sábado, 23 de agosto de 2014

Estilhaços e realidade


Aceder à realidade

Os nossos leitores já devem conhecer Ambrose Evans-Pritchard e os seus artigos. Seja pelas citações que dele se fazem no blog ZeroHedge ou, directamente, porque conhecem a sua coluna no The Daily Telegraph. O editor de Negócios deu uma entrevista muito esclarecedora acerca das encruzilhadas em que nos encontramos – todos, países desenvolvidos e emergentes, norte e sul – nos planos político e económico. De seguida apresentam-se algumas passagens dessa entrevista. Não posso deixar de recomendar vivamente a leitura integral da mesma.
A tradução e a edição destes parágrafos são da minha responsabilidade. Espero que possam ser uma ajuda para podermos reconstruir adequadamente os pedaços estilhaçados da nossa pobre realidade. Aquela que está para lá do nevoeiro pestilento a que nos conduzem políticos, comentadores e selectos especialistas.

"(…)
Ambrose: Todo o sistema económico e financeiro está mais alavancado do que estava em 2008, quando as instituições como o FMI ou BIS disseram que era realmente perigoso. E nós estamos a ver os sinais dessa efervescência quando as taxas dos maus (junk) créditos baixam a níveis históricos, ou seja, os investidores estão a assumir risco sem fazerem perguntas.
Nós já vimos esta volatilidade antes, por isso aquelas instituições começam a defender que estamos, basicamente, a caminhar para uma crise de proporções gigantescas. (...) A Europa precisa de um programa QE [injecção de liquidez por parte do BCE - nt] semelhante ao americano e numa larga escala. Apesar das objecções alemãs – o BCE tem de assumir isso rapidamente. (...)
Draghi quer, desesperadamente, iniciar um programa QE. Ele deseja um euro muito mais fraco só que, sendo presidente do BCE, ele não o controla. São os alemães, em última instância que o controlam. Eventualmente, o euro irá baixar de valor, mas é necessário explicar a situação com mais detalhe. Os rácios de dívida dos países do sul da Europa estão a aumentar muito, mesmo com toda a austeridade – veja-se a Itália [ incluo aqui o caso português que, como sabemos, viu a dívida pública aumentar de 132,4% do PIB para 134% no final do primeiro semestre deste ano - nt]. Isto é um círculo vicioso.
Por outras palavras, esse rácio está a subir, em larga medida, por causa das políticas de austeridade. É uma mistura explosiva: inflação nula e recessão.

David: A razão pela qual não se fala em reestruturação ou reescalonamento da dívida nesses casos é que os países perderam autonomia quando passaram a fazer parte da União Monetária?

Ambrose: De facto, os países perderam o controlo e a soberania. Já não têm banco central, não têm uma moeda e não controlam a política macroeconómica. A dificuldade está agora no facto de que, não tendo soberania monetária, os países podem mesmo falir, pois não podem imprimir moeda para evitar essa falência. (...) É apenas quando se entra para a União Monetária que os assuntos da falência, da reestruturação da dívida passam a fazer parte da discussão com os parceiros dessa União. É aí que a Itália se encontra agora.



Deixe-me carificar um pouco mais: por cada ponto percentual abaixo da meta de 2% de inflação do BCE, isso significa que os países da Zona Euro têm de atingir um saldo orçamental positivo acima de 1,4%. Isto é pura matemática. E com a inflação neutra, basicamente, eles têm de atingir um saldo primário positivo de 8%, só para estabilizar a dívida. E isso é impossível.
Por isso, de cada vez que se verifica deflação, mais os países estão nesse círculo vicioso. E quanto pior se torna, mais se elevam os rácios de dívida. O mesmo acontece em Portugal que, seguramente, se encaminha para uma reestruturação da dívida e uma crise severa na gestão da sua dívida soberana. (...)

David: (...) Existe uma classe de investidores que é titular de muita dívida bancária, de dívida soberana e é como se eles tivessem um passe-livre. Isto é uma viagem de sentido único: podem ganhar com isso, só não podem perder. Estes investidores têm os seus investimenos protegidos. (...) Consideremos a falência recente de um banco em Portugal: não é mais um exemplo do efeito dessa protecção? Era importante saber quem é proprietário dessa dívida e porque foi protegido. Era importante compreender porque é que o risco moral é perpetuado em benefício de alguns quando estamos, realmente, a falar do impacto dessa falência no contribuinte português.

Ambrose: Portugal é um caso estranho. Existem regras novas na Europa que são, essencialmente, direccionadas aos accionistas e credores a serem responsabilizados antes dos contribuintes. Estas regras serão aplicadas em larga escala futuramente e os princípios já estão definidos. Este caso em Portugal precipitou o primeiro teste a essas medidas. As autoridades entraram em pânico e avançaram com a sua aplicação, mas estão a tentar reverter a sua posição inicial, impondo perdas a alguns investidores, mas não a outros.
As autoridades estão a dizer que o contribuinte está totalmente protegido. Os analistas com quem tenho falado não acreditam nisso. Eles pensam que tudo isto há-de cair nos ombros do, há muito sofredor, contribuinte português.
Por isso, concordo consigo. Alguém foi privilegiado neste caso. Pergunto-me como é que a Comissão Europeia aceitou isso, já que colide com os seus princípios. Julgo que isso aconteceu porque as autoridades estão assustadas, estão com medo que este caso suscite uma reacção em cadeia. (...) Metade da Zona Euro parece estar em recessão.
Toda a “recuperação” com que a Comissão Europeia estava a contar, consumiu-se e desapareceu. Eles estão assustados que tudo isto possa dar início a uma combustão ainda maior. Apesar da retórica de que a crise já acabou e os problemas estão resolvidos, eles sabem que isso não é verdade. As autoridades sabem que o mal alastra e a situação pode piorar ainda mais. Julgo que foi por isso que se agiu rapidamente no caso do banco português. (...)
Há um outro ponto de interesse neste caso. Em Portugal estalou o escândalo e estão a investigar quem é, efectivamente, o titular dessa dívida bancária, porque foram protegidos certos investidores, e porque é que o Banco de Portugal agiu para defender esses interesses. Haverá desenvolvimentos relativamente a esse assunto também."

David McAlvany entrevista Ambrose Evans-Pritchard - 20 de Agosto de 2014

4 comentários:

JS disse...

Cá está, mais uma análise sem preconceitos "históricos", pelo que mais objectiva.

Uma (ex)europa mínima, concebida de uma forma discutível, mas concebida com um propósito nobre, claro.

Transfigurada, à revelia dos cidadãos das Nações componentes, "alargada" de uma forma pouco "nobre", artificial -o caso de este "euro" anquilozamente gerado- e portanto impossível de gerir.

Muito menos por um grupo de funcionários.
Mesmo que muito bem pagos, "ad aeternum"(!), e cujo propósito passou a ser a sua própria sobrevivência e bem estar.

Resta um espetáculo triste e que não pode acabar bem. Há por aí muito "reizinho" em pelote.
Saudações e obrigado pelo V/ labor.

floribundus disse...

sempre que pensamos nestes problemas de incerteza presente e futura

apetece-me mandar os políticos
para o eufemismo
'tonga da mironga'

LV disse...

Caro JS,

A Europa… que dizer disso? Andam preocupados que o governo "da coisa" não tem mulheres suficientes!
Para mais, esta semana teremos novidades da burocracia/tecnocracia do BCE quanto a medidas de estímulo. E cá vamos nós.
Para onde?
Mas ainda se duvida?
Estou com tanta curiosidade quanto aos testes de "stress" à banca e todo este novo enquadramento. Veremos que narrativas se colocam em circulação para justificar o injustificável.

Floribundus,
Os políticos fazem o seu papel. E nós o nosso. Até quando? Pergunto-me justamente isso.

Saudações a ambos,
LV

JS disse...

Análise, no Zerohedge, do novo "bail-out" português em curso, solene e repetidamente anunciado como "bail-in".
...
" ...-Off balance sheet vehicles? Check
-Conflicted bank "research" recommending muppets buy stock while soliciting banking fees from same stock? Check
-Hoping to sell debt on to muppets? Check
-Chinese corruption? Check
-State bailout of failed bank? Check
And that ladies and gentlemen, is precisely how the New differs from the Old Normal. Oh wait...".