sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Em defesa de um padrão monetário livre

O dinheiro num mercado livre



Inicia-se hoje a publicação de um conjunto que artigos que Ken Griffith tem vindo a publicar no jornal do Gold Standard Institute. Os diferentes artigos que iremos publicar são dedicados à análise das potencialidades, das dificuldades e soluções para a construção de um novo padrão monetário. A novidade central nesta reflexão, ancorada na experiência e no passado recentes, é a ideia de que esse padrão pode ser implementado pela iniciativa livre dos cidadãos, sem necessidade da sua imposição por parte do estado. Importa sublinhar, especialmente nesta primeira parte, que esta reflexão assenta num conhecimento das necessidades monetárias do mercado, bem como na análise de tentativas recentes para a implementação de um padrão monetário livre.
A tradução e a edição dos artigos é da minha responsabilidade e foi autorizada pelo próprio autor.


"Em defesa do padrão-ouro livre” – Ken Griffith, "The Gold Standard Institute Journal #42", Junho de 2014

Nasci em 1971, três meses depois de Richard Nixon ter emitido uma lei que obrigava ao abandono da ligação entre o dólar e o ouro. Durante toda a minha vida, ouvi defensores do ouro e economistas austríacos lamentarem-se do desaparecimento do padrão-ouro, bem como o clamor de um regresso a ele. O propósito deste artigo é indagar se um novo padrão-ouro pode ser constituído através da iniciativa e acção privadas. A esta meta darei o nome de “padrão-ouro livre”.

Após anos de estudo e reflexão acerca destas matérias, cheguei à conclusão de que o padrão-ouro imposto por um estado e gerido por um banco central não resolveria o problema que enfrentamos relativamente à moeda que usamos. Políticos e dinheiro honesto são como azeite e água – não se misturam. Os políticos e os governadores dos bancos centrais são exímios na desvalorização da moeda, caso os deixemos controlá-la. Não há nenhuma nação que, tendo monopolizado a produção de moeda, esteja a salvo dessa tentação.
Julgo que o único modo de o mundo voltar a ter um verdadeiro padrão-ouro será se ele for alcançado através do livre mercado, sem intervenção estatal.

A primeira tentativa – a era do ouro digital

O leitor talvez não saiba, mas existiu um breve período (1996 até 2008) em que existiu um sistema monetário fundado no ouro. Liderado pela empresa e-gold.com, a “economia do ouro” através da internet cresceu ao ponto de representar 80 toneladas de ouro/ano de transacções entre utilizadores. No seu ponto alto, existiam sete entidades digitais emissoras e uma rede internacional de agentes e dois milhões de titulares de contas. O ouro digital era a forma mais rápida e barata de mover dinheiro à volta do mundo. O ouro mudava de mãos – como meio de pagamento – numa razão de 78 transacções por utilizador/ano.

Todavia, a era do ouro digital terminou tragicamente. Durante o período de 2006-09, os agentes do departamento do Tesouro americano cessaram a actividade de todas as empresas a operar em território americano. O crime de que foram acusados foi de não terem licenças para a emissão de meios monetários exigidos pelo USA Patriot Act. Algumas dessas empresas tinham requerido as licenças para o exercício de actividade como agentes de serviços monetários, mas estas foram recusadas com a justificação, em pelo menos um caso (1), de que não estavam qualificados para proceder à prestação de serviços monetários.

Ainda assim, houve quem endereçasse ao Tesouro um requerimento para que se reconhecesse o ouro como meio monetário. Mas o Tesouro indeferiu o pedido e, de seguida, notificou essas empresas por não possuirem as licenças necessárias. As directivas europeias acerca da moeda digital eram muito restritivas e impediram que o sistema desenvolvido nos EUA fosse transplantado para a Europa. Com 80% do mercado bloqueado pela acção do Tesouro americano, o movimento do ouro digital, simplesmente, morreu.

O ouro digital, os seus apoiantes e utilizadores colidiram com a crescente burocracia regulatória que cresceu a partir da Guerra à Droga e da Guerra ao Terrorismo. As empresas de ouro digital eram empresas novas ligadas ao desenvolvimento dos negócios na internet, cuja originalidade e financiamento estavam associados ao próprio fundador e às suas poupanças. Os reguladores financeiros não atenderam a estas especificidades e não souberam acomodar, do ponto de vista regulatório, estes tipos de negócio (hoje a Bitcoin enfrenta o mesmo problema).
O governo faz aquilo que faz bem: destruiu a indústria instaurando processos aos envolvidos por falta das licenças apropriadas.
Enquanto a iniciativa do ouro digital acabou tragicamente, devemos demorar-nos algum tempo a contemplar as magníficas concretizações que essa experiência e os seus agentes alcançaram. No caso da e-gold.com alcançaram o feito de criar uma base de clientes e utilizadores que ultrapassou um milhão de pessoas. A quantidade de dinheiro em ouro estava a circular muito depressa e na quantidade relevante de 64 000 onças troy (aproximadamente duas toneladas e com um valor de 25 milhões de dólares em 2002). Eles conseguiram também desenvolver um sistema de ouro digital com uma rede de múltiplas instituições e agentes pelo mundo fora.

Ouro digital 2.0

Entretanto, as criptomoedas (bitcoin especialmente) ocuparam o lugar deixado vago pelo ouro digital. Em todo o caso, julgo que essas moedas não são tão boas como meio monetário num sistema de pagamentos internacionais, como o ouro digital o foi. Após uma década de sucessos na primeira geração do ouro digital, deve ser possível criar um novo padrão-ouro livre, evitando os erros dos nossos antecessores.
Considero que devemos considerar os seguintes elementos como necessários para alcançar esse desiderato:

1 – Jurisdição
2 – Meio/Unidade contratual Primária (moeda; specie)
3 – Sistema de pagamentos digital de ouro e procedimentos contabilísticos
4 – Rede de agentes
5 – Mercados/Plataformas electrónicas de transacção
6 – Sistema de Resolução de disputas/contencioso
7 – Modelo Regulatório

Comecemos pelo primeiro ponto. Em primeiro lugar, é muito importante reconhecer que é necessário escolher uma jurisdição que não penalize o uso do ouro como meio monetário. Os clientes e utilizadores podem estar em qualquer parte do mundo, mas as instiuições centrais do padrão-ouro livre têm de estar sediados em jurisdições amigáveis. Isto significa que precisamos de países que:

- não cobrem IVA ou outra taxa na transacção do ouro monetário
- não cobrem impostos de mais-valias sobre o ouro monetário
- não se oponham à livre cunhagem de ouro monetário
- não possuam interesses contra o uso do ouro monetário (como é o caso do Tesouro americano)

Estas condições excluem os EUA, mas, surpreendentemente, uma longa lista de países respeitam as três primeiras condições, incluíndo a União Europeia.
O caminho mais seguro é escolher jurisdições que tenham interesse manifesto no uso do ouro monetário e um sistema legal sólido e a capacidade de resistir à perseguição por parte dos poderes anti-ouro. A Suíça, Hong Kong, Singapura e o Dubai são excelentes exemplos dessas jurisdições.

Em segundo lugar, precisamos de um meio monetário padronizado, uma unidade que seja prática para as transacções diárias. Para isso, podemos confiar em muitos dos actuais fabricantes de pequenas barras, moedas ou placas (ver por exemplo aqui) para encontrar esse meio/unidade.

Em terceiro lugar, precisamos de um sistema digital de pagamentos em ouro de “par para par” (P2P) e o respectivo sistema de contabilidade para poder conciliar e auditar os pagamentos entre os utilizadores e agentes entre si. Idealmente, estes pagamentos digitais poderiam ser levadas a cabo nos telefones móveis de última geração. De preferência, escolheríamos um sistema descentralizadocom dezenas ou centenas de emissores de ouro digital que sejam compatíveis uns com os outros. Devemos, por isso, evitar um sistema centralizado numa só empresa que possa ser alvo fácil ou retirada do mercado por acção de um governo, como aconteceu com a e-gold.com.

Em quarto lugar, temos de considerar a rede de agentes e plataformas que irão transaccionar o ouro digital na sua expressão física, como também em moeda-papel (fiat). Esta rede podia constituir-se pelos vendedores de ouro a retalho (a peso), casas de penhores, empresas de envio e transferência de remessas monetárias, casas de câmbio e caixas automáticas (multibancos). A rede é um elemento fundamental para facilitar a adopção alargada do público em geral a este padrão-ouro livre. (2 e 3)

Em quinto lugar, precisamos de plataformas electrónicas para fazer o mercado eficiente e permitir a livre descoberta de taxas de juro. O ouro é a nossa moeda e necessitamos de câmbios entre o ouro e a moeda-papel (fiat). Pelo que uma plataforma electrónica de negociação/transacção é fundamental e o caso da Bitcoin é muito instrutivo aqui.

Em sexto lugar, é determinante ter um modo rápido e eficiente de resolver disputas entre os utilizadores do padrão-ouro livre a uma escala global e que ultrapassa fronteiras. É essencial ter princípios que se apliquem globalmentea todos os utilizadores e membros. Um fórum de arbitragem e contratos que regulem todos os utlizadores do sistema é o modo de o conseguir. (4)

Por fim, o modelo regulatório deve conviver com as estruturas legais existentes e deve evitar a necessidade de aprovação, por parte dos diferentes estados, de leis e regulações que o enquadrem. Não precisamos que os estados façam regras para nós. Necessitamos de um mapa para saber como usar as entidades regulatórias existentes para estabelecer os emissores de ouro monetário digital, de modo a evitar incumprimentos dos enquadramentos legais já existentes.
O modelo regulatório é uma peça muito importante e, por isso, no próximo artigo dedicar-me-ei a esse ponto.
Em conclusão, se nós que acreditamos num padrão-ouro estamos à espera que os estados o criem por nós, então ele não se concretizará. Se esperarmos pelo fim do actual sistema financeiro global, então poderá ser tarde demais. Ou até podemos dar-nos conta de que o SDR (FMI) passou a ser a nova moeda mundial, de facto.
Se queremos ver um padrão-ouro livre, temos de ser nós a fazê-lo. Esta série de artigos pretende traçar um caminho possível para lá chegar."


(1) – À empresa e-Bullion foi negada a licença de operar como serviço de emissor de meio monetário pelo Estado da Califórnia em 2002, por, na opinião das autoridades, a empresa não transaccionar verdadeira moeda.

(2) – Cf. MPESA que cresceu para atingir os 30 milhões de utilizadores em cinco anos, dada a sua rede de agentes no Quénia.

(3) – Cf. GoldMoney.com – a empresa criou um sistema de ouro monetário digital bem regulado, mas não deu o passo de permitir agentes independentes de servirem potenciais clientes. Sem essa rede de agentes, os clientes da GoldMoney.com não passaram a usar o ouro digital como moeda, procedem apenas a fazer poupança em ouro.

(4) – Veja-se a CAcert que uma organização internacional com 20 mil membros.

Breve apresentação do autor: Ken Griffith foi editor da “The Gold Economy Magazine”, Director na e-Bullion.com e lançou a empresa Cottage Networks para consultoria e desenvolvimento de páginas oficiais na internet para pequenas empresas. Actualmente, participa no projecto Dinero Limited que consiste numa plataforma de micro-poupança e financiamento em África, com base no uso de telemóveis. Ken pode ser contactado em ken@dineroltd.com

6 comentários:

floribundus disse...

nasci em 31 numa aldeia nortealentejana do vale do Tejo

os ourives do norte andavam com uma mala metálica na bicicleta e percorria as aldeias do distrito de Portalegre

traziam fios para vender aos padrinhos das crianças
porque ouro era tesouro

agora temos papel cujo valor real desconhecemos

Lura do Grilo disse...

Actualmente também há quem venda ouro e diga que cuida do armazenamento a quem o compra. Uma empresa é a Gold Direct!

É possível garantir que o ouro físico existe?

LV disse...

Caro Floribundus,

O uso dos metais em joalheria não se confunde com o uso dos metais como meio monetário. Embora a joalheria se constitua como reserva de valor é prejudicada com a variação do toque da peça (a joalheria dificilmente tem concentração total de metal precioso) e a sua apreciação estética. Há alguns revendedores estrangeiros que estão a produzir "bullion jewelery", ou seja, joalheria que tem elevada concentração de metal (especialmente ouro) para manter a sua qualidade de investimento. Mas não chega às concentrações 9999 das principais moedas e barras vendidas a peso (bullion).

Caro Lura do Grilo,

Esse operador é um pequeno operador. Pouca informação posso dar-lhe acerca dele. Deve proceder a uma investigação cuidada do operador com que deseja estabelecer uma relação. Operadores maiores e internacionais oferecem maiores garantias e há muita informação disponível.
Quanto ao modelo de negócio são muitas as vantagens deste tipo de produto. Há procedimentos de controlo e auditoria, bem como seguros contratados. Este produto não deve confundir-se com ETF´s ou contas não alocadas (sem propriedade de metal efectivo). O cliente é proprietário d quantidade do metal que comprou. E há operadores que inclusive estabelecem contratos com os números de série das próprias barras adquiridas, mas estes produtos são mais caros.
Outras (importantes) vantagens: segurança e liquidez.
Espero ter ajudado e não hesite em partilhar os resultados da sua investigação.

Saudações,
LV

JS disse...

"Em defesa de um padrão monetário livre..."

O próprio Governador do Banco de Portugal declara "não ter poder para ... governar", (mas aceita e persiste no cargo!).

Pediu ao legislativo o poder que precisa, sob pena de recusar ser cúmplice na "peça bufa de teatro financeiro"?.

Só resta os privados, por esse mundo fora, "reinventarem uma moeda credível".Credível?.
Saudações.

LV disse...

Caro JS,

O governador/regulador faz o quê, afinal? Agora que já não interfere directamente nas variáveis estruturais da economia (como imprimir moeda, facilitar crédito directamente a certos agentes "importantes"), não faz absolutamente nada. E estas declarações que escolheu são exemplares disso. E a sua indignação tem, por conseguinte, fundamento.
De certa forma é mais um "public official" a receber para representar. Para fazer de conta. E virão mais episódios.

Quanto à moeda credível. Efectivamente, apenas os agentes no mercado (sem um monopolizador que escolha vencedores e vencidos) saberão o que é mais útil e económico usar. A moeda não seria diferente. Ela seria tanto mais credível quanto o mercado visse nela uma ferramenta sólida e adequada às necessidades dos seus utilizadores. E podiam conviver diferentes formas/meios monetários. Por que não?
São tantos os produtos no mercado que sobrevivem como credíveis apenas pelo uso e visão crítica dos agentes do mercado. Sem nenhum governador/regulador a fazer de conta que regula alguma coisa.

Saudações,
LV

JS disse...

http://rr.sapo.pt/informacao_detalhe.aspx?fid=1&did=169679

Well, well, well!.
Ainda na era Constâncio, quando ele afirmou que não apanhava nada porque "não era polícia", comentei em blog: "então porque não pede legislação que lhe dê os poderes necessários...".

ESTE Governador a partir de agora terá menos desculpas....
Mas terá a necessária coragem e independência?.
Saudações.