Uma leitura interpretativa dos acontecimentos que têm vindo a ocorrer em Hong Kong por parte de Eric Margolis, um jornalista e escritor ferozmente independente e cuja solidez das suas análises se funda numa longa experiência adquirida in situ conjugada com um sólido conhecimento da história dos povos. São estas as razões da frequente presença por aqui sempre que se abordam temas entre o meridiano ocidental do Médio Oriente e o mais a oriente na China. A tradução é, como habitualmente, da minha responsabilidade.
3 de Outubro de 2014
Por Eric Margolis
Hong Kong Está a Ferver – Mas, até Ver, Suavemente
Hong Kong Boiling – But Gently, So Far
Hong Kong vive sob uma fervura suave. No momento em que escrevo, dezenas de milhares de estudantes continuam a manifestar-se de forma polida, exigindo que o chefe do governo nomeado por Pequim, CY Leung, se demita e seja substituído por recurso a eleições livres.
A política poucas vezes faz deflectir a obsessão maníaca de Hong Kong com os negócios e a finança, mas a onda de descontentamento da juventude representa para a China um dos seus maiores desafios de origem popular desde a revolta de Tiananmen em 1989 - que a China insiste nunca ter acontecido.
Eric Margolis
Até agora, o Partido Comunista da China e o seu novo chefe, o “falcão” Xi Jinping, têm-se contido sem recorrer a medidas de repressão dura para travar as manifestações pacíficas. Agora, todavia, os líderes dos protestos ameaçam apoderar-se de edifícios governamentais, a menos que Pequim desista dos planos para escolher o novo governo de Hong Kong em 2017. Este é um desafio directo à autoridade nacional de Pequim.
Considerando que o regime de Pequim é impiedoso no esmagamento dos protestos dos uigures muçulmanos na estratégica província de Xinjiang, a mais a ocidente da China, as exigências de Hong Kong no sentido de conseguir uma verdadeira autonomia e auto-governo surgem num momento particularmente difícil para o Partido Comunista, que está a festejar o seu 65 º aniversário da tomada de poder.
Os media ocidentais, frequentemente hostis para com a China, estão a retratar a revolta como uma luta de democratas contra a ditadura do partido. A realidade é bem mais complexa. Hong Kong nunca viveu em democracia sob o domínio imperial britânico: o território foi administrado por um autocrático governador colonial britânico - e muito bem gerido.
Quando a China assumiu o controlo em 1997 do há muito perdido território de Hong Kong [desde os inícios de 1841 – N.T.] e prometeu manter o seu estatuto especial de autonomia durante 50 anos, à excepção dos assuntos de defesa e de política externa. A China designou o chefe de governo da ex-colónia, mas alguma latitude foi concedida aos locais.
Este arranjo de "um estado, dois sistemas" funcionou bem. Mas uma geração nova quer democracia e poder político real. É improvável que Pequim venha alguma vez a aceitar semelhante evolução. Hong Kong está isolado do resto da China e auto-contido, mas Pequim teme que a internet e as redes sociais disseminem o vírus da democracia - e mesmo do caos - ao resto da China.
A liderança chinesa tem um profundo receio pelas insurreições. Ainda que em grande parte desconhecida para os ocidentais, a China passou por uma revolta cataclísmica de 1850 até aos finais de 1860, a Rebelião Taiping. Um desconhecido, Hong Kiuquan, proclamou-se a si próprio irmão mais novo de Jesus Cristo e lançou uma rebelião camponesa contra a debilitada dinastia Manchu Qing que viria a custar a vida a mais de 20 milhões de pessoas. Forças ocidentais comandadas pelo general Charles Gordon - a partir de então conhecido por Gordon, o "Chinês" - acabaram finalmente por esmagar o Exército Celestial Taiping.
O profundo temor de Pequim relativamente ao Falun Gong - um excêntrico movimento religioso de hoje -, reflecte o duradouro perigo de uma nova insurreição ao estilo Taping. Gordon continuou a lutar contra um outro movimento nacionalista-religioso, os dervixes do Sudão. Acabaria morto em Cartum.
As autoridades de Pequim estão também atentas às maquinações ocidentais em Hong Kong e e Xinjiang. Várias organizações não-governamentais (ONGs) financiadas pelos EUA operam em Hong Kong. Grupos similares, nomeadamente a norte-americana Fundação Nacional pela Democracia [“National Endowment for Democracy”- N.T.], estiveram envolvidos em tentativas de derrube dos governos da Geórgia, Ucrânia, Irão e Rússia. Estes grupos foram muito eficazes na utilização das redes sociais para incitar o descontentamento e desencadear grandes comícios anti-governamentais.
Em consequência, a polícia de segurança chinesa está a aumentar a repressão. Pequim também sabe que entre os designados "campos de terroristas" no Afeganistão aquando da invasão dos EUA em 2001, estavam bases geridas pela CIA para treinar uigures para combater na China ocidental. O público norte-americano nunca informado da existência destes campos. A maioria dos outros supostos "campos de terroristas" no Afeganistão estavam na realidade a ser utilizados pelos serviços secretos do Paquistão para treinar guerrilheiros para lutar na Caxemira governada pela Índia.
Enquanto isso, Pequim observa também com desconfiança os esforços norte-americanos, que começaram sob a administração Bush, para atrair a Índia a uma aliança militar e aumentar ainda mais o seu gigantesco mercado de armamentos.
Estão a decorrer conversações secretas entre Washington e Nova Deli para levar a Índia a assumir uma intervenção económica mais extensa e um novo papel militar Afeganistão.
Novos sistemas de armas fornecidos pelos EUA reforçaram as capacidades militares da Índia contra o principal rival, a China. Neste momento, as tropas indianas e chinesas estão em confronto nas altas montanhas de Ladakh, cuidadosamente vigiadas pelo Paquistão, um aliado próximo da China.
Os indianos são demasiado inteligentes e independentes de espírito para se virem a tornar em meras tropas nativas (cipaios) de Washington. Mas irão certamente usar a sua nova influência nos EUA para promover o seu poder face à China. Pequim está agudamente consciente desse desenvolvimento e tende a sobrestimar a ameaça da aliança estratégica EUA-Índia. Os chineses da linha dura têm a sombria suspeita de que os EUA planeiam desmembrar a China, começando com Xinjiang e Hong Kong.
Num plano mais prosaico, há muito que Hong Kong e Xangai são grandes rivais. Anos atrás, Hong Kong era a única porta de entrada para a China comunista. Hoje, a maioria das portas comerciais da China está aberta, reduzindo consideravelmente a importância comercial e financeira de Hong Kong. O Partido há muito que favorece a mais fiável Xangai relativamente à sobre-ocidentalizada Hong Kong.
O lento declínio de Hong Kong e a ascensão de Xangai e Shenzen estão a gerar stress económico na ex-colónia. Curiosamente, muitos dos originais homens-fortes de Hong Kong vieram originalmente de Xangai.
A China seria muito imprudente se enviasse o exército para Hong Kong num momento em que a cidade está a tentar tornar-se no epicentro mundial do comércio e da finança. De modo que um acordo de bastidores possa ser provável e no qual Pequim faça algumas concessões sem perder demasiado a face. Caso contrário, a tempestade no bule de Hong Kong poderia tornar-se num tsunami político para o resto da permanentemente inquieta China.
3 comentários:
há 7 anos meu filho passou 1 mês em Xinjiang
concluiu que era um barril de pólvora.
adorou os nativos.
há 3 anos visitou as cidades portuárias
e a vida pareceu-lhe muito ocidentalizada e pouco de acordo com os canones comunistas
Tem inteira razao: este E.M. tem uma analise e 1ª. Nem parece americano.
Caro floribundus,
Numa perspectiva diacrónica, dir-se-ia irrefutável que pelo menos parte dos cânones foram postos na "gaveta", para usar uma expressão que ficou célebre entre nós. E sim, também tenho ideia - como o autor do texto tem - que Xinjiang é um vulcão à espera de uma fresta por onde a erupção irá eclodir.
Caro António Cristóvão,
Não confundamos os americanos com a elite que os tem (des)governado!
Saudações
Eduardo Freitas
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