domingo, 23 de fevereiro de 2014

Ucrânia: o prosseguimento do maniqueísmo imperial

Capa da The Economist da semana
Tenho feito eco por aqui, com alguma regularidade nos últimos meses, das análises geo-politicas de Eric Margolis, um dos meus analistas preferidos em matéria de política externa sempre que os Estados Unidos estejam envolvidos (uma "inevitabilidade", hoje em dia). No seu artigo de ontem, Back from the Brink in Ukraine, Margolis analisa a situação na Ucrânia à luz da persistente manobra de envolvimento da União Soviética Rússia por parte dos EUA, em mais uma instanciação da política do "cordon sanitaire", atribuída a Georges Clemenceau (ou a Woodrow Wilson?), desenvolvida na sequência do primeiro (e imediatamente evidente) desastre estratégico resultante da I Guerra Mundial - a revolução bolchevique. A Ucrânia era, já então, como nação "fronteira", peça integrante do dito "cordão". Para além disso, como Daniel McAdams também observava há dias (artigo de leitura vivamente recomendada), há demasiadas similitudes entre o desenrolar dos acontecimentos na Ucrânia com o drama que (ainda) está em curso na Síria.

Para os leitores que se interrogarem do porquê de um pronunciamento algo tardio sobre a situação da Ucrânia, a imagem acima espelha, com um "esplendor"  inaudito em tempo de paz (?) por parte de uma "respeitável e venerável instituição" com mais de 170 anos de história, a razão de ser do timing (e a justeza da decisão que tomei há três anos atrás):

A tradução que se segue é da minha responsabilidade bem como pela introdução dos links e imagens no texto.

ACTUALIZAÇÃO (ainda no "prelo") - Como sempre sucede em períodos à beira da revolução do golpe de estado (versão de rua ou palaciana), os acontecimentos sucedem-se a um rimo vertiginoso. Um dia depois da crónica de Margolis, Iakunovitch já não é presidente e Iulia Timoschenko foi libertada. Mas o essencial do artigo, a meu ver, mantém toda a actualidade.
22 de Fevereiro de 2014

Por Eric Margolis

Nos inícios deste mês, a diplomacia americana na crise da Ucrânia foi sintetizada, pela alta funcionária do Departamento de Estado, Victoria Neuland, uma destacada neoconservadora: "Que se f*** a Europa!"

Na sexta-feira [21 de Fevereiro - NT], a Europa respondeu intermediando um compromisso sensato na cada vez mais perigosa crise ucraniana, quando o exército se aprestava a intervir. Se o pacto for respeitado, o presidente da Ucrânia, Viktor Yanukovich, irá renunciar a alguns dos seus poderes, será formado um governo de unidade, serão realizadas eleições, e os manifestantes presos serão libertados. O destino da líder nacionalista presa, Yulia Timoshenko, permanece incerto.

Aqui estava uma solução diplomática inteligente para uma crise que poderia ter levado a um choque frontal entre a NATO e a Rússia, ambas potências nucleares.

Mas e se a União Europeia não tivesse promovido o acordo e houvesse sido adoptada a abordagem da linha dura dos EUA?

Uma regra básica das questões internacionais é o cuidado a observar na formulação de uma ameaça. As ameaças vazias tornam-se "canhões à solta".

Na semana passada, o presidente dos EUA, Barack Obama, advertiu a Rússia a manter-se afastada de uma Ucrânia dilacerada por conflitos ou, caso contrário, a enfrentar as "consequências".

As "consequências" tornaram-se na ameaça favorita de Hillary Clinton e dos democratas belicistas. Ela está mesmo superar a fórmula de ameaça de guerra, anteriormente favorecida por Washington, segundo a qual "todas as opções estão em cima a mesa."

A última vez que ouvimos aquela estafada ameaça foi a propósito da Síria, e veja-se o que aconteceu: a Casa Branca quase tropeçou numa guerra totalmente desnecessária contra os sírios e teve que ser resgatada por nada mais nada menos que pelo russo Vladimir Putin.

Durante a semana passada, mais ameaças bélicas. E se o astuto Vlad Putin expuser o bluff de Obama?

Se as débeis sanções com que Washington ameaçou não funcionarem, seguir-se-á o quê então? Será que a administração de Obama usaria armas nucleares contra Moscovo por causa da Ucrânia, uma nação que 99,7% dos americanos não conseguiria encontrar no mapa caso as suas vidas dependessem disso? Será que os EUA tentariam impor um bloqueio sobre as exportações de petróleo da Rússia, como sucede com o Irão? Os mercados financeiros enlouqueceriam! Tudo isto por causa da Ucrânia?

Moscovo acredita que a insurreição na Ucrânia é financiada e fomentada pelos EUA e pela UE. O Kremlin teme que os EUA estejam empenhados em destruir a Federação Russa e a eliminá-la enquanto potência mundial. Putin, alvo de uma campanha de ódio crescente, por parte dos media ocidentais, já o afirmou por muitas vezes.

Na semana passada, o presidente Obama proclamou que o seu objectivo era o de permitir que ucranianos e sírios expressassem a sua vontade através de eleições livres. Óptimo. Duas vezes viva, senhor presidente!

Mas a democracia e a liberdade de imprensa não podem ser selectivas. Enquanto os políticos ocidentais e os media norte-americanos, cada vez mais dirigidos pelo estado, esfregam as mãos por causa da Ucrânia e da Síria, assistimos aos regimes ditatoriais do Bahrain, do Egipto e da Arábia Saudita - todos eles aliados chave dos EUA - a oprimir os seus próprios povos sublevados.

O Egipto proporciona um exemplo particularmente odioso. A sua junta militar neofascista esmagou o primeiro regime democrático de sempre no país, matou mais de mil manifestantes, prendeu muitos milhares mais, e trouxe de volta a tortura e um brutal estado policial. Oito jornalistas da Al-Jazeera estão na prisão e irão a julgamento pelo crime de relatar factos. Os manifestantes são simplesmente abatidos na rua.

Washington continua a financiar as forças armadas do Egipto que esmagam a dissidência, e a apoiar a família real de Bahrain onde estaciona a 5ª Esquadra dos EUA. Para descrédito de Putin, ele acaba de saudar o ditador militar do Egipto em Moscovo, desfazendo-se em elogios para com ele.

Além de hipócrita, a política de Washington em relação à Rússia é cada vez mais perigosa. Será que não aprendemos nada com a loucura diplomática que conduziu à I Guerra Mundial?

Os EUA têm, constantemente, vindo a expandir a sua influência estratégica até às fronteiras da Rússia. No Cáucaso, na Europa Oriental e na Ásia Central. Isto apesar da promessa em contrário da administração de George Bush Sr. a Mikhail Gorbachev em troca da qual o Kremlin permitiria o colapso pacífico do império soviético.

Gorbachev manteve a sua parte do pacto; Washington não.

Se fosse vivo, o grande estadista Bismarck teria ficado horrorizado com as provocações ocidentais
da Rússia. Com as tensões a crescer na Ásia, e a probabilidade de uma guerra real entre o Japão e a China a aumentar - uma guerra que o Japão perderia a menos que os EUA interviessem - Washington precisa crescentemente do apoio de Moscovo.

Mas, ao invés, a política externa dos EUA, desajeitada e amadora, procura antagonizar a Rússia e a China em simultâneo. Bismarck ensinou-nos a dividir os nossos inimigos e a procurar lançá-los uns contra os outros. É também importante recordar que a intensa propaganda dos EUA contra a União Soviética na década de 1980, incluindo o infame "Império do Mal" de Reagan, levou o Kremlin a acreditar que um ataque nuclear dos EUA estava iminente. Aqui vamos nós outra vez.

Recorde-se igualmente que Vlad Putin é um especialista em judo. Ele sabe bem como utilizar o peso e uma má posição do oponente para se esquivar ao seu ataque. Putin, até agora, tem tido sucesso nas evasivas perante Washington. Mas este é um jogo perigoso. Uns quantos movimentos em falso e o resultado pode vir a ser um confronto directo entre potências nucleares.

Felizmente, esta grave ameaça parece ter sido evitada, pelo menos por enquanto, pelo pacto de unidade celebrado em Kiev. A Europa, e não Washington, está a liderar esse esforço louvável - como aliás deveria acontecer.

1 comentário:

Floribundus disse...

'Poema em Linha Recta' de Álvaro de Campos

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus amigos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso, arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas do hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,