sábado, 8 de fevereiro de 2014

A Grande Guerra 1914-1918 – Algumas notas e fragmentos (V)

A questão da responsabilidade pela eclosão do conflito


Abaixo se transcreve a que ficou conhecida pela "Cláusula da Culpa da Guerra" inscrita no Tratado de Versalhes (figurado na imagem, na versão inglesa) através da qual se "estabelecia" a questão da atribuição da responsabilidade moral pelo início da guerra e, em consequência, a imposição de obrigações de indemnização da Alemanha aos Aliados.
Artigo 231º

Os Governos aliados e associados declaram e a Alemanha reconhece que a Alemanha e os seus aliados são responsáveis, por deles ter sido a causa, por todas as perdas e por todos os prejuízos sofridos pelos Governos aliados e associados e pelos seus nacionais em consequência da guerra, que lhes foi imposta pela agressão da Alemanha e dos seus aliados.
Não foi preciso esperar muito tempo para que esta "história escrita pelos vencedores" fosse contestada. Por exemplo, em 1922, Albert Jay Nock fez publicar, sob pseudónimo, The Myth of a Guilty Nation, onde desafiava abertamente a narrativa oficial, ou seja, a suposta isenção de responsabilidades por parte dos Aliados. Mais tarde, em 1952, Charles Tansill, um eminente historiador revisionista que se dedicou em particular ao estudo das I e II Guerras Mundiais, observava em retrospectiva (minha tradução): 
"O armistício de 11 de Novembro de 1918, pôs fim à I Guerra Mundial, mas marcou o início de uma batalha travada com livros que continua até os dias de hoje. A responsabilidade pela eclosão do conflito foi levianamente colocada pelos historiadores aliados sobre os ombros dos estadistas das potências centrais. Os historiadores alemães responderam com uma enxurrada de livros e panfletos que encheram as prateleiras de muitas bibliotecas, e os chamados "revisionistas" de muitas origens alimentaram esta maré crescente ao acrescentarem monografias que desafiavam a tese aliada da culpa da guerra. Este debate decorria ainda de forma veemente quando a II Guerra Mundial eclodiu em 1939 e a atenção académica se deslocou para a questão da responsabilidade por esta mais recente expressão de loucura marcial." (Excerto inicial do prefácio à primeira edição, de 1952, de Back Door to War: The Roosevelt Foreign Policy 1933-1941)
Ralph Raico, uma referência contemporânea de que me venho socorrendo neste tema, refere aqui que a biblioteca de Yale possuía, em 2004, cerca de 30 mil livros sobre a I Guerra Mundial publicados até 1977 e outros 5 mil de então em diante. Na aproximação aos cem anos sobre o início da Grande Tragédia, não é de admirar o surgimento de uma nova "enxurrada" de livros nos escaparates (físicos e digitais) onde se continua a disputar o tema da "culpa". É assim com justeza que, como Raico observava, esta seja "a outra guerra que nunca acaba".

Levado pelo meu parceiro de blogue a investir no produto aqui proposto, do qual obtive um muito satisfatório retorno, é agora a minha vez de propor ao leitor a leitura de um texto recente, também de Paul Gottfried, onde precisamente se aborda este tema, aprofundando alguns dos aspectos contidos na entrevista que deu a Tom Woods, e se conclui, com evidência bastante, pelo errado teor do supra referido artigo 231º e dos consequentes horrores que se lhe seguiram. Como o título de um dos livros recentes sobre a matéria - que não li  - bem sumariza, a I Grande Guerra foi The War that Ended Peace.

Um texto que julgo também de interesse como contributo para a compreensão da vulgata da intrínseca "perversidade alemã", que por aí corre nos nossos dias, como "explicação conveniente" de pecados próprios. Assinalo também como muito relevante mais um exemplo de um intelectual - Konrad Canis - cuja obra, por decisiva que seja, permanece quase desconhecida fora da Alemanha por não ter sido (ainda?) traduzida para a língua inglesa. O mesmo sucedeu com Ludwig von Mises. Enquanto o texto de Keynes, Economic Consequences of the Peace (1919), conheceu, aliás justamente, larga divulgação,  um texto contemporâneo de Mises, escrito uns meses antes no mesmo ano - Nation, History and Economy -, teve que esperar até 1983 para conhecer a sua primeira edição em inglês!

A tradução que se segue é de minha inteira responsabilidade bem como dos links e notas nele introduzidos.
Por Paul Gottfried
21 de Janeiro de 2014

Sonambulismo suicida (Sleepwak to Suicide)

Talvez nenhuma outra guerra tenha sido abordada de forma mais tendenciosa e, nas últimas décadas, mais inadequada, que a Primeira Guerra Mundial. Desde os anos 60 que se fixou uma visão deste conflito nos círculos académicos e jornalísticos que coloca a culpa de modo quase exclusivo num dos lados. O governo alemão, liderado por um perverso e autoritário imperador e seu belicoso estado-maior, desencadeou um combate que custou mais de 30 milhões de vidas e uma destruição incalculável no continente europeu.

Segundo o académico Fritz Fischer - que se tornou o favorito da esquerda alemã, apesar do seu passado de leal Nazi - a guerra foi planeada e iniciada por uma Alemanha empenhada em dominar o mundo. A contribuição dos outros beligerantes para o iniciar das hostilidades em 1914, sugere Fischer no seu livro de 1961, Germany’s Bid for World Power[1], foi inconsequente. O resto da Europa foi arrastado para uma luta que a Alemanha havia planeado durante décadas, uma conflagração iniciada pela sua classe dirigente antidemocrática e por um povo alegremente ultra-nacionalista.

Uma luta de gatos: as tensões entre as Grandes Potências em 1905 figuradas por Eduardo VII,
pelo kaiser Guilherme II e pelo ministro dos Negócios Estrangeiros francês, Théophile Delcassé,
que disputam a sua influência sobre Marrocos. O título corresponde a "O terceiro ladrão".
Retirado daqui.
As defesas da tese de Fischer, como de outras versões relativas à eclosão da Grande Guerra que apontam para a exclusiva responsabilidade alemã ou austro-alemã, foram motivadas por considerações de ordem moral e ideológica. Infelizmente, há factos que os historiadores, até há bem pouco tempo, tentaram cuidadosamente evitar. Como os críticos da posição de Fischer já evidenciavam nos primeiros anos da década de 60, atribuir ao seu próprio país, que já arcava com os crimes nazis, a singularidade pelo iniciar de uma guerra europeia que lhes era anterior, baseava-se em métodos de investigação questionáveis.

Fischer e os seus seguidores ignoraram o que outros países europeus fizeram para provocar a Grande Guerra, com isso manchando injustamente a reputação do chanceler alemão, Theobald von Bethmann-Hollweg – que vinha tentando denodamente resolver, havia pelo menos três anos antes do início da guerra, as divergências entre a Inglaterra e o seu país - e citado erroneamente actores-chave alemães no conflito, como o kaiser e o chefe do estado-maior alemão.

Nas últimas décadas, aqueles que escrevem histórias não pré-formatadas relativas ao desencadear da Primeira Guerra Mundial, tipicamente ignoram Fischer e os seus epígonos. Niall Ferguson em The Pity of War[2], Konrad Canis no seu massivo trabalho, em língua alemã, de três volumes[3] sobre os fracassos da diplomacia alemã que conduziram ao "abismo" de 1914, Christopher Clark em The Sleepwalkers[4], e Sean McMeekin em The Russian Origins of First World War[5], todos eles produziram respeitáveis estudos sobre a Grande Guerra que são claramente incompatíveis com a tese de Fischer da exclusiva culpa alemã.

Todas as Grandes Potências se comportaram de modo temerário, e é a seu crédito que historiadores mais escrupulosos não poupam nenhum dos actores no lado dos Aliados. O desastre evitável de 1914 ensina-nos, de acordo com Christopher Clark, de que modo as Grandes Potências "sonambularam" a caminho de uma guerra de que a civilização europeia nunca recuperou. A Rússia, nas suas tentativas de desmantelar a Turquia e controlar os Dardanelos; a Grã-Bretanha, nos seus esforços para reduzir o poder de um rival, mesmo correndo o risco de cercar o Império Alemão com alianças hostis; a Sérvia, nas suas tentativas de se separar do Império Habsburgo; e a França, no seu desesperado anseio de punir os alemães pela derrota na Guerra Franco-Prussiana, todos ajudaram a pôr lenha na fogueira.

Canis mostrou, com um detalhe impressionante, como a política externa alemã, após a queda de Bismarck, perdeu o rumo nas décadas seguintes. O Programa Naval alemão, projectado para alcançar um rácio de 3:5 relativamente à marinha britânica, que era então a maior do mundo, constituiu uma irritação para os líderes políticos britânicos. Permitiu a incendiários como Winston Churchill - que se tornou responsável pela Marinha em 1911 - exagerar o ódio alemão para com a Inglaterra, que na verdade nunca foi particularmente acentuado, como Canis documenta através da imprensa alemã.

O governo alemão, ingenuamente, pensou que poderia criar uma marinha suficientemente grande para forçar os britânicos a estabelecer uma aliança com a sua potência companheira da Europa do Norte. As famílias reais dos dois países estavam intimamente relacionadas, e o kaiser acreditava que os seus primos britânicos nunca entrariam em guerra com ele - pelo contrário, procurariam a sua amizade - se não pudessem lançar um bloqueio sobre o seu litoral.

O kaiser estava errado. Embora Bethmann-Hollweg tenha conseguido conter o programa de construção naval alemã em 1912, o governo britânico prosseguiu na sua escalada e enredou ainda mais o seu país na teia de alianças com a Rússia contra os alemães. Os britânicos conseguiram encurralar os alemães, mesmo antes do início da guerra e, em seguida, impuseram o que foi provavelmente um bloqueio ilegal, que visou provocar a fome, até 1919[6].

Niall Ferguson argumenta de forma convincente que, acaso a Grã-Bretanha e os EUA nunca tivessem entrado na guerra e mesmo se as Potências Centrais viessem a prevalecer, após um longo e sangrento conflito, a Grã-Bretanha teria permanecido a primeira potência da Europa, à custa da sua enorme marinha, um império extenso, e um avanço económico sobre os outros países europeus. Independentemente do resultado da guerra, os EUA iriam um dia tornar-se na maior potência mundial devido à sua riqueza industrial e agrícola.

Retirado daqui
Tendo as coisas sido como foram, a intervenção americana junto dos Aliados (leia-se, dos britânicos) sempre foi uma questão de tempo. O governo dos EUA, como os historiadores Thomas Fleming e Walter Karp demonstraram, nunca foi realmente neutral. Qualquer crise que colocasse as Potências Centrais numa posição difícil foi explorada pela fervorosamente anglófila classe política americana. O naufrágio do Lusitânia, provocado por um submarino alemão em 1915, não foi um acto beligerante contra os EUA: o navio estava carregado com armas e outro contrabando[7] que tinham os britânicos como destinatários. O governo alemão havia alertado os americanos e outros países neutrais para que [os seus cidadãos - NT] não embarcassem no navio porque este constituía um alvo justo, como de facto era.

Já em 1914, o embaixador americano em Londres e um amigo íntimo do presidente Wilson, Walter Hines Page, tinha comunicado aos líderes britânicos que iria fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para levar os EUA até à guerra do lado da Inglaterra, logo que um pretexto apropriado pudesse ser encontrado. Nenhuma garantia similar foi dada pelo homólogo de Page em Berlim nas suas conversas com os líderes da Alemanha.

Retirado daqui
Mas Woodrow Wilson e o seu partido não foram os principais defensores do envolvimento dos EUA na carnificina. Wilson adiou esse envolvimento diante da histeria republicana que clamava por uma muito mais rápida intervenção para se erguerem, com a Inglaterra, na defesa da "democracia". Os neoconservadores de hoje não são os primeiros a falar da "Anglosfera". Celebridades republicanas da época como Theodore Roosevelt, Elihu Root e Henry Cabot Lodge exigiam em 1914 que entrássemos numa guerra europeia de que deveríamos ter permanecido de fora. Os horríveis hábitos do Partido Republicano vêm de muito longe.

O presidente George W. Bush ultrapassou-se nos apelos que dirigiu à América para libertar o resto do mundo, uma manifestação de chauvinismo de um dos principais líderes europeus nas vésperas da Primeira Guerra Mundial. Mas um comportamento sem discernimento não fez recair sobre nós as consequências que sucederam aos "sonâmbulos" da história de Christopher Clark. Temos sorte por o nosso país se localizar onde se encontra e por sermos muito mais ricos e fortes relativamente a outros estados. O que disse Bismarck acerca de Deus cuidar dos tolos, dos bêbados e dos Estados Unidos da América?
Notas:

[1] - Provavelmente levado pelo seu profundo conhecimento da língua e cultura alemãs, Paul Gottfried terá traduzido directamente do alemão o título do livro de Fischer, Griff nach der Weltmacht: Die Kriegzielpolitik des kaiserlichen Deutschland 1914–1918. A edição em língua inglesa, de 1968, viria a ter por título Germany's Aims in the First World War.

[2] - A primeira edição do livro ocorreu em 1998.


[4] - A primeira edição é de 2013.

[5] - A primeira edição é de 2011.

[6] - Tenha-se pois em atenção que o bloqueio se prolongou ainda por oito meses após a assinatura do armistício o que veio prolongar a situação de fome generalizada que se verificava na Alemanha.

[7] - A referência ao "contrabando de guerra", noção relevante no domínio do direito internacional. Distingue-se entre contrabando "absoluto" - bens cuja utilização se presume ter um destino de utilização exclusivamente bélica sendo, nessa medida, legalmente apresáveis -, e "contrabando condicional", isto é, bens ou mercadorias susceptíveis de ser legalmente apreendidas em função da utilização que lhes vier a ser dada. Por exemplo, algodão destinado ao fabrico de roupas para a população civil não é contrabando de guerra embora já o seja se tiver por destino o fabrico de fardas para o exército. A lassidão destas definições levou a que, por mero artifício jurídico, que não de costume, se tenha tornado "contrabando absoluto" o comércio, mesmo com países neutrais (entre outros, o caso da Holanda), de bens alimentares assim "legitimando" o bloqueio, também alimentar, imposto sobre a Alemanha durante toda a guerra e, como já vimos, mesmo depois dela ter acabado.

2 comentários:

Floribundus disse...

deixei definitivamente e sem saudades a minha aldeia alentejana há 72 anos

lembro-me que se dizia:
'a culpa é sempre do morto'

o desconhecimento dos povos germânicos e eslavos por parte do ocidente nunca trouxe nada de bom.

há anos ouvi guterres, palerma politico, tal como tózero verdadeiros 'estradistas', a dizer mal da Áustria

o rectângulo será sempre 'o da joana'

LV disse...

@Eduardo Freitas,
Oportuna escolha e tradução. Da entrevista tinha colhido outro fruto - relativo à 1ªGG - de que a intervenção americana deu início à vaga do liberalismo voluntarista de inspiração socialista que visa implantar a democracia, nem que seja pela força, mundialmente. O que haverá como justificação de fundo para esse voluntarismo? Ora este artigo indicia uma resposta: mais uma luta de poder pela liderança mundial, substituindo o protagonismo inglês no xadrez geopolítico.
Caso para lembrar a célebre conclusão que de boas intenções...
Saudações,
LV