quarta-feira, 6 de julho de 2016

Radar

Publicou-se hoje o relatório do inquérito (Chilcot de seu nome) à participação do Reino Unido na guerra do Iraque. Ver aqui.
O primeiro ministro inglês demissionário fará uma declaração esta tarde.
E Blair já afirmou que assume toda a responsabilidade. Sobre o quê?
A imprensa pede ajuda à leitura crítica do enorme relatório:

6 comentários:

JS disse...

Ouvi (TV Sky News) grande parte da intervenção de Cameron resumindo a sua interpretação do Relatório.
E ouvi (TV Sky News) uma boa parte da intervenção de Blair a esplanar a sua visão do Relatório. Bem assim como alguns outros comentários sobre este, ainda marcante, assunto.

Havia e foram utilizadas ADM. S. Hussein tinha todas as razões e possibilidades para incrementar e usar, loucamente, tal arsenal.
Pensar que foram um Presidente Americano e um PM Inglês que iniciam o secular conflito Shiita-Sunita é supinamente ridículo.

Curioso. Não é só cá que as obsessões partidárias cegam a razão.
Ou compram a dignidade/dependência profissional.

PS. A propósito:
Sir Thomas More: "... it profits a man nothing to give his soul for the whole world ... but for Wales, Richard?".
Cumprimentos cordiais.

LV disse...

Caro JS,

O dia de ontem, creio, foi rico em eventos de alcance histórico ainda não totalmente compreendido.
Simplificando muito podemos vê-lo de dois prismas:
- do ponto de vista institucional - é sinal de que a tradição política e institucional britânica é mais resiliente e estruturada do que o presente (e as suas interpretações momentâneas nos revelam, veja-se o Brexit);
- do ponto de vista da acção e responsabilidade políticas dos eleitos - aqui há muitas nuances, mas espanta-me o consenso em torno da visão intervencionista dos poderes políticos; há, julgo, uma não caucionada acção de interferir em assuntos alheios; consideremos a seguinte hipótese, se houvesse um referendo para legitimar estas intervenções qual seria o resultado? Estou em crer que os impulsos intervencionistas seriam severamente escrutinados e, quem sabe, limitados na sua concretização.

Do meu ponto de vista, é esta última dimensão que importa analisar. Quando ultrapassarmos a vaga dos populismos (e pagarmos a sua dura factura), essa atitude crítica terá expressão mais alargada e a dimensão de acções ilegítimas (sejam elas ao abrigo da defesa de valores nobres ou de interesses inconfessáveis) será mais facilmente contida. Talvez por aí - pela crise de representação, de participação e legitimidade políticas que resultariam de tal mudança - pudéssemos assistir à inversão do movimento expansionista dos projectos políticos. Talvez no sentido mais individual e comunitário, se quiser.

Quanto aos dados que indicou e não tendo lido o gigantesco relatório para além do seu resumo, repare que:
- as declarações de Blair são difíceis de aceitar; foi a sua retórica (e a acção nela respaldada) que impede agora aceitar-se uma reescrita da história;
- Blair tenta desviar a atenção para o que o relatório não indica que deveria ter sido feito nas circunstâncias políticas e históricas que analisou - mas esse não era o propósito do inquérito;
- tanto Blair, como Cameron, buscam sacrificar o alcance da sua palavra (e responsabilidade políticas) através de um discurso de congratulação pela acção das forças armadas britânicas no teatro de operações (e dadas as operações e constrangimentos que tiveram de vencer) - será o reconhecimento implícito de uma culpa? Dados os erros que o relatório aponta (falta de meios, deficientes informações e enquadramento superficial da acção militar) parecer suportar esta interpretação. E os discursos de ambos, reforçam-na.
- sim, Sadam usou armas químicas e, pela dissimulação, deu a entender que ainda dispunha desses meios muito depois do seu reconhecido uso; o que fazem as informações neste cenário? O que pressionava a acção militar, face à mais demorada acção da inteligência militar? É aqui que entra hipótese do aproveitamento político (e também económico) da intervenção.
- a origem dos conflitos na região (alargando da Líbia, Egipto até ao Irão, se quiser) é remota; mas não podemos deixar de contemplar a influência que tiveram as diferentes forças ocidentais no último século e meio (pelo menos) no agudizar desses conflitos e tensões; estas ganharam uma dimensão que não tinham e, hoje, extravasam fronteiras políticas e religiosas.

Todo este caso que os britânicos nos oferecem, é um excelente caso de estudo da natureza dos regimes democráticos, da legitimação da acção dos representantes e das diferentes hierarquias valorativas presentes no mundo de hoje.
É naturalmente muito fácil a imprensa (e os diferentes agentes políticos) tirarem proveito destes casos. Olhar o passado e expressar contrafactuais é fácil. É isto a que assistimos desde a primeira intervenção no Iraque, pelo menos.
Considerar a natureza do poder nas sociedades de hoje, buscar, através de uma reflexão livre, uma expressão legítima e equilibrada desse poder (até considerando a sua dissolução, porque não?) é que importa fazer.

Calorosas saudações,
LV

JS disse...


LV. Li e reli.
"... Estou em crer que os impulsos intervencionistas seriam severamente escrutinados e, quem sabe, limitados na sua concretização.
Do meu ponto de vista, é esta última dimensão que importa analisar....".

Permita-me. Sim, colocando de lado os detalhes discutíveis, essa é a questão.

-No Iraque 15% de Sunitas investidos de todo o poder. Shiitas dos pântanos, e não só, desimados. Cristãos também. Comunidade internacional pede "intervenção". Intervenção houve. Sobretrudo dos EUA.

-Na Síria 15% de Shiitas investidos de todo o poder. Sunitas, Cristão, outras denominações e tribos, desimadas. Refugiados. A comunidade internacional pede "intervenção". Intervenção houve ... mas só passados 4 anos e porque Putin resolveu intervir. Gato escaldado ...

Blair, e outros, perguntam: morreram mais civis no Iraque com a intervenção?.
Ou, antes da intervenção, morreram mais civis na Síria?. Contabilizam-se os refugiados sobreviventes?.

Aonde é que estão os jovens activistas que, na altura, pediam furiosamente uma intervenção no Iraque?.
Saudações cordiais, JS

LV disse...

Caro JS,

Ao procurarmos uma resposta para a última questão que apresenta, ganhamos, julgo, melhor visão quanto ao problema: os activistas que identifica (na questão do Iraque são de um espectro político e de uma ou duas cores políticas) deram expressão à sua visão intervencionista, ancorada numa visão "liberal" (atenção às aspas) e idealista.
E esta visão tem defensores tanto do lado de lá como no de cá do Atlântico. Por lá é a paixão pela determinação do que é justo e da sua aplicação que alimentou (alimenta ainda?) as últimas décadas de "construção de estados-nação". Por cá, a inspiração é a implementação da paz a motivar o apoio aqueles ímpetos americanos ou a forçar convergências num projecto político comum - União Europeia.

O que me parece certo é que esta atitude intervencionista se manterá. Ou será interrompida por um conflito bélico latente (seja directamente no continente europeu - com a Rússia, por exemplo - ou na Ásia (China e vizinhos). Mas em ambos os casos lá teremos os mesmos agentes.
Não lhe parece?

Calorosas saudações,
LV

Anónimo disse...

No conforto do sofá é tudo tão fácil. A verdade é que o mundo ocidental está demasiadamente bem instalado para fazer qualquer sacrifício. Após a II Guerra Mundial o que manteve a paz na Europa até hoje, foram as tropas americanas ( até hoje) e os princípios democráticos que foram instalados ( e não a CEE / UE).No Iraque ao fim de 7 anos, graças ao Bobama, tudo para casa que o perigo para os EUA vem da policia e dos extremistas brancos.

LV disse...

Leitor Anónimo,

Tem razão quanto à facilidade de fazer juízos à distância, temporal ou física. Mas isso não deve impedir ninguém de manifestar a sua opinião e julgamento acerca de eventos que acabam por ter repercussões tão vastas quanto as que o artigo identifica. O teste do tempo também é o repositório das análises mais profundas e sustentadas. Especialmente as críticas.
A paz na Europa depende da acção (e dissuasão) das forças americanas, mas isso tem um preço. Os EUA não o fariam se não pudessem colocar essa estratégia a seu favor, seja pelo palco de contenção que o continente europeu representa face à "ameaça" russa (veja-se a Ucrânia e o seu governo). Ou a orientação das políticas económicas europeias face à emergência de novas forças e energias a Oriente (veja-se a iniciativa AIIB ou a nova Rota da Seda que os chineses estão a dinamizar).
Como vê, a História tem muitas camadas tectónicas.

Saudações,
LV