quinta-feira, 3 de abril de 2014

Esvaziando o mito da deflação

A uma mentira que mil vezes se repete só resta contrapor, com uma frequência equivalente, o seu rebatimento. Assim, face a múltiplas notícias que dão conta do papão deflacionista (por exemplo, Vítor Constâncio terá ainda ontem afirmado que (meu realce) “[e]speramos [no BCE] que o valor baixo de Março seja corrigido para um registo mais elevado em Abril”), volto a insistir no combate ao endeusamento da inflação como fenómeno essencialmente benévolo (se contido num valor "baixo") acompanhado do esconjurar da autêntica peste negra que a deflação representaria. Têm sido múltiplos os meus posts sobre o tema. Mas julgo ser preciso insistir. Primeiro, evocando Mises:
"O mais importante a recordar é que a inflação não é um acto de Deus, que a inflação não é uma catástrofe dos elementos ou uma doença que surge como uma praga. A inflação é uma política."
Depois, procurando contribuir para a desmistificação do fenómeno deflacionário pela via de uma tradução, da minha responsabilidade (notas do texto original substituídas por links), de um texto de Chris Casey ontem publicado cujo título roubei para encimar o presente post.
2 de Abril de 2014
Por Chris Casey
Esvaziando o mito da deflação

O temor da deflação funciona como a justificação teórica para todas as acções inflacionistas levadas a cabo pela Reserva Federal e pelos bancos centrais em todo o mundo. É por isso que a Reserva Federal tem por objectivo uma taxa de inflação de preços de 2% e não de 0%. Em larga medida, esta é a razão que levou a Reserva Federal a mais do que quadruplicar a base monetária de Agosto de 2008 até hoje. E é, de forma notável, um enorme mito, pois não há nada de intrinsecamente perigoso ou prejudicial na deflação.

A deflação é temida não apenas pelos seguidores de Milton Friedman (os designados monetaristas ou membros da Escola de Chicago), mas também pelos economistas keynesianos. Um dos mais destacados keynesianos, Paul Krugman, num artigo do New York Times de 2010 intitulado "Por que é a deflação uma coisa má", apontou a deflação como a causa da contracção da procura agregada uma vez que "quando as pessoas têm a expectativa de que os preços vão baixar, elas tornam-se menos propensas a consumir, e, em especial, menos dispostas a contrair empréstimos".

Presumivelmente, ele acredita que este diferimento na despesa durará para todo o sempre. Mas sabemos por experiência própria que, mesmo em presença de uma descida de preços, os indivíduos e as empresas acabarão por, num dado momento, vir a comprar o bem ou serviço em questão. Não é possível renunciar eternamente ao consumo. Vemos isto suceder todos os dias na indústria da informática / electrónica: o valor da utilização de um iPhone ao longo dos próximos seis meses é superior ao da poupança que resultaria do adiar da sua compra.

Um outro argumento frequente no vilipêndio da deflação é o que respeita aos lucros. Com os preços em queda, como poderão as empresas conseguir lucros quando as suas margens se comprimem? Mas as margens, por definição, resultam quer dos preços de venda como dos custos. Se os custos - que, afinal, são eles próprios preços - também caírem na mesma magnitude (e não há nenhuma razão para que tal não aconteça), os lucros não são afectados.

Se a deflação não causa impactos nem na procura agregada nem nos lucros, como pode provocar recessões? Não pode. O exame a qualquer um dos períodos recessivos após a Grande Depressão levar-nos-ia a esta conclusão.

Além disso, a experiência económica americana durante o século XIX é ainda mais reveladora.

Imagem retirada daqui
Por duas vezes, ao mesmo tempo que experimentava um crescimento económico sustentado e significativo, a economia americana "sofreu" períodos de deflação de 50%. Mas o que dizer então da "prova estatística" proporcionada no livro de Friedman [e Schwartz - N.T.] "Uma História Monetária dos Estados Unidos"? Num estudo mais robusto, conduzido por vários economistas da Reserva Federal, concluiu-se:
... o único episódio em que encontramos evidências de uma relação entre deflação e depressão é o da Grande Depressão (1929-1934). Não encontramos evidência dessa ligação em nenhum outro período. (...) O que é impressionante é que quase 90% dos episódios de deflação ocorreram na ausência de depressão. Num amplo contexto histórico, além da Grande Depressão, a noção de que deflação e depressão estão ligadas praticamente desaparece.
Se a deflação não provoca recessões (ou depressões como eram conhecidas antes da II Guerra Mundial), o que é que as provoca? E por que razão foi ela tão vincada durante a Grande Depressão? De acordo com os economistas da Escola Austríaca, as recessões partilham a mesma fonte: a inflação artificial da oferta monetária. O subsequente "investimento erróneo" causado por taxas de juro artificialmente baixas é evidenciado quando as taxas de juro regressam ao seu nível natural em resultado da dinâmica da oferta e procura de poupança.

Na recessão resultante, haja reembolso ou incumprimento dos empréstimos concedidos em regime de reservas fraccionárias, se um banco central contrair a oferta monetária, e / ou se a procura de moeda aumentar de forma significativa, poderá ocorrer deflação. Mais frequentemente, porém, quando os banqueiros centrais expandem freneticamente a oferta de moeda no início de uma recessão, a inflação (ou pelo menos a não-deflação) irá verificar-se. Deste modo, a deflação, por vezes um sintoma, tem sido injustamente acusada de ser uma fonte recessiva.

Mas os banqueiros centrais de hoje não partilham desta convicção. Em 2002, Ben Bernanke declarou que "a deflação sustentada pode ser altamente destrutiva para uma economia moderna e deve ser fortemente combatida". A actual presidente da Reserva Federal, Janet Yellen, partilha das suas preocupações:
É concebível que esta inflação muito baixa se possa transformar em deflação. Pior ainda, caso a deflação se viesse a intensificar, poder-nos-íamos encontrar numa espiral devastadora onde os preços caíssem a um ritmo cada vez mais rápido e a actividade económica se afundasse cada vez mais.
Agora libertos de todas as restrições do padrão-ouro e tendo de arcar com a enorme dívida pública, em qualquer cenário possível onde o espectro da deflação compita contra a devastação da inflação, os preconceitos e fobias dos banqueiros centrais escolherão a última. Esta escolha é tão inevitável quanto será devastadora.

5 comentários:

Vivendi disse...

Excelente...

Uma pena que este assunto não entre nas universidades.

Eduardo Freitas disse...

Vivendi,

David Stockman, numa peça de antologia, na forma como na substância, escrita ontem: "A América é governada por um gangue não-eleito de doutorados (PHDs) que essencialmente se auto-perpetuam."

De há muito que a universidade não é outra coisa (desde Pombal, cá pelo burgo). Não admira, pois, que a ortodoxia se perpetue.

floribundus disse...

o gang dos srs prof drs assusta-me pelo efeito pernicioso da continuidade

como dizia Brito Camacho
'só mudam as moscas'

em França até Lili Caeças do sítio entrou para o governo

segredo de alcova

Vivendi disse...

Caro Eduardo,

Resumindo sucintamente...

«A divulgação da ideologia pelo ensino conduz sempre à instauração do sistema político correspondente. A Universidade do Estado é a Universidade Pombalina. Foi criada com uma ideologia, a do iluminismo, da qual resultou o falso liberalismo do século passado. Ao iluminismo sucedeu o positivismo, comandado por Teófilo Braga, que deu origem ao liberalismo ignorante, corrupto, anti-clerical e anti-sindicalista da 1.ª República. O positivismo - como mostra H. Marcuse no livro "Razão e Revolução" - prepara mentalmente o marxismo. Com efeito, a nossa Universidade substituiu, nos anos quarenta, o positivismo pelo marxismo e o resultado foi a instauração do actual socialismo».

Orlando Vitorino («De uma sessão com estudantes na Faculdade de Direito de Lisboa», in Presidenciais 86).

http://liceu-aristotelico.blogspot.com.br/2014/04/da-faculdade-de-teologia-e-da-crise.html

Valha-nos os poucos blogues da praça que nos vai permitindo manter a lucidez.

Eduardo Freitas disse...

Caro Vivendi,

Devo a Orlando Vitorino, que descobri em 1983 aquando da publicação da sua "Exaltação da Filosofia Derrotada", a primeira e significativa mudança de rumo na minha leitura do mundo (e do nosso "burgo", claro).

E foi exactamente ao tentar "reaver", sem grande esperança, uma passagem de uma entrevista de Orlando Vitorino, de que me recordava em termos imprecisos, que descobri o "Liceu Aristotélico". Com ele, encontrei exactamente o que procurava e, claro está, um impressionante repositório de grande valia do pensamento filosófico português contemporâneo.