terça-feira, 7 de outubro de 2014

A vacuidade do "nós" político

No Jornal de Negócios (edição em papel) de 24 de Setembro último, o título de "A Cor do Dinheiro", a coluna diária de Camilo Lourenço (CL), rezava: "Estamos a repetir os erros do passado". Em destaque, alertava-se: "Portugal vai voltar a apostar no modelo errado de crescimento: o PIB será puxado pelo consumo (o investimento estagnou) e não pelas exportações."

O recurso à utilização da 1ª pessoa do plural nos temas políticos e económicos tornou-se tão comum, que, frequentemente, não damos conta do abuso que essa prática encerra. Mas que raio de "erro do passado" estou eu, Eduardo Freitas, a tornar a cometer? Quem é CL - por quem eu, aliás, até nutro alguma simpatia - para me estar a acusar implicitamente de querer voltar "a viver acima das minhas possibilidades"? Mas quem é que lhe disse que isso alguma vez me sucedeu (como a tantas outras pessoas)? E que dizer desta personificação da entidade Portugal que lhe confere uma vontade, uma (ir)racionalidade e um comandado devir porque o "Estado somos todos nós"? Implicitamente, e talvez mesmo contrariando a perspectiva do próprio CL, está a conferir ao Estado - e só a ele - a "chave" do sucesso ou insucesso económico de todo o país, sendo que as famílias e as empresas mais não são que meros agentes reactivos ora à largueza estatal (sob a forma de subsídios, ajudas, aumentos salariais e ads transferências sociais, etc.) ora à sua terrível "austeridade" (os "cortes"). O Estado oscila, pois, entre o Salvador e o Vilão, entre o "crescimento" e o "empobrecimento".

O artigo de Pierre Lemieux, de onde roubei o título do post, endereça algumas destas questões. Seguem-se alguns excertos (tradução e inserção de imagens da minha responsabilidade) que creio inteligíveis por não iniciados (embora todo o artigo seja, a meu ver, interessante):
We, Yevgeny Zamyatin
É quase impossível ler um jornal ou ouvir um discurso de um político sem tropeçar no padronizado "nós, enquanto sociedade" ou numa das suas variantes. "Sabem, nós vamos ter de fazer escolhas enquanto sociedade", disse o presidente Barack Obama referindo-se à vigilância da NSA. Até mesmo alguns economistas, que tinham a obrigação de estar mais atentos, caem nesta armadilha. Jonathan Gruber, um economista do MIT e um dos arquitectos do Obamacare, declarou: "Nós decidimos, enquanto sociedade, que não queremos que as pessoas tenham apólices de seguros de saúde que as exponham ao risco de incorrer em despesas de mais de seis mil dólares a pagar do seu próprio bolso."

O mesmo problema existe em expressões como "do ponto de vista da sociedade" ou "a sociedade como um todo" como ainda na personificação de países, como em "a América pensa ou faz, isso ou aquilo". Quando um vice-ministro afegão para os Assuntos Sociais disse que "[o] Afeganistão é um país islâmico e nós queremos que os nossos filhos sejam criados segundo os costumes islâmicos", ele estava a fazer o mesmo tipo de afirmação genérica, só que envolto numa bandeira diferente.

A verdade é que este "nós" colectivo não tem significado científico.

O "nós" colectivo pode fazer sentido quando respeita a um grupo contratual ("Nós na Ford produzimos excelentes automóveis") ou a um grupo constituído ou imaginado com o qual alguém se pretenda identificar. Mas para uma sociedade composta de diferentes indivíduos com diferentes preferências, onde é suposto que todos os indivíduos tenham igual importância, o "nós" colectivo não faz sentido. […]

Excepto, talvez, ao nível muito abstracto de um contrato social, expressões como "nós, enquanto sociedade" não têm significado determinável, a não ser para ilustrar "as pessoas que, como eu, impõem as suas preferências e escolhas aos outros". […]

Pierre Lemieux, 6-10-2014

3 comentários:

BC disse...

E a expressão que mais me irrita nos políticos portugueses e que é usada à direita e à esquerda "Os portugueses sabem..." ou "os portugueses querem..."

JS disse...

Também uma velha pecha minha.
Em politicamente correcto escreve-se: "o Governo reduziu os impostos". Soa bem.

Logo a seguir explica-se "a nossa economia está com dificuldades", falta o "porque o Governo está a falhar".

Soa tudo a destino, a fado, quintessência....

floribundus disse...

AAA no i
aqui nós são todos ou a maioria

«A Noruega tem um fundo de 800 mil milhões de dólares criado com as receitas do petróleo. A sua dimensão é de tal ordem que, caso fosse utilizado no momento presente, tornaria milionários todos os noruegueses. No entanto, e apesar disso, foi decidido guardá-lo e aumentá-lo todos os anos.»

Costa e outros esfregavam as mãos de
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