A permanente intoxicação a que somos diariamente sujeitos vem instilando a ideia - infelizmente com muito sucesso, reconheça-se, tanto à "esquerda" como à "direita" - de que os mercados precisam de ser constantemente vigiados e regulados de modo a evitar as suas inerentes e tenebrosas "falhas". Há todavia um mercado, determinante para a vida social, em que se repudiaria por absurda uma qualquer intervenção burocrática - o mercado do enamoramento. A contrario, isso significa que consideramos estar em presença de um mercado que funciona bem. Mas se esse bom funcionamento é reconhecido, por que razão outros que lhe são próximos são alvo de intervenção estatal? É este o mote de um estimulante ensaio da autoria de Julian Adorney de que traduzi o excerto inicial e final (destaques meus) e serviu de título ao presente post.
Para os defensores do estado, a "anarquia" é um conceito assustador. Eles alegam que a intervenção estatal é necessária à nossa protecção pois que, na sua ausência, instalar-se-ia o inferno.
Mas na realidade vivemos todos os dias sob anarquia num dos aspectos mais importantes das nossas vidas: o namoro. Todos os dias as pessoas conhecem outras pessoas, têm encontros sentimentais, sexo casual, apaixonam-se e separam-se. Tudo isto sem que haja intervenção estatal.
O namoro, apesar de raramente envolver a troca directa de serviços por dinheiro, não deixa de ser um mercado como é o mercado de trabalho. As partes interessadas procuram relacionamentos mutuamente benéficos com outras pessoas, que têm o que aquelas precisam e pretendem o que estas oferecem. Os homens heterossexuais sozinhos, por exemplo, procuram relacionamentos reciprocamente agradáveis com mulheres heterossexuais que estejam disponíveis. Se duas pessoas pretendem um relacionamento com uma mesma pessoa, com frequência lutarão por ela (pense-se em The Bachelor). Isto mimetiza o modo como dois empregadores que queiram ambos contratar o mesmo empregado poderão vir a lutar por ele - por exemplo, através de sucessivas propostas remuneratórias.
Este mercado do namoro é, praticamente, anarquia pura. Não há nenhum burocrata estatal a dizer com quem cada um deverá namorar. As mulheres brancas heterossexuais não estão legalmente obrigadas a namorar exclusivamente homens que sejam brancos heterossexuais. E embora a conduta sexual com menores de idade seja proibida, qualquer pessoa acima dos dezoito anos pode namorar outra pessoa maior de idade. […]
Assim sendo, por que razão os estatistas aceitam a anarquia no namoro, ao passo que exigem a intervenção estatal noutras áreas?
Em parte, crêem que o relacionamento amoroso é algo de demasiado pessoal para envolver agentes estatais. E é-o. Uma relação especial com uma outra pessoa reflecte aspectos únicos e privados da sua vida com que o estado nada tem a ver. Mas esse argumento cai por terra, porque o namoro não é o único aspecto da vida pessoal de cada um. O mesmo sucede com o emprego, onde ele, ou ela, despende muito tempo na aprendizagem daquilo que é necessário para criar um produto ou serviço com valor. Muitas pessoas passam 40 horas por semana - quase um quarto da sua vida - a trabalhar. Uma carreira, tal como um relacionamento, reflecte com frequência valores únicos, ideias e paixões. É tão pessoal quanto a vida amorosa de cada um.
O mesmo sucede, aliás, com a escolha do automóvel pessoal. Tal como com as substâncias ilícitas que algumas pessoas escolhem ingerir. Ou ainda com a decisão de utilizar certos tipos de medicamentos a que a FDA [o equivalente ao Infarmed doméstico – NT] franze as sobrancelhas. Se concordarmos que as questões pessoais não devem ser regulamentadas, então teremos de aplicar esse princípio à maioria do comportamento humano.
Em parte, os estatistas acreditam que a regulamentação do mercado do namoro seria mais prejudicial que benéfica (como seria o caso). Mas se uma legislação contra os rompimentos amorosos seria absurda, será a legislação contra o despedimento - contra o fim de uma relação financeira entre duas partes que até então foi mutuamente benéfica - menos absurda? Se a existência de leis, que ditassem ser necessário namorar um homem (ou uma mulher) com certas características impostas pelo estado, representaria um insulto, serão as leis que impõem que apenas se deve trabalhar em troca de determinados salários aprovados pelo governo, menos insultuosas? Quer num caso como no outro, a acção humana é atropelada e as nossas escolhas são restringidas "para o nosso próprio bem".
Intrinsecamente, compreendemos o absurdo que constituiria a existência de regras estatais relativas ao enamoramento. Percebemos que não faz sentido envolver agentes estatais nas nossas vidas privadas, e de como as suas tentativas de interferir no mercado de casamento apenas agravam os problemas. Damo-nos conta de quão débil é a alegação de que o estado precisa de estabelecer regras e regulamentos porque os agentes privados não o conseguem fazer. Não estará na hora de aplicar essas tomadas de consciência a outros mercados?
3 comentários:
o MONSTRO +/- socialista,
eufemisticamente designado por estado (comatoso o actual)
tem necessidade de justificar a sua presença e intervenção
quando cheira a dinheiro
''e tão lindo o maganão !'
Errado.. O Estado já mete o bedelho na nossa vida privada há muito tempo... É só relembrar as sucessivas alterações às leis relacionados com o casamento, divórcio, guarda dos filhos, heranças, testamentos (o último foi o testamento vital) etc... já para não falar da alteração recente da definição do que é casamento... e mais, além das alterações jurídicas, ainda temos as redefinições que foram sendo introduzidas ao longo do tempo sobre a distinção entre sexo e género, orientação sexual, etc. Redefinições essas que foram entretanto introduzidas na actual constituição.. por isso não será de estranhar que se lembrem de regulamentar também o namoro...
Maria Rebelo
Cara Maria Rebelo,
Agradecendo desde já o seu comentário, permita-me as seguintes observações:
1 - A tese do artigo - o da natureza "anárquica" mas "eficiente" do mercado do namoro -, em nada contradiz o facto de que o casamento e o divórcio, por exemplo, sejam, como bem refere, altamente regulados pelo estado. Aliás, o próprio autor expressamente o refere num segmento do artigo que não cheguei a traduzir por razões de brevidade.
2 - Se aventa a hipótese de, um dia, tal como refere o autor do texto, poder vir a haver um "Ministério do Namoro Seguro e Responsável" não serei eu a excluí-la liminarmente. Esperemos, porém, que deste último reduto possa surgir o inicio da inversão do estatismo sufocante em que crescentemente vivemos porque - assim o afirmam os seus defensores - há que prevenir as "falhas de mercado".
Saudações,
Eduardo Freitas
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