terça-feira, 3 de março de 2015

Ucrânia, um debate por fazer (II)

Prosseguimos hoje com a publicação da tradução do texto, co-assinado por Václav Klaus e Jiří Weigl, cuja primeira parte foi publicada aqui. Depois de terem proporcionado um enquadramento histórico do espaço geográfico a que corresponde hoje a Ucrânia e dos povos que a habitam - A herança difícil do passado -, os autores dissecam agora as razões que, no seu entender, explicam o insofismável fracasso do estado ucraniano pós-comunista, antes e depois da "Revolução Laranja", à luz das quais devem ser interpretados os acontecimentos recentes. Irão esquissar dois modelos que, no essencial, suportam as duas principais "narrativas" em confronto e acabam por concluir pela imperatividade de evitar que se dêem passos que tornem efectivo o que já muitos designam de Guerra Fria 2.0. (Os realces no texto são os que constam da versão em língua inglesa do artigo.)

(Continuado daqui)
Parte II: a transformação falhada da Ucrânia

Como se explicou acima, a Ucrânia nasceu após a queda do comunismo enquanto estado essencialmente não-histórico, amaldiçoado com um problema de identidade fundamental desde o primeiro dia. Isto foi sempre um impedimento sério ao desenvolvimento do país, situação que permanece até hoje.

A Europa Ocidental e os Estados Unidos, ou melhor, os político dessa parte do mundo, não vêm problemas nesse condicionamento e pensam que tudo o que é preciso é "introduzir a democracia e o estado de direito". Nada aprenderam até agora com o facto de as repetidas tentativas de "exportação da democracia" terem fracassado e que mesmo as duas décadas de apoio ocidental maciço à Bósnia-Herzegovina, artificialmente criada após a desintegração da Jugoslávia, não frutificaram. E isto para já não falar da Primavera Árabe.

Foto daqui

A Ucrânia não levou a cabo uma transformação pós-comunista consistente, como a que foi concretizada em outros países pós-comunistas. Não houve transformação política. Não foi implantado nenhum sistema padrão de partidos políticos, e o parlamento ucraniano continua a não ser um parlamento normal. As imagens que se repetem de cenas de pugilato entre os deputados dão uma boa imagem do que por lá se passa. A "Revolução Laranja" (inspirada do exterior, uma vez mais) ocorreu 20 anos após a nossa contraparte de "veludo", mas mesmo esse desfazamento não trouxe a mudança necessária.

Não houve nenhuma transformação económica consistente, embora o sistema comunista tenha sido abandonado. O resultado foi a captura da economia por clãs oligarcas, a estagnação, o declínio industrial, o desemprego elevado, a contínua dependência da Rússia, etc. A comparação com a Bielorrússia é reveladora, gostemos ou não de Lukashenko. Logo após a queda do comunismo, os dois países tinham indicadores semelhantes. Hoje, o PIB per capita na Bielorrússia é 50% maior. Esta comparação quase que constitui uma "experiência controlada". É igualmente fácil constatar que mais de 5 milhões de pessoas - 10% da população da Ucrânia - saíram do país ao longo dos últimos vinte anos.

Os inexoráveis duelos entre Iushchenko, Tymoshenko e Yanukovich (deixando de lado os actores menores) não trouxeram nada de bom. A enorme riqueza de políticos e oligarcas tal como é apresentada nos media, é algo de inimaginável na Europa Oriental, muito menos na República Checa.

Os níveis de frustração são suficientemente elevados para que sejam visíveis mesmo por não especialistas nos assuntos ucranianos. De qualquer forma, este é um país frágil e instável, facilmente vulnerável à interferência exterior. Esta não tem que assumir a forma de uma intervenção militar, é suficiente a interferência política. Basta apenas incitar aos tumultos e motins, lançar grupos da população uns contra os outros, promover jogos populistas contra todas as autoridades locais, instigar a inveja e as acusações mútuas de corrupção e roubo, e, por último mas não menos importante, a promover conflitos nacionalistas ou o ódio extremo.

Pensamos que tudo isto tem sucedido na Ucrânia. E assim continua.

Parte III: O que aconteceu na Ucrânia e à sua volta

A disputa ucraniana pode ser interpretada de uma forma mais simples e óbvia se a caracterizarmos por um modelo que, apesar de esquemático, faça desaparecer os detalhes mantendo o esqueleto descarnado da questão.

Modelo A: Teve lugar uma revolta popular autêntica em busca de democracia, independência e associação com a Europa

Este modelo baseia-se numa tese provavelmente correcta segundo a qual os ucranianos estão profunda e justificadamente insatisfeitos com a situação do seu país. Eles atribuem a razão dessa insatisfação às acções da incompetente e corrupta representação política (que repetidamente escolheram em eleições de características democráticas básicas, apesar de todos os problemas existentes), um governo que recusa o acordo de associação à União Europeia, em vez de se concentrar em "trazer o país para a Europa" e em negociar arduamente com a Rússia os preços do gás e outras coisas mais.

As pessoas participam em autênticas manifestações de massas nas ruas. Elas não se importam com as semanas ou meses de temperaturas gélidas. Quando os protestos pacíficos não produzem efeitos, as manifestações tornam-se espontaneamente mais intensas (embora o governo faça todo o tipo de concessões e não recorra a acções repressivas contra os participantes). Aos manifestantes juntam-se indivíduos treinados e altamente armados bem como grupos organizados nacionais e estrangeiros, isto sem que se verifique apoio russo ao movimento. Há a suposição geral de que a Rússia está contente com este processo de desestabilização, se é que não o apoia directamente,
neste importante país vizinho.


Depois de os manifestantes obterem a vitória nas ruas de Kiev, após a fuga do país do presidente democraticamente eleito, é criado um alegadamente verdadeiro governo popular, o exército russo intervém e ocupa a Crimeia, tal como Hitler ocupou a Checoslováquia em 1939 (a sua parte ocidental) ou Brezhnev fez em 1968 (dessa vez em toda a Checoslováquia). Em 1939 e 1968, os democratas do mundo não protestaram de forma suficientemente forte. Por isso, é agora necessário agir de forma apropriada. Até ao dia em que a democracia saia vitoriosa. A linha Hitler-Brezhnev-Putin está à vista de todos e aqueles que não a vêem, também não a viram então.

Modelo B: A insatisfação na Ucrânia foi utilizada para promover um novo confronto do Ocidente com a Rússia

O modelo B começa do mesmo modo que o modelo A. Os ucranianos estão profunda e justificadamente insatisfeitos com a situação no seu país e mostram-no de várias formas. Todavia, estamos a falar de um país que:
  • Não é exactamente europeu (por difícil que seja definir os limites da Europa);
  • É limítrofe da Rússia (embora a linha de fronteira actual seja artificial);
  • Fez parte da Rússia ou viu o seu território dominado por ela durante décadas;
  • Tem milhões de russos que nele vivem (mais de um terço da sua população) e tem de encontrar algum tipo de modus vivendi com a Rússia e de o confirmar uma e outra vez.
Esta crise, que repetidamente vem à superfície, foi escolhida como pretexto para provocar um novo confronto entre o Ocidente e a Rússia por todos aqueles que têm uma razão para desprezar a Rússia. Essas pessoas sabem muito bem que a desestabilização de um importante (o maior e mais populoso) vizinho é algo que a Rússia não pode facilmente aceitar.
  • É por isso que têm procurado dirigir a insatisfação existente cada vez mais em direcção à Rússia;
  • É por isso que têm apoiado a linha de argumentação proveniente da Ucrânia ocidental;
  • É por isso que têm fomentado o conflito entre a Ucrânia ocidental e a oriental, algo que em grande medida equivale a um conflito entre ucranianos e russos;
  • É por isso que interpretaram erroneamente as relações económicas reais entre a Ucrânia e a Rússia;
  • É por isso que pintaram a imagem da Rússia como a de uma superpotência em expansão que está ansiosamente à espera de uma oportunidade para ocupar a Ucrânia.
Não somos nenhuns defensores apaixonados da Rússia e do seu líder e sabemos que seria ingénuo e absurdo ser idealista relativamente aos interesses da Rússia a longo prazo, mas estamos de acordo com as palavras recentes de Henry Kissinger: "a demonização de Vladimir Putin não é uma política; é um álibi para a falta de uma [política]". Isto é exactamente o que está a acontecer nos Estados Unidos e na Europa Ocidental.


Depois de o putsch em Kiev se ter concretizado (inconstitucionalmente para os puristas legalistas), depois de todos aqueles que ousaram ter uma opinião diferente terem enfrentado uma violência brutal, depois da expulsão de facto do presidente democraticamente eleito, que não se atreveu a agir contra os manifestantes violentos, e depois das preocupações da parte russa da população ucraniana terem começado a aumentar progressivamente, a parte mais específica e geograficamente limitada, formalmente uma parte autónoma da Ucrânia - a Crimeia -, foi sujeita a um referendo (claramente com o consentimento e a alegria silenciosa da parte russa) no qual participou uma parte esmagadora da população, e resolutamente expressou o desejo da população da Crimeia de cessar a sua associação à Ucrânia (onde nunca pertencera antes da intervenção de Khrushchev em 1954). É óbvio que estas pessoas, não querendo permanecer num vácuo, pretendiam regressar à Rússia. É igualmente óbvio que a Rússia possa estar contente com isto (apesar dos substanciais problemas de curto prazo), mas a sequência dos acontecimentos foi diferente da veiculada pelos media tradicionais onde se alega que a Rússia anexou a Crimeia por sua exclusiva vontade.

Em linha com os seus interesses, o Ocidente interpreta o facto de a Crimeia se ter tornado parte da Rússia como um exemplo do renovado imperialismo russo. Numa conversa recente, um grande amigo nosso que viveu na Alemanha desde a ocupação russa da Checoslováquia em 1968, recusou-se a ouvir os nossos argumentos, mas admitiu um facto importante: desde a ocupação da sua pátria, o seu ódio em relação à Rússia (que contudo deveria ser um ódio contra o comunismo e a União Soviética) foi tão intenso, que o impede de ler literatura tradicional russa do século XIX. Consideramos isto irracional, mas o nosso temor decorre desta ser a interpretação dominante da situação ucraniana e das intenções da Rússia na República Checa, na Europa e provavelmente também na América. É por isso que a nossa polémica não é em defesa da Rússia e do seu presidente, mas é antes uma tentativa de prevenir passos arriscados em direcção a uma nova guerra fria da qual nós e as nossas liberdades seríamos as inevitáveis vítimas.


Esta descrição "modelo" de duas perspectivas diferentes da crise ucraniana pode ser mais desenvolvida, complementada ou enriquecida, mas estamos convencidos de que é boa para uma orientação básica. Acrescentemos que não temos por surpreendente que a maioria da população da Crimeia (composta na esmagadora maioria por russos) não deseje continuar a fazer parte de um estado que está à beira da falência, e que está a ser controlado por mais e mais pessoas e grupos do oeste, isto é da parte ocidental, não russa, da Ucrânia, pessoas cuja política dominante é a de oposição à Rússia e aos russos. Não é nenhuma surpresa que as pessoas da Crimeia queiram fazer parte de uma Rússia mais rica e mais bem-sucedida.

É igualmente importante assinalar que o exército ucraniano na Crimeia praticamente não ofereceu resistência, permitiu que tivesse sido desarmado e que, em grande parte, se tivesse passado para o outro lado - o do exército russo. Essa é uma outra ilustração da desintegração do estado ucraniano.
(Continua aqui)

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