quarta-feira, 20 de novembro de 2013

O "perigo" alemão ou o mundo às avessas

A insanidade grassa e parece mesmo estar em crescendo. Títulos como Os portugueses estão a poupar demais? ou Bruxelas ameaça abrir investigação contra Alemanha devido a excedente externo elevado ou ainda o de hoje "A César o que é de César". E a César das Neves o que é seu e merece! (em defesa do aumento do salário mínimo) concorrem entre si pelo ceptro da mais surreal contribuição de política económica. Muito do que sempre foi virtude é visto agora como formidável vício e vice-versa sendo que, em qualquer caso, se pretende convocar o estado para intervir e "consertar a disfunção" e deste modo, inexoravelmente, para alimentar as sucessivas "correcções" das subsequentes consequências não intencionais que deixam tudo pior do que estava quando a poeira assenta. Há mesmo quem queira fazer passar a percepção que o mundo está às avessas.

Procurarei regressar brevemente ao tema do salário mínimo para voltar a tentar mostrar por que tem o Prof. César das Neves carradas de razão quando afirmou recentemente que "É criminoso aumentar o salário mínimo nacional", afirmação que, ela própria, constitui para Victor Baptista um crime (intelectual, presume-se).

De momento, porém, e socorrendo-me de mais um excelente texto de Frank Hollenbeck, Germany’s "Dangerous" Current Account Surplus (O "perigoso" excedente alemão das transacções correntes), hoje publicado pelo Mises Institute, propus-me tentar contrariar o ruído crescente relativamente ao "perigo" alemão por via da tradução que se segue, de minha responsabilidade, do texto de Hollenbeck. (Aqui um outro artigo igualmente bem interessante sobre o "perigo" alemão, numa óptica político-histórica.)
O governo dos EUA e a Comissão Europeia (CE) criticaram recentemente a Alemanha pelos seus grandes excedentes na balança de transacções correntes. Paul Krugman juntou-se-lhes com esta pérola:
O problema é que a Alemanha tem continuado a manter custos do trabalho altamente competitivos e a manter enormes superavits desde que a bolha estourou  e isso, numa economia mundial deprimida,  faz com que a Alemanha seja uma parte significativa do problema.
Só no mundo surreal da política económica de hoje seria possível considerar prejudicial o facto de se ser altamente competitivo. Esta crítica à Alemanha não é nova, mas já não estamos a viver na década de 1950. A Alemanha não tem moeda própria, e há pouca coisa que seja "alemã" nas suas exportações.

Um BMW produzido na Alemanha mas vendido na Espanha contém peças provenientes de todo o mundo. A maior parte, mas não toda, dos postos de trabalho será alemã, mas as inovações tecnológicas reduziram o custo do trabalho a cerca de 10 por cento do preço de um automóvel. O retorno do capital irá para os detentores de obrigações e accionistas que podem estar em qualquer lugar do mundo. A BMW pode distribuir um dividendo a um accionista espanhol que pode usar esses euros na compra de mercadorias espanholas. Dizer que a BMW é um produto apenas da Alemanha é um [enorme e enganador] exagero.

Imagem retirada daqui

A Alemanha também faz parte de uma moeda comum. Criticar um excedente da balança corrente de uma região dentro de uma zona monetária comum é como reclamar do superavit das transacções correntes da Florida ou, do superavit bilateral de Jacksonville [a cidade mais populosa da Florida] para com Miami [capital do estado].

Se nos colocarmos no plano do indivíduo, é possível tornar esta argumentação cristalinamente clara e evidenciar as tontarias inerentes. Temos um superavit de transacções correntes com o nosso empregador e um défice de transacções correntes relativamente ao nosso supermercado. O nosso empregador compra-nos mais do que nós lhe compramos a ele e o inverso é verdadeiro quanto à nossa relação com o supermercado. No entanto, não nos aprestamos a ir a correr para o supermercado para exigir do seu gerente que nos compre mais bens ou serviços por nós produzidos.

Além disso, o excedente das transacções correntes da Alemanha relativamente aos outros europeus ou membros da zona euro caiu para metade entre 2007 e 2012, e o superavit da Alemanha para com o resto do mundo mais do que triplicou. Isso é o que seria de esperar do processo de abertura comercial, dos ganhos provenientes da divisão do trabalho e da especialização tornada possível pela concentração nas áreas onde existem vantagens comparativas. Criticar esta tendência é, em primeiro lugar, criticar os fundamentos [solenemente] invocados aquando da criação da União Europeia.

Por razões que são difíceis de entender, a Comissão Europeia tem uma regra segundo a qual lhe caberá intervir caso um país membro mantenha um excedente nas transacções correntes de mais de 6% do produto ao longo de um período de três anos. O da Alemanha foi de 7% no ano passado e, provavelmente, atingirá um valor semelhante este ano. Se o livre intercâmbio de bens e serviços e a livre circulação de capitais conduz a um excedente de 10%, 20% ou mais, onde está o problema? Qual é mesmo a razão de ser da existência dessa regra? Por que razão a CE impõe uma restrição que limita a circulação de bens e serviços ou de capitais? Não foi a UE criada para promover a eliminação das restrições injustificáveis​​? A UE não deve surpreender-se que haja países que pretendam sair quando impõe regras tão ilógicas quanto esta.

Subjacente a esta crítica à Alemanha está o mercantilismo cuja cabeça feia está de novo a emergir. No quadro da mentalidade mercantilista, há que haver um vencedor e um perdedor e não apenas vencedores que são o resultado da troca voluntária mutuamente benéfica. A Alemanha está, supostamente, a produzir mais do que está a consumir. Evidentemente que isto não é mais do fazer uso de uma falácia comum que alguns exploram para obter ganhos políticos. Cada euro gasto num carro alemão ou num outro produto será recebido como rendimento por alguém que irá despender esse rendimento. Há uma ligação directa entre a produção e a despesa. A lei de Say diz-nos que (a adequada) oferta cria a sua própria procura. O consumo nunca precisa de encorajamento: tudo o que é produzido é consumido, seja para produzir outros bens (investimento) seja para satisfação pessoal (consumo).

É claro que a "solução" para este problema imaginário é fazer com que a Alemanha aumente a despesa pública para estimular o crescimento nos outros países da UE. Não importa que a Alemanha já tenha uma dívida que representa 82% do PIB, bem acima dos 60% que tinham sido previamente considerados excessivos. É uma solução keynesiana standard que constantemente esbarra na lógica do efeito de "crowding out". Cada dólar que o governo gasta tem que ser um dólar que teria sido gasto por alguém. O governo pode alterar quem fica com um pedaço do bolo económico, mas não pode aumentar o tamanho do bolo.

Mesmo quando a Alemanha tinha moeda própria, nunca esta crítica teve razão de ser. Nessa época, um excedente nas transacções correntes teria significado uma saída de capital equivalente, financiando a despesa pública italiana ou francesa, ou investimentos em instalações e equipamentos em Espanha, Itália, China ou noutro lugar. Mais uma vez, palavras como excedente ou défice são resquícios do nosso passado mercantilista e não têm absolutamente nada a ver com o facto de serem boas ou más.

Se a Alemanha tem custos do trabalho competitivos e consegue fabricar melhores maquinetas, onde está o problema? Não foi a UE criada para tornar a Europa mais competitiva, para permitir a mobilidade dos recursos (por exemplo, trabalhadores para a Alemanha), onde eles são utilizados com mais eficiência? As críticas por parte da CE e do FMI são ainda mais abstrusas quando se atenta nas razões aduzidas.

O ministro alemão das Finanças, Wolfgang Schäuble, um membro da União Democrata Cristã (CDU), de centro-direita, da chanceler Angela Merkel estava absolutamente correcto quando disse que "O excedente alemão nas transacções correntes não oferece nenhum motivo de preocupação para a Alemanha, para a zona euro ou para a economia mundial". Na realidade, a Alemanha devia ser louvada e não repreendida. As suas proezas produtivas constituem uma das poucas coisas que estão a fazer mover a economia mundial para diante.

3 comentários:

Pedro F disse...

"FIFA ameaça abrir investigação contra Cristiano Ronaldo devido a excedente de golos"

Jogadores como Ricardo Quaresma estão em risco de não ir ao Mundial'14 no Brasil porque o madeirense marca golos a mais. É um dos grandes problemas do futebol que leva a que jogadores menos competitivos tenham dificuldade em jogar na selecção das quinas.

Eduardo Freitas disse...

Uma boa e oportuna analogia.

Floribundus disse...

era muito pior se a Alemanha fosse um país (IV Reich)

monsieur segolène, PR francês
aplica o socilismo post-mortem

ao tózero enfiaram uma 'camisa de Afrodite' na cabeça
com os comentários 'nem sai, nem entra'