domingo, 11 de novembro de 2012

A loucura monetária (5)

Continuado daqui (Parte IParte II e Parte III), publico agora a penúltima parte do artigo de Detlev Schlichter, uma tradução da minha responsabilidade onde se demole sistemática e definitivamente a argumentação pseudo-histórica / antropológica a que os autores do "Documento de Trabalho" recorrem para defender a integral estatização da moeda. Como era de esperar, invocam sucessivos casos de recurso a moeda de papel, que classificam de "crucialmente vantajosos" [!]. As "vantagens" que já se antecipariam: as do financiamento das guerras [civis e imperiais]. De Esparta e Atenas, à Guerra da Independência, à Guerra Civil na América, à República de Weimar. 
Sem teoria, mas recorrendo a uma história revisionista

Que a distinção entre moeda "produzida privadamente" e a moeda "produzida pelo estado" tem significado e é importante é o que Benes e Kumhof tentam argumentar numa secção separada do seu ensaio. Aqui, eles afastam-se completamente de qualquer análise tradicional da moeda ou até mesmo do que ainda se poderia designar por "económico". Uma análise económica da moeda entende a moeda como uma instituição social útil e como tal tem de se iniciar por uma investigação sobre como se processa a utilização da moeda em geral, incluindo a que acontece hoje pelos utilizadores de hoje (incluindo o leitor e eu), e tenta explicar, através do raciocínio lógico, o que deveria ser por conseguinte uma boa moeda num contexto geral, incluindo o presente. Benes e Kumhof, no entanto, não argumentam conceptualmente como teóricos económicos mas como re-intérpretes da história. A história pode-nos dizer o que é uma boa moeda e como ela surge. Os antropólogos e historiadores monetários que Benes e Kumhof citam alegam que porque a moeda se originou - supostamente - com o Estado, a sua emissão é melhor controlada pelo Estado. Novamente, nenhuma explicação económica - conceptual, lógica ou teórica - é dada para o por quê de dever ser esse o caso e por que tal pode ser acolhido como uma regra geral. Alegadamente, a história diz-nos que o Estado é um emissor responsável de moeda e que o sector privado é um emissor irresponsável. E tudo se resume a isto.

A interpretação do registo histórico que é fornecida como suporte desta alegação varia entre o registo aventureiro e o bizarro a título definitivo. Exemplos em que a convertibilidade do dinheiro-depósito, em ouro e prata, foi abandonada por decreto oficial e vastas quantidades de moeda fiduciária foram criadas para financiar guerras, revoluções ou outras despesas do Estado, como durante a Guerra Revolucionária na América, a Guerra Civil nos Estados Unidos, ou a Alemanha de Weimar dos anos 1920, são reinterpretados para mostrar que as inflações que se seguiram e os desastres definitivos das respectivas moedas não podem ser atribuídos ao estado, mas são inteiramente resultado do envolvimento de emitentes "privados" de moeda.
"O papel-moeda colonial emitido pelos estados individualmente [os estados que deram origem à América por secessão da Grã-Bretanha] foram da maior vantagem económica para o país ... A Moeda Continental emitida durante a guerra revolucionária foi crucial para permitir que o Congresso Continental financiasse o esforço de guerra. Não houve emissão excessiva pelas colónias, ... Os Greenbacks emitidos por Lincoln durante a Guerra Civil foram novamente uma ferramenta crucial para financiar o esforço de guerra, (Hurra! Outra cortesia da guerra do papel moeda!) ... A única mácula no registo  estatal relativamente à emissão monetária pelo estado foi deflacionária e não de natureza inflacionária."
A sério? Os "colonials" que foram emitidos para financiar a guerra com a Grã-Bretanha acabaram sem qualquer valor, e até hoje permanece no idioma a expressão "sem valor tal como um continental". O período da Guerra Civil foi igualmente um período de inflação anormalmente elevada, e em 1879 os EUA decidiram voltar ao padrão-ouro, altura a partir da qual se instalou um período de crescimento considerável e crescente prosperidade.
Embora o entusiasmo pelas guerras financiadas pelo papel-moeda por parte de Benes e Kumhof seja já um pouco perturbador, o que é particularmente impressionante é que Benes e Kumhof, e os "historiadores" que citam (em particular os activistas David Graeber, um antropólogo e figura de proa do movimento Occupy Wall Street, e Stephen Zarlenga, fundador e director da American Monetary Institute), tentem nada menos do que uma completa re-escrita da história económica e sugiram conclusões - não apenas num caso concreto, mas em TODA a história - o que não apenas contradiz o registo histórico geralmente aceite, mas também o bom senso. O Estado detentor de um monopólio emissor de moeda sem nenhuma restrição torna-se num guardião confiável do bem comum - simplesmente por ser um Estado!

Toda a sua argumentação se torna excêntrica ao extremo quando endereçam alguns casos mais recentes de desastres da moeda fiduciária, relativamente aos quais não só temos uma ampla documentação que suporta a interpretação oposta mas também onde alguns dos teóricos monetários mais destacados na realidade viveram e experimentaram em primeira mão - e que explicaram de forma sucinta.

Ludwig von Mises escreveu um livro seminal sobre teoria monetária em 1912 (Theories des Geldes und der Umlaufmittel) [link], em que lançou as bases para a Teoria Austríaca dos Ciclos Económicos e em que ele previu(!) as hiperinflações europeias dos anos da década de 1920. Ele viveu a hiperinflação, na Áustria, em 1923, e, como economista-chefe da Câmara de Comércio de Viena, esteve em contacto directo com os actores-chave no governo e no banco central. Mais tarde, escreveu as suas memórias.

Benes e Kumhof afirmam agora que todos esses relatos estão simplesmente errados. O principal culpado não foi o Estado, mas o sector privado. Nós só temos que pedir aos funcionários do Estado(!) que eles podem dizer-nos o que realmente aconteceu. Aqui está o documento de trabalho do FMI, na página 17:
"O presidente do Reichsbank na altura, Hjalmar Schacht, estabeleceu o registo correcto sobre as reais causas desse episódio em Schacht (1967)."
De acordo com Benes / Kumhof, Schacht culpa a inflação sobre criação agressiva de moeda por parte do sector privado mas o seu relato sugere também que isso só foi possível porque o Reichsbank generosamente resgatou a moeda-depósito em Reichsmark, isto é, o banco central prestou o apoio essencial à expansão da moeda. Com um generoso apoio do Estado o sector privado, naturalmente, [sempre] criará moeda. Mas significa isso que o Estado nada teve a ver com todo o desastre? Kumhof, Benes e a sua principal fonte, Zarlenga, parecem não compreender o papel dos bancos centrais e o ingrediente essencial do apoio do estado para a existência de um sistema bancário de reservas fraccionárias em grande escala. Além do mais, Schacht é uma fonte de uma fiabilidade algo dúbia neste debate. Schacht tornou-se mais tarde um apoiante de Hitler, introduziu políticas ao estilo New Deal na Alemanha e ajudou os nazis a rearmar e a planear a autarcia alemã. Eu não estou dizendo isto para desacreditar Schacht como observador económico, mas apenas para destacar que ele tinha - e este é, provavelmente, um eufemismo - um considerável enviesamento pró-estatal em todos os seus pontos de vista económicos e dificilmente é um observador objectivo quanto à questão de saber se se pode confiar ao Estado a moeda. (À laia de aparte, todas as ideologias totalitárias são anti-ouro e pró papel-moeda e a favor dos bancos centrais. Os socialistas, os comunistas, os nacional-socialistas, os fascistas - todos eles odiavam ver o Estado limitado na sua capacidade de manobra por um padrão-ouro.)

A argumentação de Benes e Kumhof simplesmente ignora os numerosos relatos históricos que pintam um quadro muito diferente, como é o caso do trabalho do historiador inglês Adam Ferguson, cujo livro seminal "Quando o dinheiro morre" foi recentemente descoberto por um vasto público novo. Ele ignora os relatórios de uma testemunha ocular de um dos economistas mais ilustres do século XX, Ludwig von Mises, ou o trabalho do historiador monetário suíço Peter Bernholz.

Eu não sou um historiador e quero ser cuidadoso quanto a afastar liminarmente desafios ao registo histórico estabelecido, mas o relato apresentado [no ensaio] parece-me simplesmente ridículo, não científico, uma propaganda mística pró-estado. Como argumento científico é desprovido de mérito.

Mas talvez que o pior aspecto do artigo seja este: onde está a teoria económica, onde está a análise conceptual e o raciocínio lógico? Mesmo que se aceite - apenas para efeitos argumentativos e contrariamente à esmagadora evidência disponível - que o Estado tem sido, mais frequentemente do que não, um bom guardião do privilégio de emissão da moeda, quais são as explicações para tal, quais são os argumentos teóricos e conceptuais que sustentam esse padrão histórico? Poderíamos confiar em que sempre tenha sido esse o caso? Se é da "natureza da moeda" (Benes / Kumhof) ser fornecida pelo Estado, é, portanto, da "natureza do Estado" proporcionar sempre uma boa moeda, ou precisaríamos de disposições institucionais específicas, enquadramentos legais, ou alguma cultura de "boa moeda' ou da tradição para que seja esse o caso? Evidentemente, Benes e Kumhof não fornecem qualquer resposta.

Esta parte do artigo é apenas não-científica porque a argumentação é essencialmente mística. A ideia de que uma instituição socialmente útil como a moeda só pode ser compreendida se compreendermos a sua "natureza", que não deriva do modo como as pessoas a usam (incluindo o leitor e eu próprio hoje) mas de como ela terá surgido há milhares de anos atrás, nada mais é que um mergulho no misticismo.

A moeda é uma ferramenta, tal como os martelos. Se eu pedir ao leitor para me dizer para que serve um martelo, o que constitui um bom martelo e um mau martelo, e que tipo de martelo é necessário para um propósito específico, dir-me-ia que primeiro lugar tenho que entender a "natureza" do martelo e, para isso, teria que perguntar a antropólogos como terão surgido os primeiros martelos e que utilização foi dada ao primeiro martelo ou a ferramentas semelhantes?
(Continua)

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