terça-feira, 29 de outubro de 2013

A Stasi encontra Steve Jobs

Não querendo de todo contribuir para desvalorizar o a todos os títulos intolerável "estado de vigilância" deixando "cair" o assunto como muitos "especialistas" de geopolítica vêm tentando, propus-me partilhar agora um texto recente de Eric Margolis cujo título me apossei para encimar este post. Sem quaisquer comentários adicionais, destacaria apenas a pergunta final do texto que Margolis enuncia: [C]omo é possível que a política externa dos EUA esteja num tal caos considerando que o Tio Sam está a escutar o telefone de todos e de cada um e a ler o seu correio?
Eric Margolis
26 de Outubro de 2013

"Os cavalheiros não lêem o correio de outros cavalheiros", fungou o secretário de Estado Henry Stimson EUA, em 1929, quando foi informado que os criptógrafos americanos tinham decifrado os códigos militares navais e diplomáticos do Japão.

Stimson, que mais tarde dirigiu o Departamento da Guerra, viria a ordenar o encerramento das actividades de descodificação.

Infelizmente, já não restam nenhuns cavalheiros da velha escola em Washington nos dias que correm. As revelações da espionagem electrónica levada a cabo pelos EUA denunciadas por Edward Snowden provocaram um furor na América Latina e agora na Europa.

O alvoroço desta semana foi intensificado por alegações de que a Agência de Segurança Nacional dos EUA (NSA) tinha escutado o telemóvel da chanceler alemã, Angela Merkel, a mais importante e influente líder da Europa. Uma dose adicional de ultraje surgiu em França após relatos de que os seus líderes e diplomatas tinham sido escutados pelos grandes ouvidos da NSA [ontem mesmo, ficou-se a saber que também a Espanha foi alvo das escutas maciças da NSA].

Sem surpresa, o presidente Obama negou oficialmente a existência de escutas às conversas telefónicas de Merkel. Uma fonte dos EUA procurou mitigar os danos alegando que a NSA apenas tinha escutado o telefone do seu gabinete oficial, não o seu telemóvel. A ira alemã não se apaziguou.

Em tempos, os ministros franceses do Interior - nomeadamente Nicholas Sarkozy - costumavam ficar acordados noite fora a vasculhar as escutas telefónicas relativas aos pecadilhos dos seus próprios colegas. Tratava-se de uma boa diversão. Em contraste, hoje, a NSA e a CIA estão a "varrer" todas as comunicações de supostos aliados como uma componente do estado de segurança nacional dos EUA. Chamemos-lhe: a Stasi encontra o falecido Steve Jobs da Apple.

Consta que, só no mês passado, a NSA vasculhou 70 milhões de chamadas telefónicas de franceses, mensagens de texto e correio electrónico sob o pretexto, coxo, do combate ao terrorismo. O que realmente a NSA estava a descobrir eram os números de telefone das amantes ou namorados de proeminentes franceses - muito úteis para operações de chantagem por parte da CIA - e informações comerciais importantes. O terrorismo constitui uma manobra de diversão. A adopção pela NSA de uma actividade de espionagem descontrolada, alegadamente para combater o "terrorismo", está a fazer com que muitos americanos se questionem novamente acerca dos acontecimentos do 11 de Setembro que desencadearam a explosão do estado de espionagem americano, da legislação restritiva, e das guerras no estrangeiro.



Ainda assim, gostaríamos de saber se o presidente Barack Obama sabia o que estavam a fazer os seus espiões. Ele tem pouco controlo sobre o Pentágono e, provavelmente, ainda menos sobre o gigantesco e sempre crescente estado de espionagem americano, construído pelo antigo presidente George W. Bush, que custa mais de 80 mil milhões de dólares por ano. Cerca de 4,8 milhões de americanos têm agora credenciais secretas de segurança e trabalham para o estado de segurança nacional octópode.

Obama não seria o primeiro presidente a desconhecer o que os seus espiões estavam a fazer. Mas desta vez ele deveria sabê-lo. Escutar os líderes dos mais próximos aliados europeus e latino-americanos foi um acto incrivelmente estúpido. Nada poderiam ter ficado a saber que compensasse os danos causados.

A espionagem electrónica americana [US Elint] humilhou os líderes europeus e latinos e fê-los passar, como à NATO, por vassalos dos americanos, passíveis de desdém ou de descarte.

De que forma podem os líderes da Europa enfrentar os seus próprios eleitores depois deste episódio vergonhoso? As revelações de Snowden e do soldado do Exército Bradley Manning mostram que Washington trata os seus aliados da NATO com a mesma arrogância imperial que a antiga União Soviética reinava sobre os membros do Pacto de Varsóvia.

Os líderes europeus estão sob pressão crescente para demonstrar a sua independência relativamente ao Tio Sam através da imposição de algumas severas medidas de retaliação contra os interesses norte-americanos.

Um ponto de partida seria a construção de uma arquitetura totalmente nova de comunicações electrónicas para a Europa Ocidental que resista à intrusão americana, e criar uma capacidade militar europeia verdadeiramente independente. É chegado o tempo da Europa deixar de ser a infantaria dos cavaleiros nucleares americanos.

A reputação dos EUA na Europa e na América Latina está agora num mínimo de todos os tempos. Os próximos escândalos de espionagem pela NSA virão provavelmente do Médio Oriente, da Índia e do Paquistão, do Canadá, da Coreia do Sul e do Japão. Obama poderá ficar conhecido como aquele que provocou uma ainda maior fúria mundial para com os EUA que aquela conseguida pelo seu predecessor George W. Bush - um feito notável.

Washington afirma que "todos espiam". É verdade, mas ninguém se aproxima sequer do gigantesco aspirador e da dimensão das escutas da NSA. O que os EUA têm vindo a fazer é muito mais do que recolher informações relativamente a um punhado de militantes anti-americanos. Trata-se de intimidação em larga escala. Uma recordatória de que o Big Brother está a observar e a ouvir.

O profundamente corrupto Congresso dos EUA não fará grande coisa para reduzir o roubo de informações por parte da NSA. São demasiados os seus membros que lucram com os negócios efectuados para possibilitar a espionagem da NSA.

A questão permanece: como é possível que a política externa dos EUA esteja num tal caos considerando que o Tio Sam está a escutar o telefone de todos e de cada um e a ler o seu correio?

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