreira) quanto à efectiva eficácia de uma disposição constitucional deste tipo. Provavelmente seria apenas mais uma norma para não cumprir, a juntar a todas as outras já existentes que não são cumpridas pelo próprio Estado. Não obstante, a inscrição de uma disposição que limite constitucionalmente o limite de endividamento (em % do PIB, por exemplo) ou até mesmo a obrigatoriedade de se observarem orçamentos equilibrados, seria sempre mais uma incomodidade que os tais "decisores políticos" teriam que tornear.

2 comentários:

Anónimo disse...

A existência da medida é benéfica por várias razões.


-É um Rio Rubicão. Uma parede. Baixa. Mas é uma parede.
Fica-se logo a saber que respeito merecem os políticos
-É um aviso publico.
-Direcciona os assuntos e notícias a discutir pelas pessoas para as questões correctas.

Anónimo disse...

Desde há muito que alimento a desconfiança de que a maioria dos políticos que se candidatam a administrar o país nunca administraram sequer um condomínio com duas ou três dezenas de fracções. Deixavam-se logo de caganças de variáveis endógenas...
Cumprimentos
Jorge Pacheco de Oliveira