sexta-feira, 27 de março de 2015

Em defesa de um padrão monetário livre - Parte VI

Litigâncias e jurisdições




Publica-se aqui a sexta e última parte da série de artigos que Ken Griffith tem vindo a publicar no jornal do Gold Standard Institute.
A tradução e a edição dos artigos é da minha responsabilidade e foi autorizada pelo próprio autor.
A quinta parte pode ser lida aqui.

"Em defesa do padrão-ouro livre” – Ken Griffith, "The Gold Standard Institute Journal #47", Novembro de 2014

Resolução de disputas e jurisdição para o Padrão-Ouro livre

Esta é a última parte da série de artigos que apresentam a via para a criação de um padrão ouro livre à escala global, usando apenas a iniciativa privada e o mercado livre. Neste artigo serão apresentados os requisitos para um sistema de resolução de disputas e algumas jurisdições ideiais para a domiciliação da “Sociedade para o Padrão-Ouro”.
Na primeira parte, indiquei sete elementos necessários para estabelecer um padrão monetário descentralizado e apolítico:
- domicílio em jurisdições receptivas ao ouro monetário
- sistema de pagamentos digitais em ouro e procedimentos contabilísticos
- modelos contratuais e unidade padrão
- rede de Agentes
- plataforma electrónica de transacção
- sistemas de resolução de disputas
- modelo viável de regulação

terça-feira, 24 de março de 2015

Em defesa, também moral, dos combustíveis fósseis

Mesmo quando não se concorda integralmente com Matt Ridley, é sempre um prazer lê-lo. Erudição, fluência narrativa e uma insuperável elegância são traços que o caracterizam. A acrescentar também, evidentemente, o optimismo "racional" que o próprio reivindica num tempo de onde ele me parece arredado e que eu próprio, devo confessar, nem sempre consigo adoptar. No texto que constituí a minha proposta de hoje, Ridley não foge ao seu registo habitual e - que diferença, caros leitores, para os alarmistas de profissão e conveniência! - constrói o caso que justifica o título do post (que mais não é que uma paráfrase do do seu artigo) com sistemático rigor de onde não está ausente um saudável "cepticismo metodológico" ou, pelo menos, a humildade de quem sabe poder não ter razão. Uma referência adicional para sublinhar a importância que também atribuo ao recente livro de Alex Epstein - The Moral Case For Fossil Fuels - que Ridley menciona e que já ocupou durante uns dias a vitrina das leituras aqui no blogue.

Continuação de uma boa semana.

22 de Março de 2015
Por Matt Ridley


Nos anos recentes, o movimento ambientalista avançou três argumentos para justificar o abandono dos combustíveis fósseis: (1) que, em qualquer caso, dentro em breve se esgotarão; (2) que as fontes alternativas de energia irão arredá-los, pelo preço, do mercado; e (3) que não podemos arcar com as consequências da sua queima para o clima.

Matt Ridley
Nos dias que correm, nenhum dos três argumentos parece gozar de boa saúde. Na verdade, uma avaliação mais realista da nossa energia e situação ambiental sugere que, nas próximas décadas, iremos continuar a depender esmagadoramente dos combustíveis fósseis que têm contribuído de forma tão dramática para a prosperidade e progresso do mundo.

Em 2013, cerca de 87% da energia que o mundo consumiu proveio dos combustíveis fósseis, um número que, de forma notável, se manteve inalterado face a 10 anos antes. E que se divide, aproximadamente, em três categorias de combustível e três categorias de utilização: o petróleo, usado principalmente nos transportes, o gás no aquecimento e o carvão na geração de electricidade.

Ao longo deste período, o volume global de consumo de combustíveis fósseis aumentou dramaticamente, mas segundo uma tendência ambientalmente encorajadora: uma quantidade cada vez menor de emissões de dióxido de carbono por unidade de energia produzida. O maior contributo para a descarbonização do sistema energético tem vindo da substituição do carvão, de alto teor de carbono, pelo gás, de baixas emissões de carbono, na produção de electricidade.

A nível global, as fontes de energia renováveis como a eólica e a solar quase nada contribuíram para a redução nas emissões de carbono, e o seu modesto crescimento limitou-se a compensar o declínio da energia nuclear que não produz emissões. (O leitor deve saber que eu tenho interesses indirectos no carvão pelo facto de ser proprietário de terras no norte da Inglaterra em que se faz extracção do minério, mas, não obstante, eu aplaudo a substituição do carvão por gás nos anos recentes.)

segunda-feira, 23 de março de 2015

Mercado e regulação estatal - lições a tirar da guerra dos browsers

Confirmando vários rumores que há algum tempo circulavam, a Microsoft oficializou esta semana o processo de descontinuação (phasing out) da mítica marca Internet Explorer e a decisão tomada de rumar noutras direcções embarcando num projecto significativamente designado de "Espartano". Foi este o pretexto para revisitar a épica guerra dos browsers (navegadores na Internet); recordar a intervenção estatal e judicial que, como sempre, pretendeu ditar vendedores e vencidos em nome da "sã concorrência"; e, por fim, e mais importante, retirar as riquíssimas lições do sucedido. É este o foco do artigo de Jeffrey Tucker que hoje vos proponho.

Mas primeiro um breve interlúdio para contextualizar a minha leitura do sucedido. Na faculdade, tivera uma cadeira introdutória de Informática - de papel e lápis. Uns bons anos depois, num momento de maior desafogo financeiro, comprei um ZX Spectrum com o qual, para além de jogar (muito), me divertia a fazer umas habilidades com a sua versão de Basic (pouco). O meu primeiro PC doméstico foi adquirido em 1991 (mediante empréstimo bancário). Juntamente com a impressora, a coisa importou em 500 contos, à volta de 5500 euros a preços de hoje! Com ele viria pouco depois o primeiro Windows a sério - o 3.1. Dois anos antes, tivera contacto profissional com o salto gigantesco que representava o passar da estação de trabalho individual para um ambiente colaborativo assente numa rede (com partilha de impressoras!) e tomo contacto com a extraordinária beleza e facilidade de utilização dos (porém caríssimos) Apple Macintosh. Desde então, que o portátil passou a fazer parte da minha bagagem permanente. Depois, creio que foi em 1995, durante as férias de Verão, ao "digerir" um breve manual, que finalmente compreendi o poder da internet - e o sentido de urgência que Bill Gates tentava então incutir em toda a Microsoft - quando me apercebi da extraordinária facilidade em criar páginas web que a linguagem HTML permitia. Foi uma autêntica epifania. "A rede era o computador", proclamava-se na Sun Microsystems. Foi mais ao menos por essa altura que me recordo de ler nos jornais o caso da guerra dos browsers a que alude o artigo de Jeffrey Tucker. Recordo-me de ter achado um absurdo a acusação de monopólio que se imputava à Microsoft. Já tivera até então experiência bastante para perceber, que máquinas e software não só não paravam de melhorar, em qualidade e desempenho, como o seu preço (real e nominal) tinha descido vertiginosamente (e assim tem continuado até hoje). Se algo caracterizava a indústria era a sua duríssima competitividade em benefício dos consumidores, traduzida na extraordinária ascensão e queda de protagonistas (Wang, Digital, IBM, etc.). Só bem mais tarde viria a compreender a lenda criada à volta das leis "antitrust" da época "progressiva" nos EUA e o posterior surgimento do suporte teórico "justificativo" do intervencionismo regulatório estatal cujo orwelliano lema se pode resumir em algo como: "A melhor defesa da concorrência é a sua eliminação". A guerra dos browsers, e o apelo que então foi dirigido ao poder (por competidores directos e prospectivos, auxiliados pela histeria mediática dos media convencionais), é um exemplo eloquente da verdadeira utilidade da regulação estatal: servir compadrios. A inevitável consequência é a destruição, ou pelo menos, o sério prejuízo da criatividade e pujança do mercado. Uma última nota para voltar a sublinhar, aspecto que não é endereçado no artigo, que o sector das TIC há bem mais de 30 anos que demonstra à evidência a falácia do papão deflacionista.

20 de Março de 2015
Por Jeffrey Tucker


Sem muito alarde, a Microsoft anunciou este mês que irá descontinuar progressivamente o seu muito conhecido navegador web - o Internet Explorer (IE). Nas notícias, o foco principal tem incidido nas razões que o levaram a ser suplantado pelo Chrome, Safari e Firefox, entre muitos outros navegadores existentes no mercado. Além disso, as aplicações móveis estão a dar passos gigantescos na navegação web em geral.

Imagem daqui

Isto é de facto verdade. Nas plataformas com que lidei, assisti à forma como o IE passou de uma quota de utilização dos 95 para os 20%, um crash espectacular e bem merecido, do pináculo em que se tinha instalado, que demorou uns bons 20 anos. A Microsoft nunca foi capaz de corrigir os seus infindáveis problemas de segurança. Cada nova versão, da 1 à 10, parecia corrigir alguns problemas da versão anterior ao mesmo tempo que introduzia outros mais.

Não foi inteiramente culpa da Microsoft: a condição de navegador dominante do IE tornou-o num alvo incessantemente submetido aos ataques de todos os criadores de malware no mundo. Mesmo uma equipa de mil programadores da Microsoft foi incapaz de ultrapassar esse problema. Não ajudou que a própria Microsoft estivesse tolhida pela sua gigantesca dimensão e estrutura de gestão burocrática.

sábado, 21 de março de 2015

A mão dura ou a suavidade arrepiante do aço

Realismo intervencionista

Há muito que nem os apaixonados pela "mão macia" da diplomacia se opõem a nada disto. Talvez tenham acompanhado sempre a intenção, mesmo que não a acção propriamente dita destes "falcões".
Veja-se como se justificam, com a simplicidade de uma martelada, as intervenções, os discursos, as sanções que os EUA impõem por esse mundo fora. Até a NATO - como artifício institucional - se desmascara aqui.
Sinto arrepios. E os leitores?

sexta-feira, 20 de março de 2015

A realidade da desdolarização da economia mundial

Mais tarde ou mais cedo, as consequências das acções tomadas tornam-se visíveis mesmo para os mais cépticos. O exorbitante privilégio de que falava De Gaulle está a ceder de forma provavelmente irreversível. Apesar das pressões dos EUA, cresce o número de países europeus que querem ser ser membros fundadores do novel Banco Asiático de Investimento em Infra-estruturas, um concorrente directo de instituições controladas pelos norte-americanos como é o caso do Banco Mundial. Não é coisa de somenos como o artigo que hoje proponho aos leitores sublinha.
18 de Março de 2015
Por Simon Black

O governo dos Estados Unidos acaba de passar da fase "por favor amorzinho, não me deixes" para a das ameaças frustradas e choramingas.

Depois do Reino Unido ter anunciado na semana passada que irá participar na criação, liderada pela China, do novo Banco Asiático de Investimento em Infra-estruturas (AIIB), enquanto membro fundador, Alemanha, França e Itália decidiram ontem [dia 17] seguir-lhe o exemplo.

Bem-vindos ao começo do fim do domínio do dólar norte-americano pois é isso que está a acontecer.

Nas últimas décadas, a América foi a incontestável superpotência global e económica.

Imagem daqui
O mundo inteiro utilizou alegremente o dólar norte-americano, e, consequentemente, o sistema bancário dos Estados Unidos. E, mais importante, o mundo depositou alegremente a sua confiança no governo dos EUA.

Mas há um limite para o grau de irresponsabilidade, imprudência e ameaça que alguém pode representar. Chegará um dia em que um comportamento desses terá consequências para quem o prosseguiu.

Esse tempo chegou agora.

quinta-feira, 19 de março de 2015

Quando havia Deus - Citação do dia (183)

«Quando havia Deus, a força do destino só era aplacável por preces, procissões e arrependimento, tudo conduzindo à resignação. Quando Deus está ausente, usa-se o FMI para identificar a força perversa que produz as vítimas e todos os pretextos são bons para demonizar os que aparecem como a nova força do destino.»

Joaquim Aguiar, A Ilusão do Juro

Relacionado: Governo ignora estudos e lança linha mais cara entre Aveiro e Vilar Formoso

quarta-feira, 18 de março de 2015

Do dever/direito a ser vigiado

Parte cada vez mais significativa do "contrato social" como percebido nos dias que correm. Ou, noutros termos, a decorrência inevitável da aceitação generalizada do propalado princípio segundo o qual "quem não deve não teme".

terça-feira, 17 de março de 2015

Quem de facto combate o Estado Islâmico no terreno

Foram as constantes interferências de ordem externa que transformaram grande parte do Médio Oriente no atoleiro letal que hoje conhecemos. Primeiro, pelo retalhar da história e geografia milenar através da criação de fronteiras totalmente arbitrárias após o fim do império Otomano. Depois, porque o controlo da incrível riqueza em petróleo da zona tudo justificava. Um dos marcos desse intervencionismo foi o golpe que em 1953 depôs o democraticamente eleito Mohammed Mossadegh no Irão e instalou no trono Reza Pahlavi (uma "teoria da conspiração" finalmente reconhecida pela CIA, 60 anos depois). Em 1979, com a fuga do Xá e a instalação de um regime para-teocrático, o Irão passou a ser demonizado, guerreado, ostracizado, e sujeito a pesadas sanções económicas. Com o apoio explícito dos EUA - logístico, militar e de informações - Saddam Hussein atacou o Irão (também com armas químicas que, como a CIA igualmente confirmaria, eram do perfeito conhecimento americano), daí resultando uma guerra que durou oito anos (1980-1988) e causou 400 mil mortos. Com George W. Bush, o Irão foi catalogado como pertencente a um "eixo do mal" que tem persistido até hoje, reforçado com novos membros. Como os neocons nunca esconderam, o Irão é o "grande prémio".

Não deixa portanto de ser irónico que da 2ª guerra do Iraque tenha resultado um fortalecimento de facto da posição estratégica do Irão, ou, talvez melhor, do Islão xiita. Como não deixa de ser do domínio do factual que são os xiitas, e em particular Assad (aqui, numa entrevista recente à RTP), quem de facto tem combatido no terreno essa entidade difusa que dá pelo nome de Estado Islâmico bem como as diversas declinações da Al-Qaeda na região como é o caso da Frente al Nusra. É esta a leitura, lúcida e serena como é habitual, que Pat Buchanan faz da situação actual ao deflectir a retórica tonitruante dos neocons e de Netanyahu, também preocupado com a sua própria sobrevivência no poder em Israel, que tudo estão a fazer para torpedear as negociações em curso com o Irão relativas ao seu programa nuclear.

10 de Março de 2015
Por Patrick J. Buchanan


Patrick J. Buchanan
América, temos um problema.

No sangrento e caótico Médio Oriente, salvo raras excepções como a dos curdos, os nossos amigos ou não conseguem ou não querem combater.

O Exército Livre da Síria claudicou. As forças do movimento Hazm na Síria, armadas pelos Estados Unidos, desmoronaram-se depois de serem alvo da perseguição pela Frente al Nusra. O exército iraquiano, treinado e equipado por nós, fugiu de Mosul em grande debandada até Bagdad. Os turcos poderiam aniquilar o ISIS na Síria, mas não irão combater. A Arábia Saudita e os países árabes do Golfo enviaram zero militares para combater o ISIS. Ficaram-se por um punhado de ataques aéreos.

Consideremos agora o que os nossos velhos inimigos já fizeram e estão a fazer.

Quando já não se acredita nas suas próprias mentiras

Por razões que o comum dos americanos não merece conhecer, Barack Obama decidiu há dias anunciar (mais) uma situação de "emergência nacional". Trata-se agora do "extraordinário risco" que a situação política na Venezuela colocaria à segurança dos EUA. Como seria de esperar, Nicolás Maduro não enjeitou a ocasião para tornar a imputar aos inimigos externos a culpa pelas enormes dificuldades por que passa o país que desgraçadamente (des)governa - Maduro, com o petróleo venezuelano, fez jus a Friedman quanto este afirmava que caso se entregasse a gestão do deserto do Sahara ao governo federal, em cinco anos sobreviria uma escassez de areia...

Perante um pedido de comentário à reacção de Maduro às novas sanções impostas por Obama no decorrer de uma conferência de imprensa no passado dia 11, a porta-voz da secretaria de Estado, Jen Psaki, lendo uma declaração pré-preparada sobre o tema, refere a certa altura sem se rir:
«No que constitui uma política de longa data, os Estados Unidos não apoiam transições políticas concretizadas por meios não constitucionais. As transições políticas devem ser constitucionais, democráticas, pacíficas e legais.»

O leitor que faça a sua própria avaliação e, nomeadamente, que atente na linguagem corporal da porta-voz perante a incredibilidade que tais declarações suscitaram na assistência:


Mike Krieger, que conta a história, assinala o curioso facto de a ele lhe parecer que, ao longo da sua vida, a política externa dos Estados Unidos não tem visado outra coisa que não seja a iniciação de transições políticas concretizadas por meios não constitucionais. Não vejo como não o acompanhar nessa observação, especialmente válida para a América Latina.

sábado, 7 de março de 2015

Reversos de ilusões






Como remate, partilho aqui uma música de uma banda que conheci muito recentemente. E que banda.

"Toda a gente fala, mas só vejo sombras nos seus olhos".

Votos de um excelente fim-de-semana.


quarta-feira, 4 de março de 2015

Ucrânia, um debate por fazer (III - conclusão)

Com este post terminamos a tradução (iniciada aqui e aqui continuada) da declaração política que o Instituto Václav Klau publicou em 15 de Abril do ano transacto a propósito dos acontecimentos na Ucrânia. Àquela data, Yakunovitch, o presidente eleito em funções, tinha fugido do país e já se consumara a secessão (anexação, segundo outros) da Crimeia. Nesta última parte, é visível que os seus autores estão a escrever tendo em especial atenção os reflexos que o desenrolar da crise ucraniana possam provocar na República Checa que, como se refere no texto, se situa na "fronteira simbólica entre o Leste e o Oeste". Não obstante, a nosso ver, essa circunstância em nada afecta a relevância do texto. Há agora oportunidade para questionar os argumentos dos "legalistas" de ocasião que oportunisticamente se esquecem que a actual situação ucraniana resultou ela própria de um putsch (inconstitucional, por força das coisas). Depois, e mais importante, para os checos como para os portugueses, como para todos os europeus que prezam a Liberdade, alerta-se para as tentativas da elite globalista de Bruxelas, em consonância com os interesses estratégicos americanos, para acelerar o processo de unificação, centralização e burocratização fazendo jus àqueles que pensam "que nunca se deve desperdiçar uma crise séria".

Uma continuação de uma boa semana.

(Continuado daqui)
Parte IV: Fundamentalismo legalista e "vida real"

Referindo-se à contínua desintegração da Ucrânia - a separação da Crimeia e a sua incorporação na Rússia, as constantes declarações de todos os tipos de "repúblicas" russas separatistas e as novas exigências de referendos visando a separação de outras partes do leste da Ucrânia -, os comentadores ocidentais apresentam vários argumentos jurídicos asseverando que tais passos estão em contradição com o quadro legal e constitucional da Ucrânia de hoje, e, portanto, são ilegais e inaceitáveis. Também isto tem que ser colocado no contexto adequado, sem tentarmos passar por especialistas em direito ucraniano. Porque a questão não é essa.

Estes argumentos, em grande medida académicos, até podem estar correctos quando se analisa a ilegalidade de alguns dos passos dados pelos separatistas, mas isso é apenas metade da verdade. A vida real está sempre à frente da lei e esta só se ajusta àquela retroactivamente. A realidade alterada induz novas leis e estas, por definição, são igualmente apenas temporárias. A vida real e as necessidades reais costumam encontrar os seus caminhos, e muito raramente as alterações legislativas conseguem acompanhá-los.

Na história recente, houve apenas um caso de uma divisão verdadeiramente constitucional de um estado e que foi legalmente posta em prática - o da federação da Checoslováquia. A desintegração da Jugoslávia, e posteriormente da Sérvia como da União Soviética, foi por natureza caótica. Foi frequente o confronto e a violência, com numerosos faits accomplis. É inútil analisar isso. A maioria dos países modernos, na Europa e no resto do mundo, obteve a sua independência em resultado de uma luta violenta, ignorando a lei da altura. Negar às pessoas esse direito, invocando a ilegalidade do separatismo, é algo de impossível. Se não o reconhecêssemos, teríamos que negar a legalidade dos Estados Unidos ou, por sinal, o nosso próprio estado, que também nasceu contrariando a Constituição do Império Austro-Húngaro em 1918.

A Europa antes da I Guerra Mundial

terça-feira, 3 de março de 2015

Ucrânia, um debate por fazer (II)

Prosseguimos hoje com a publicação da tradução do texto, co-assinado por Václav Klaus e Jiří Weigl, cuja primeira parte foi publicada aqui. Depois de terem proporcionado um enquadramento histórico do espaço geográfico a que corresponde hoje a Ucrânia e dos povos que a habitam - A herança difícil do passado -, os autores dissecam agora as razões que, no seu entender, explicam o insofismável fracasso do estado ucraniano pós-comunista, antes e depois da "Revolução Laranja", à luz das quais devem ser interpretados os acontecimentos recentes. Irão esquissar dois modelos que, no essencial, suportam as duas principais "narrativas" em confronto e acabam por concluir pela imperatividade de evitar que se dêem passos que tornem efectivo o que já muitos designam de Guerra Fria 2.0. (Os realces no texto são os que constam da versão em língua inglesa do artigo.)

(Continuado daqui)
Parte II: a transformação falhada da Ucrânia

Como se explicou acima, a Ucrânia nasceu após a queda do comunismo enquanto estado essencialmente não-histórico, amaldiçoado com um problema de identidade fundamental desde o primeiro dia. Isto foi sempre um impedimento sério ao desenvolvimento do país, situação que permanece até hoje.

A Europa Ocidental e os Estados Unidos, ou melhor, os político dessa parte do mundo, não vêm problemas nesse condicionamento e pensam que tudo o que é preciso é "introduzir a democracia e o estado de direito". Nada aprenderam até agora com o facto de as repetidas tentativas de "exportação da democracia" terem fracassado e que mesmo as duas décadas de apoio ocidental maciço à Bósnia-Herzegovina, artificialmente criada após a desintegração da Jugoslávia, não frutificaram. E isto para já não falar da Primavera Árabe.

Foto daqui

domingo, 1 de março de 2015

Ucrânia, um debate por fazer (I)

Qualquer que seja a opinião que se tenha sobre Václav Klaus, será difícil não lhe reconhecer a clareza e o desassombro que sempre coloca no expressar dos seus pontos de vista - a defesa liberdade e da economia de mercado, o repúdio dos venenos do multiculturalismo e do globalismo universalista, a recusa do consequencialismo neocon do "fim da história" ou o combate ao ecologismo delirante. Num tempo em que o "politicamente correcto" reina, inclusive em sedes que se reclamam adeptas do conservadorismo (quando não do libertarianismo...), o afrontar o pensamento único vigente impõe com frequência um preço pessoal elevado: o isolamento e, pior, o esquecimento advindo da supressão/ocultação da opinião dissidente. A meu ver, "A Contra-Corrente" seria um título que se ajustaria a umas eventuais memórias que entenda vir a escrever (leia-se, por exemplo, esta entrevista).

Václav Klaus
Klaus - talvez o principal artífice, a seguir à "Revolução de Veludo", do quadro institucional pós-comunista na antiga federação da Checoslováquia, da privatização em massa de uma economia estatizada onde se soube evitar a emergência de clãs oligarcas, e da separação, negociada e pacífica (incluindo a moeda), entre as duas nações que a compunham - é agora ainda mais ostracizado devido à leitura que faz dos acontecimentos na Ucrânia. Tendo terminado o seu segundo mandato presidencial em Março de 2013, Klaus fundou entretanto um Instituto através do qual, acompanhado nomeadamente pelo seu antigo chefe de gabinete, Jiří Weigl, vai mantendo um repositório das suas intervenções. É desse repositório, que escolhi um texto co-assinado por Klaus e Wegl, publicado em 15 de Abril de 2014, cujo título - Let's start a real Ukrainian debate ("Iniciemos um debate a sério sobre a Ucrânia") - não escondia ao que vinha. Passados mais de dez meses sobre a sua publicação, o debate para que apelava o texto não aconteceu. Para a esmagadora maioria da opinião publicada entre nós, como no Ocidente em geral, não só perdura o maniqueísmo dos "bons" contra os "maus" como, de então para cá, ele se acentuou. Como ainda ontem voltou a suceder com uma nova "prova" (mas afinal eram ainda necessárias mais?) da alegada malignidade do Kremlin. Deste modo, cremos que o texto mantém toda a actualidade. O debate sobre a Ucrânia continua por fazer.

Tratando-se de um texto algo longo, iremos publicá-lo por partes. A primeira tem por finalidade dar um enquadramento histórico sumário do espaço geográfico ucraniano e relembrar que as linhas de demarcação conhecidas por fronteiras têm, as mais das vezes, muito de arbitrário e volátil, situação que o checo Klaus, casado com uma eslovaca, conhece aliás particularmente bem.
15 de Abril de 2014
Por Václav Klaus e Jiří Weigl


Parte I: Introdução - A herança difícil do passado

O estado ucraniano de hoje é um triste resultado das tentativas de Estaline para misturar nações e fronteiras, perturbar laços históricos naturais e criar um novo homem soviético transformando nações originais em meros resíduos étnicos e remanescências históricas. Ter isto em consideração é o ponto de partida do nosso pensamento, algo que infelizmente está em falta nos debates políticos de hoje.