quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Lições de Paris

Do mesmo modo que, agora que os preços do petróleo não param de afundar, não surpreende que surjam vozes a defender o aumento dos impostos sobre os combustíveis ("porque não seria doloroso"), parece-me evidente que o resultado último do obsceno e intolerável ataque terrorista à Charlie Hebdo consistirá, em nome da "nossa segurança", numa ainda maior redução da liberdade e privacidade de todos. Como Jonathan Turley escreveu no Washington Post, "a maior ameaça à liberdade de expressão provém não do terrorismo mas dos governos" (atente-se na evolução do Índice de Liberdade de Imprensa, nomeadamente, nos EUA, em França ou no Reino Unido.)

As acções têm consequências, sendo que estas últimas são com frequência não-intencionadas e tantas vezes contraproducentes relativamente aos objectivos anunciados pelos governos que as iniciaram. Com a autoridade de alguém que há bem mais de 40 anos chama a atenção para este facto, o texto de Ron Paul que achei por bem partilhar (minha tradução) merece a nossa reflexão.

12 de Janeiro de 2015
Por Ron Paul

Ron Paul
Após o trágico tiroteio numa revista de índole provocatória em Paris na passada semana salientei, atentas as posições francesas na política externa, que é necessário considerar o blowback [efeito de bumerangue não previsível - NT] como um factor. Aqueles que não compreendem o blowback lançaram-me a ridícula acusação de estar a desculpar o ataque ou mesmo a culpar as vítimas. O que é um absurdo, uma vez que abomino a iniciação da força para além de que a polícia não culpa as vítimas quando investiga o motivo de um criminoso.

Os media convencionais imediatamente decidiram que o tiroteio foi um ataque à liberdade de expressão. Muitos nos EUA preferiram esta versão de "eles odeiam-nos por causa das nossas liberdades", a afirmação proferida pelo presidente Bush após o 11 de Setembro. Eles expressaram solidariedade para com os franceses e prometeram lutar pela liberdade de expressão. Mas não repararam essas pessoas que a Primeira Emenda é rotineiramente violada pelo governo dos EUA? O presidente Barack Obama fez mais vezes uso da Lei de Espionagem [de 1917 - NT] que todas as administrações anteriores no seu conjunto para silenciar e encarcerar os denunciantes. Onde estão os protestos? Onde estão os manifestantes a exigir a libertação de John Kiriakou, que denunciou a utilização pela CIA do waterboarding [simulação de afogamento - NT] e de outras formas de tortura? O denunciante foi preso enquanto que os torturadores não serão processados. Protestos? Nenhum.


A encenação da "defesa da liberdade"
Se o extremismo islâmico está em ascensão, os governos americano e francês são, pelo menos parcialmente, culpados. De acordo com as notícias, os dois atiradores de Paris tinham alegadamente passado o Verão na Síria a lutar ao lado dos rebeldes que procuram derrubar o presidente sírio Assad. Terão também recrutado jovens franceses muçulmanos para ir para a Síria e combater Assad. Mas a França e os Estados Unidos gastaram quase quatro anos a treinar e equipar combatentes estrangeiros para se infiltrarem na Síria e derrubar Assad! Por outras palavras, e relativamente à Síria, os dois assassinos de Paris estavam do "nosso" lado e podem até mesmo ter usado armas francesas ou americanas enquanto lá lutavam.

Começando com o Afeganistão nos anos 1980, os EUA e os seus aliados radicalizaram deliberadamente combatentes muçulmanos na esperança de que se limitassem, de forma estrita, a combater apenas aqueles que lhes fossem mandados lutar. Aprendemos com o 11 de Setembro que por vezes voltam para nos combater. Os franceses aprenderam a mesma coisa na semana passada. Será que irão tomar melhores decisões conhecendo o blowback de uma política externa de tão alto risco? É pouco provável pois recusam-se a tê-lo em consideração. Preferem acreditar na fantasia de que eles nos atacam porque odeiam as nossas liberdades, ou que não conseguem tolerar a nossa liberdade de expressão.

Talvez que uma forma de nos tornarmos a todos mais seguros passe pelos EUA e seus aliados deixarem de apoiar estes extremistas.

Uma outra lição a retirar do ataque é que o estado de vigilância que surgiu do 11 de Setembro é muito bom a seguir, escutar e a assediar todos nós, mas não é muito bom a parar os terroristas. Soubemos que os dois suspeitos do ataque há muito que estavam sob vigilância dos serviços de inteligência franceses e dos EUA. Alegadamente, tinham sido colocados na lista americana de interdição de voo e pelo menos um deles fora na realidade condenado em 2008 ao tentar viajar para o Iraque para lutar contra a ocupação americana. De acordo com a CNN, os dois suspeitos viajaram para o Iémen em 2011 para receber treino militar com a Al-Qaeda. Eram portanto indivíduos conhecidos por terem associações terroristas directas. Quantos sinais vermelhos serão necessários para que se tomem medidas? Há quanto tempo sabiam os serviços de inteligência franceses e dos EUA deles sem que fizessem nada, e porquê?

As acções de política externa têm consequências. As políticas externas agressivas dos Estados Unidos e dos seus aliados no Médio Oriente radicalizaram milhares e tornaram-nos menos seguros. O blowback é real queiram alguns reconhecê-lo ou não. Não há garantias de segurança, mas apenas uma política de não-intervenção poderá reduzir o risco de outro ataque.

4 comentários:

LV disse...

Eduardo,

Excelente proposta.
Tendo por aqui assumido (em sintonia com a imagem e título publicados n´O insurgente) uma posição contra o atentado, em particular no que ele tem de mais complexo de discutir coerentemente, este seu texto dá o mote para partilhar o seguinte comentário.

Efectivamente, este tipo de eventos acabam por evidenciar uma contradição importante nas nossas sociedades democráticas de controlo centralizado. Se tomo a posição de não aceitar que, através da violência, se possa calar o pensamento, a palavra e a acção de outrem (e em torno disso, pareceu-me, gerou-se um consenso muito alargado e há muito não visto), afasto-me, logo de seguida, dessa maioria.
E porquê? Justamente, porque é em torno deste tipo de dinâmicas, é a partir destas reacções provocadas (mesmo as mais sinceras, note-se) que se revelam os verdadeiros impulsos totalitários e concentracionários. De captura do sentido e alcance da opinião e da acção individual e colectiva. Essa captura esgota as alternativas, nega as divergências e as possibilidades num presente unificado e, por conseguinte, violento. Esta dinâmica é a energia para concretização da expressão totalitária do dever-pensar, do dever-agir, do dever-sentir. O que é, para mim, aterrador.
Veja-se, de um lado, o mar de gente (em vários pontos do globo e nas mais variadas circunstâncias) que manifesta o seu repúdio ao episódio hediondo de Paris. E, de outro, os mobilizadores (sejam personagens públicos, jornalistas ou políticos) que aproveitam estas respostas para legitimarem, de modo público mas nem sempre compreendido, posições que ferem ou aniquilam os mais elementares sementes do pensamento e das acções livres.
É este mecanismo de acção e resposta (reproduzido historicamente) que importa evidenciar. As mesmas pessoas que se mobilizaram no repúdio aos acontecimentos de 7 de Janeiro devem, igualmente, tomar uma posição face à mobilização dos meios coercivos dos estados para completar a destruição dos vestígios (já escassos) de Liberdade. Ou seja, na resposta a uma situação complexa que resulta (tenhamos a coragem de Ron Paul em reconhecê-lo) de uma causa, de um mandato que, na essência subverte as ideias publicitadas como legitimadoras das sociedades ocidentais, perturba qualquer hipótese de convivência e cooperação entre pessoas e povos. Vejam-se as mobilizações de Cameron caucionando as autoridades para tudo poderem ver, ler e ouvir. Vejam-se as forças militares francesas a aumentar os contingentes na “luta” pela liberdade que é a guerra na Síria. Ou as contraditórias condenações de outras opiniões (humorísticas ou outras) públicas em França.
Estou em crer que essa maioria, tomando consciência deste "catch-22" não ficará indiferente. Reconhecendo esta espécie de reflexo condicionado que conduz, não a um beco sem saída, mas à contradição mais destruidora e maligna (porque deixa a violência como única saída) deixa as pessoas diferentes?
Esta reflexão, por mim necessária, tem um potencial não despiciendo para uma reconfiguração da arquitectura e representação de posições políticas. No continente europeu ou nos EUA, pelo menos.
Estas maiorias devem considerar este dilema. Demoradamente. É que o lamento posterior não alivia a consciência.

Saudações,
LV

Eduardo Freitas disse...

LV,

Um dos livros mais marcantes que li, e a que amiúde regresso, é Chrisis and Leviathan de Robert Higgs. O caso para o pessimismo quanto à evolução de Liberdade parece-me desgraçadamente sólido. Numa formulação recente: “You never want a serious crisis to go to waste, and what I mean by that is an opportunity to do things that you didn’t think you could do before.»

Este mecanismo diabólico tem sido tão eficaz que custa a crer que seja apenas utilizado na “boa” gestão oportunística de acontecimentos intempestivos. Como acreditar que não se ceda à tentação de (também) fabricar eventos de “elevado potencial” conducentes a uma ainda maior centralização do poder? E como afastar testemunhos como, por exemplo, o de Sibel Edmonds que, após esgotar todos os meios legais de apresentar as suas denúncias, é chancelada de Classified Woman e tem que recorrer à ficção para contar a verdade como a conheceu?

Não estou com isto a afirmar, sequer a sugerir, que em Paris tenha ocorrido mais um exemplo de uma operação de “falsa bandeira”. Não consigo todavia deixar de colocar a questão: cui bono? Ora, em termos objectivos, e independentemente da esmagadora e genuína repulsa das pessoas de bem provocada por tão obsceno acto, quem ganha é o gargantuesco estado de vigilância. Isto parece-me indisputável.

Do relativismo moral envolvido, já o LV tratou com muito melhor eloquência do que eu o conseguiria fazer.

Saudações,

Eduardo Freitas

Anónimo disse...

Não foi Ron Paul que proferiu uma boutade politicamente correcta sobre os atentados de Paris dizendo que " nada têm a ver com o terrorismo islâmico" ? no melhor pano cai a nódoa.

Eduardo Freitas disse...

Caro Anónimo,

Não, não foi.

Saudações,

Eduardo Freitas