quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

O que andará aquela gente (no FMI, e não só) a fumar?

Vivemos tempos de um esplendorosamente triunfante cientismo empirista-positivista. Segundo este paradigma, a verdade (a ciência) sustenta-se naquilo que é empiricamente constatável ou, pela negativa, tudo o que não possa ser verificável através de mensuração adequada, não é susceptível de ser aceite como "científico". Daí a proliferação exponencial de "estudos" e de "modelos", de base estatística-matemática, avidamente divulgados pelos media, e, aspecto nevrálgico, que sustentam em larguíssima medida toda uma comunidade que se acha investida do direito absoluto de viver à custa do contribuinte em nome da "promoção da ciência". Este fenómeno, endémico nas ciências sociais, tem vindo a alargar-se igualmente a outros domínios como sejam os da Medicina e da Biologia e dele não escapam até mesmo supostas "hard sciences" como a Climatologia (num próximo post, abordarei algumas questões que este artigo me sugere).

Temos assim, por exemplo, que questões até há bem tempo tidas por elementares e universalmente consagradas nos manuais universitários (até por Krugman) - como as leis da procura e da oferta -, são agora descartáveis por alguns economistas (?), prémios Nobel inclusive. Segundo estes, não haveria evidência empírica de que o salário mínimo afecte (negativamente) os níveis de emprego! (Compreendo agora melhor porque desapareceu a axiomática formal no ensino da geometria no ensino básico, ou o capítulo de lógica da matemática do secundário). Deste modo, não é surpreendente que assistamos à divulgação de mais um "estudo" (lá está!) onde se terá detectado algo de extraordinário: quanto mais insustentável for o stock de dívida pública acumulada, menor é a sua influência sobre os níveis de crescimento económico. É sobre esta formidável descoberta que Simon Black se debruça em IMF Report: "Debt is Good. What are the people smoking?, cuja tradução, da minha responsabilidade, se segue.

Chile, 18 de Fevereiro de 2014

Por Simon Black

Provavelmente, em algum momento da vida, toda a criança sonhou ter uma máquina do tempo e ser capaz de viajar até ao passado... normalmente para ver os dinossauros ou algo do género.

Viajar no tempo é uma fantasia quase universal. E se eu pudesse estalar os dedos e folhear as páginas do tempo, teria uma séria curiosidade em rever o período de mil anos entre o declínio do Império Romano do Ocidente e a ascensão do Renascimento.

Era usual referir esse período como a "Idade das Trevas" (embora os historiadores tenham entretanto desistido dessa designação), uma época em que todo o continente europeu esteve praticamente numa pausa intelectual.

A Igreja tornou-se NA autoridade sobre todos os domínios - Ciência, Tecnologia, Medicina, Educação. E manteve a informação mais vital fora do alcance do povo... limitando-se simplesmente a dizer a todos o que deviam acreditar.

As pessoas que viviam nesse tempo tinham que confiar em que os altos sacerdotes fossem pessoas inteligentes e que sabiam do que estavam a falar.

Interpretar factos e observações por si próprio era uma heresia, e todo aquele que formulasse um pensamento original e desafiasse a autoridade da igreja e do estado era queimado na fogueira.

É verdade que a civilização humana já percorreu um longo caminho desde então. Mas os módulos básicos da sua construção não são hoje muito diferentes do que eram então.

Quem quer que desafie o estado ainda é queimado numa fogueira. E todo o nosso sistema monetário requer que todos nós confiemos nos altos sacerdotes da banca central e da economia. Aqueles que se desviam da mensagem estatal e difundem a heresia económica são abatidos e vilipendiados.

O leitor recordar-se-á do caso dos professores de Harvard, Ken Rogoff e Carmen Reinhart, que escreveram o clássico "Desta vez é diferente: oito séculos de loucura financeira".

O livro destacou dezenas de padrões históricos chocantes onde nações antes poderosas acumularam demasiada dívida e entraram em declínio terminal.

A Espanha, por exemplo, entrou em incumprimento no serviço da sua dívida por seis vezes, entre 1500 e 1800, e posteriormente por outras sete vezes no século XIX.

A França incumpriu por OITO vezes, entre 1500 e 1800, incluindo o episódio de 1788, nas vésperas da Revolução Francesa. E a Grécia por cinco vezes desde 1800.



A premissa do seu livro era muito simples: o endividamento é uma coisa má. E quando as nações acumulam demasiada dívida, elas ficam em sérios apuros.

Esta mensagem não foi muito conveniente para os governos que acumularam níveis de endividamento sem precedentes. Pelo que, quando críticos descobriram alguns erros de cálculo nas suas fórmulas do Excel, os dois professores foram muito desacreditados publicamente.

Depois, foi como se toda a ideia de que o endividamento era uma coisa má tivesse simplesmente desaparecido.

Não há, todavia, nada com que nos devamos preocupar. O FMI surgiu agora com um trabalho desenvolvido internamente para preencher o vazio.

E, surpresa, surpresa, o novo artigo [working paper] "não identifica nenhum limiar claro de endividamento acima do qual as perspectivas de crescimento de médio prazo fiquem dramaticamente comprometidas".

Tradução: continuem a aumentar essa dívida, meninos e meninas, não há nada pela frente senão um mar de rosas.

E isto não é tudo. Eles vão muito mais longe, sugerindo que logo que uma nação atinja níveis MUITO ELEVADOS de endividamento, a correlação entre a dívida e o crescimento é ainda MENOR.

É evidente que é este o problema da Europa e dos EUA: 17 milhões de milhões de dólares? Absurdo! A economia estará florescente quando a dívida atingir os 20 milhões de milhões de dólares.

Há apenas uma pequena ressalva. O FMI admite que houve que inventar um método completamente diferente para chegar às suas conclusões e que "deve haver cuidado  na interpretação dos nossos resultados empíricos".

Mas tais detalhes não são importantes.

O que é importante é que os altos sacerdotes da economia demonstraram, de uma vez por todas, que não há absolutamente nenhuma consequência para os países que estão profundamente endividados.

E em vez de pontificar quanto ao que estas pessoas andam a fumar, todos nos devemos alinhar pela crença inquestionável e pela devoção à sua suprema sabedoria.

7 comentários:

Floribundus disse...

num blog brasileiro diz o autor ser esta a verdadeira
'idade media'

as trevas são tão densas que nada se vê do lado dos contribuintes

do lado dos dirigentes vive-se a mais feliz 'Idade de Ouro'

Eduardo Freitas disse...

Caro Floribundus,

E diz muito bem!

A referência à Idade Média não é, de facto, muito feliz, embora o arquétipo sirva muito bem para ilustrar os tempos que passam.

Saudações,

Eduardo Freitas

LV disse...

@Eduardo,
O triunfo empirista-positivista que indica esquece um dos legados, simultaneamente mais simples e inquietantes, do trabalho de David Hume: se não podemos observar a relação de causalidade, mas apenas a contiguidade espacio-temporal dos fenómenos (e a regularidade dessa contiguidade ao longo do tempo), devemos ser comedidos nas relações causalidade que atribuímos aos fenómenos. Racionalmente não parece haver respaldo para conexões causais necessárias, é sempre logicamente possível que uma outra relação se estabelecesse entre os fenómenos que estudamos.
Ora, está bom de ver que, nas áreas do saber mais instrumentais (ou até nas ciências duras, como lhes chamou) como a Economia, pululam os modelos matemáticos para reger e explicar os fenómenos, segundo uma rigidez e um dogmatismo impensáveis depois de tantas "revoluções científicas". Muitas vezes os resultados dessa rigidez contrariam aquilo que o bom senso avisaria concluir.
E o problema é que isso tem autorizado medidas que têm consequências sobre a vida das pessoas (sejam impostos vários sobre produtos ou subsídios que suportam ramos de negócio que não teriam viabilidade sem o amparo coercivo do estado).
Continuemos teimosamente.
Saudações,
LV

Eduardo Freitas disse...

Luís,

Precisamente. Procurarei, em breve, explorar os resultados da imposição de políticas públicas (= novos impostos) abençoadas com o aval "científico" abordando as, a meu ver, similitudes fundamentais entre as políticas económicas e as de prevenção/mitigação das "alterações climáticas".

Saudações

Eduardo Freitas

LV disse...

@Eduardo,
Está, seguramente, muita coisa a acontecer.
Veja-se o seguinte artigo (http://www.reuters.com/article/2014/02/19/us-g20-australia-imf-idUSBREA1I1M920140219).

A dívida é boa, portanto.
LV

Floribundus disse...

Meu Caro
o brasileiro brincava com a grafia.
para ele a idade das trevas era a dos 'midia' como ele depois escrevia

Eduardo Freitas disse...

Caro Floribundus,

Sim, tinha percebido. Limitei-me a continuar com o trocadilho.