quarta-feira, 4 de março de 2015

Ucrânia, um debate por fazer (III - conclusão)

Com este post terminamos a tradução (iniciada aqui e aqui continuada) da declaração política que o Instituto Václav Klau publicou em 15 de Abril do ano transacto a propósito dos acontecimentos na Ucrânia. Àquela data, Yakunovitch, o presidente eleito em funções, tinha fugido do país e já se consumara a secessão (anexação, segundo outros) da Crimeia. Nesta última parte, é visível que os seus autores estão a escrever tendo em especial atenção os reflexos que o desenrolar da crise ucraniana possam provocar na República Checa que, como se refere no texto, se situa na "fronteira simbólica entre o Leste e o Oeste". Não obstante, a nosso ver, essa circunstância em nada afecta a relevância do texto. Há agora oportunidade para questionar os argumentos dos "legalistas" de ocasião que oportunisticamente se esquecem que a actual situação ucraniana resultou ela própria de um putsch (inconstitucional, por força das coisas). Depois, e mais importante, para os checos como para os portugueses, como para todos os europeus que prezam a Liberdade, alerta-se para as tentativas da elite globalista de Bruxelas, em consonância com os interesses estratégicos americanos, para acelerar o processo de unificação, centralização e burocratização fazendo jus àqueles que pensam "que nunca se deve desperdiçar uma crise séria".

Uma continuação de uma boa semana.

(Continuado daqui)
Parte IV: Fundamentalismo legalista e "vida real"

Referindo-se à contínua desintegração da Ucrânia - a separação da Crimeia e a sua incorporação na Rússia, as constantes declarações de todos os tipos de "repúblicas" russas separatistas e as novas exigências de referendos visando a separação de outras partes do leste da Ucrânia -, os comentadores ocidentais apresentam vários argumentos jurídicos asseverando que tais passos estão em contradição com o quadro legal e constitucional da Ucrânia de hoje, e, portanto, são ilegais e inaceitáveis. Também isto tem que ser colocado no contexto adequado, sem tentarmos passar por especialistas em direito ucraniano. Porque a questão não é essa.

Estes argumentos, em grande medida académicos, até podem estar correctos quando se analisa a ilegalidade de alguns dos passos dados pelos separatistas, mas isso é apenas metade da verdade. A vida real está sempre à frente da lei e esta só se ajusta àquela retroactivamente. A realidade alterada induz novas leis e estas, por definição, são igualmente apenas temporárias. A vida real e as necessidades reais costumam encontrar os seus caminhos, e muito raramente as alterações legislativas conseguem acompanhá-los.

Na história recente, houve apenas um caso de uma divisão verdadeiramente constitucional de um estado e que foi legalmente posta em prática - o da federação da Checoslováquia. A desintegração da Jugoslávia, e posteriormente da Sérvia como da União Soviética, foi por natureza caótica. Foi frequente o confronto e a violência, com numerosos faits accomplis. É inútil analisar isso. A maioria dos países modernos, na Europa e no resto do mundo, obteve a sua independência em resultado de uma luta violenta, ignorando a lei da altura. Negar às pessoas esse direito, invocando a ilegalidade do separatismo, é algo de impossível. Se não o reconhecêssemos, teríamos que negar a legalidade dos Estados Unidos ou, por sinal, o nosso próprio estado, que também nasceu contrariando a Constituição do Império Austro-Húngaro em 1918.

A Europa antes da I Guerra Mundial

A aceitação internacional da alteração de fronteiras não é acima de tudo uma questão jurídica; ela depende mais da balança real de poder no país, na região ou no mundo. Neste aspecto, os tempos modernos apenas diferem da história antiga de um modo muito ténue. Caso viéssemos a insistir numa avaliação internacional e jurídica deste tipo de alterações, encontrar-nos-íamos numa armadilha fatal de contradições e de múltiplas situações de dois pesos e duas medidas.

É evidente que o caos, a anarquia e a crise económica facilitam que o Ocidente e a Rússia interfiram nos assuntos ucranianos. Também não é de estranhar que a maior parte dos russos étnicos, insatisfeita com as condições desfavoráveis na Ucrânia e receando o futuro, olhe para uma Rússia relativamente rica, estável e poderosa. O facto de a maioria deles não ter para com a Ucrânia razões de lealdade, e maciçamente se manifeste favorável à incorporação na Rússia pela via de um referendo, só pode surpreender o observador mais tendencioso. Não há portanto nenhum motivo para lançar dúvidas sobre essa atitude rejeitando as condições individuais do respectivo referendo.

Não há forma de manter a unidade da Ucrânia pela via dos argumentos jurídicos, legais e constitucionais. É igualmente impossível fazê-lo pela via dos próprios procedimentos democráticos como sejam as eleições, parlamentares ou presidenciais. Viesse o oeste a dominar o leste numas eleições ou vice-versa, isso não seria uma solução, mesmo que o vencedor tivesse uma maioria democrática e fosse portanto legítima. O futuro da Ucrânia só pode estar na vitória de um projecto à escala ampla da Ucrânia que satisfaça ambos os lados e isso é cada vez mais improvável, dada a escalada das tensões e as pressões externas crescentes.

Parte V: O abuso dos desenvolvimentos na Ucrânia visando acelerar a unificação europeia (e o enfraquecimento da democracia na Europa)

Os desenvolvimentos da Ucrânia terão uma série de consequências directas ou indirectas, no curto e no longo prazo, do ponto de vista político como do económico.

As consequências de curto prazo no plano económico são óbvias para a República Checa - uma diminuição do número de turistas da Rússia e da Ucrânia, menor movimento nos spas da Boémia ocidental, o abrandamento de certas actividades económicas e do investimento, possíveis complicações no abastecimento de energia proveniente do leste. Isso é certamente desagradável para determinados sectores empresariais checos, mas provavelmente não será fatal para o país como um todo. Mais cedo ou mais tarde as actividades deste tipo voltarão aos níveis anteriores. Mais uma vez, sabemos que é difícil para as empresas afectadas que têm negócios com a Rússia e a Ucrânia tomarem esta posição descontraída. Elas têm que se preocupar e não temos expectativa que o estado venha a conceder-lhes quaisquer compensações.

As consequências não económicas são piores e muito mais perigosas. A política internacional radicalizar-se-á; haverá um novo nível de confronto entre o Oeste e o Leste e o conflito entre a Europa Ocidental (com quem iremos alinhar) e a Rússia cada vez mais auto-confiante de Putin irá ser cada vez mais nítido. Este aumento da tensão internacional constitui uma desvantagem definitiva para a República Checa, um pequeno país na vizinhança da fronteira simbólica entre o Leste e o Oeste, e iremos pagar por isso.

A política europeia dominante, representada pelas elites em Bruxelas, vê na crise ucraniana uma oportunidade para reforçar a centralização e a unificação europeia, particularmente em direcção a uma política externa comum (concebida para silenciar as ainda diferentes políticas externas dos estados individuais da UE) e à criação de um exército conjunto europeu, uma ideia que a maioria dos estados-membros tem resistido até agora. Este novo endurecimento da unificação e centralização europeia, que muitos de nós consideram inaceitável mesmo hoje, vai contra os interesses reais da República Checa, independentemente do facto de o presidente Zeman [o actual presidente da República Checa - NT] pensar de outra forma. Tememos a limitação dos direitos civis, especialmente a liberdade de expressão, e a liberdade de discordar da opinião oficial.

Uma grande parte do mainstream político europeu (embora muito menor na Alemanha e menos ainda no sul da União Europeia) tenta, juntamente com os Estados Unidos, transformar a Rússia num "bicho-papão" do Leste, algo que é do interesse estratégico americano. A Ucrânia é apenas um instrumento nesse propósito. Também isso não é do nosso interesse pois daí não retiramos quaisquer benefícios. Talvez haja alguns benefícios para um reduzido grupo de pequenos "neocons" checos que continuam a sustentar as suas carreiras em batalhas serôdias contra o comunismo e o imperialismo russo, carreiras que somente são possíveis pelo facto de que partes da nossa população ainda dão ouvidos a propaganda desse tipo. É claramente uma actividade substituta, que manifesta uma óbvia ausência de uma agenda política positiva.

2 comentários:

Anónimo disse...

Ontem tivbe oportunidade de ver na CNN uma entrevista com o ministro da defesa da Suécia, em que este exprimia a sua preocupação com a estratégia provocatória russa em face das agressões continuadas na Crimeia e no resto da Ucrânia. Fazia ainda referencia a um acordo com a Finlândia e com a Dinamarca no sentido de uma defesa militar conjunta. E ainda ao fato de terem sido detetados nos ultimo meses submarinos russos em águias territoriais da suécia.

Eduardo Freitas disse...

Caro Anónimo,

Apesar de a Suécia não ser membro da NATO, aquele país paga um preço por essa neutralidade (noutros domínios, o mesmo se passa com a Suíça). Veja-se a situação de Julian Assange, cidadão australiano, há quase três anos confinado à embaixada do Equador em Londres, pelo facto de a Suécia não negar a possibilidade de extraditar Assange para os EUA caso ele regresse àquele país para responder a umas estranhissimas acusações de "assédio sexual". Não esqueçamos também, por exemplo, o que aconteceu a Chelsea Manning, onde reside actualmente Edward Snowden ou os 100 anos de prisão que impendem sobre Jeffrey Sterling pelo facto deste ter denunciado a "plantação" de provas pela CIA para indiciar, segundo uma recorrente estratégia, uma inexistente presença de armas nucleares no Irão.

Como referiu o visionamento da CNN, permita-me que lhe sugira a leitura deste artigo da insuspeita Foreign Affairs (número de Setembro/Outubro de 2014) - http://www.foreignaffairs.com/articles/141769/john-j-mearsheimer/why-the-ukraine-crisis-is-the-wests-fault, texto que uma CNN, ou os media convencionais, nunca se atreveria a publicitar e que, por conseguinte, não são divulgados para não perturbação da "versão oficial".

Saudações,

Eduardo Freitas