quinta-feira, 7 de maio de 2015

40 anos após o termo da Guerra do Vietname - testemunho e análise de Eric Margolis

A dia 30 de Abril último passaram 40 anos sobre a queda de Saigão (hoje cidade de Ho Chi Minh) às mãos do exército regular norte-vietnamita (imagens). Terminava assim a 2ª guerra da Indochina (uma outra designação para a guerra do Vietname), que se iniciara de forma larvar logo após o termo da 1ª (1946-1954) - quando os franceses foram forçados a abandonar as suas pretensões coloniais no sudeste asiático - para grande consternação americana - na sequência da estrondosa derrota militar sofrida em Dien Bien Phu. Era o tempo da "teoria do dominó", adoptada pela administração Eisenhower, doutrina segundo a qual era imperioso conter a "contaminação" de um país numa dada região pelo vírus comunista pois, caso contrário, a infecção espalhar-se-ia inexoravelmente aos seus vizinhos. As sucessivas administrações decidiram aumentar a sua intervenção no Vietname até que, com Lyndon Johnson, se iniciou o horror em grande escala. A derrota americana deixou marcas profundas e fez regredir, embora momentaneamente como se veria, a pulsão intervencionista no país. Não por acaso, o então (e ainda) influente Zbigniew Brezhinski gabava-se de ter conseguido atrair a então União Soviética para o seu próprio "Vietname" (quando a URSS invadiu o Afeganistão em 1979. Uns anos mais tarde (1983) será Reagan, pela via da invasão da minúscula Granada, que faria reacender o activismo militar intervencionista americano.

No texto que hoje proponho aos leitores, Eric Margolis refere a sua condição de participante directo no conflito e como a sua própria adesão inicial se desvaneceu. Passa em revista alguns dos marcos daquela guerra, das doutrinas e da geopolítica, não lhe custando encontrar paralelismos com os tempos que correm. E com os erros que se repetem. Não está optimista - «Infelizmente, parecemos ter esquecido tudo sobre a guerra do Vietname sem que tenhamos aprendido nada.»
2 de Maio de 2015
Por Eric Margolis


Eric Margolis
Corria o ano de 1967. A guerra do Vietname estava no auge.

Eu tinha 24 anos e acabara de sair da escola de pós-graduação de New York City. Tinha sido aceite na Universidade de Cambridge para fazer um doutoramento em história.

Mas não. Num acesso de patriotismo de juventude, concluí que era dever de todo o cidadão alistar-se nas forças armadas em tempo de guerra. Foi assim que me ofereci como candidato a oficial de infantaria do Exército dos EUA e enviado para a instrução básica.

A vida só pode ser compreendida em retrospectiva e é com a sabedoria que ela proporciona que a maioria das pessoas considera que os longos 20 anos da Guerra do Vietname foram um erro terrível, um crime mesmo. Mas, à época, o envolvimento militar dos EUA na Indochina parecia fazer sentido. Para mim não havia dúvidas. Eu estava orgulhoso por vestir o uniforme do meu país.

O general Douglas MacArthur advertira os americanos para "nunca travarem uma guerra terrestre na Ásia". Ele havia presidido, uma década antes, ao impasse sangrento na Coreia e conhecia a capacidade combativa e a tenacidade dos soldados asiáticos.
Mas foi exactamente isso que a administração Kennedy insensatamente fez. Na altura, o poder dos EUA estava no seu apogeu. Washington fora tomada pela arrogância e soberba do pós-guerra. Nenhuma nação, nem mesmo a União Soviética, conseguiria resistir ao poderio militar dos EUA - ou pelo menos era isso que se pensava.

Havia também uma razão geopolítica muito convincente. Na época - nos últimos anos da década de 1960 - parecia certo que os soviéticos e a China Vermelha trabalhavam em conjunto para dominar toda a Indochina. O Vietname do Sul, o Laos e o Cambodja, em particular, estavam sob ameaça. A Indonésia, com um poderoso partido comunista, a Malásia e a Tailândia eram também consideradas vulneráveis.

Foto de Eddie Adams tirada durante a Ofensiva de Tet (01-02-1968)
"Se não tivermos uma posição militar firme no sudeste da Ásia", era este o consenso, "os Vermelhos tomarão conta de toda a região". Era o que parecia em 1967. É o que voltamos a ouvir hoje de novo. Basta substituir "Vermelhos" por Al-Qaeda ou ISIS.

Mas a premissa básica ocidental naquela época – tal como sucede hoje - estava completamente errada. No que constituiu um dos maiores falhanços da história dos serviços de informações, não conseguimos ver o cisma telúrico entre a União Soviética e a China de Mao, que, de tão profundo, quase levou a que as duas superpotências entrassem em guerra em disputa das suas fronteiras manchurianas em 1968-1969. Da mesma forma que os nossos serviços de inteligência também não viram chegar o iminente colapso da União Soviética três décadas mais tarde.

Tivessem os EUA tido conhecimento das violentas tensões entre Moscovo e Pequim, e provavelmente teria sido evitada a escalada da Guerra do Vietname, ou se limitasse a ficar entregue a si própria.

Em vez disso, os EUA e seus aliados travaram uma longa luta contra as guerrilhas locais vietcongs e o exército norte-vietnamita, endurecido pelas batalhas em que havia derrotado alguns dos melhores soldados franceses na década anterior. O presidente Lyndon Johnson conduziu os EUA a um envolvimento mais profundo na guerra com a encenação do falso incidente naval do Golfo de Tonkin.

Não demorou muito a que as tropas americanas no Vietname do Sul se dessem conta que a guerra consistia num derramamento de sangue sem sentido. Sem o apoio 24X7 do poder aéreo dos EUA, o exército americano e os fuzileiros navais no Vietname não teriam conseguido aguentar-se. Hoje, sem o poder aéreo dos EUA, as forças americanas seriam expulsas do Afeganistão. Os governos actualmente instalados em Cabul e Baghdad pelos EUA não têm mais apoio popular ou autoridade do que tinha o corrupto regime sul-vietnamita em Saigão.

Espantosamente, os generais americanos, de uma forma não menos absurda que a dos seus homólogos franceses no desastre de Dien Bien Phu, conseguiram ficar cercados no vale Khe San. Só foram salvos de um novo Dien Bien Phu pelas ondas de bombardeiros pesados americanos B-52.

Com a Ofensiva de Tet em Janeiro de 1968, ficou claro para muitos de nós em uniforme que a guerra estava perdida (eu estava em casa na altura). Os EUA venciam quase todas as batalhas graças ao poder aéreo, mas tinham perdido quer o ímpeto militar na guerra, quer a orientação estratégica e a luta política. Os aliados sul-vietnamitas da América lutaram bravamente com frequência, mas nada havia a esperar dos seus líderes políticos. Os jovens americanos viraram-se contra a guerra e, depois de se inteirarem de onde soprava o vento, o mesmo fizeram os meios de comunicação.

Mais de 550 mil soldados norte-americanos, apoiados por sul-coreanos, australianos e um número similar de soldados sul-vietnamitas não conseguiram derrotar as unidades irregulares e regulares comunistas. Nas forças armadas dos EUA no Vietname, apenas 10% das tropas estavam colocadas em unidades de combate. As restantes dedicavam-se ao apoio logístico. "Muita cauda e poucos dentes", como costumávamos então dizer. Cozinheiros, padeiros, transportadores e administrativos não ganham guerras.

O fim, no telhado da embaixada americana
No final, foi o exército regular vietnamita do Norte, apoiado pelos tanques T-34/54 e pelas excelentes armas soviéticas de 130 milímetros, que conseguiu a vitória. Os tanques do exército do Vietname do Norte entraram em Saigão em 30 de Abril fazendo desaparecer a República do Vietname. Os norte-vietnamitas não se incomodaram com as baixas e lutaram como tigres. Alguns especialistas militares chamaram-lhes "a melhor infantaria ligeira do mundo".

Num dos acontecimentos mais humilhantes para a América, militares e funcionários americanos fugiram do Vietname, abandonando os seus aliados locais e as namoradas aos comunistas.

Grande parte do Vietname, Laos e Cambodja foi devastada pelos bombardeamentos dos EUA e pelo tóxico desfolhamento químico. Nesta guerra, foram mortos ou feridos cerca de 250 mil soldados americanos; 250 mil soldados sul-vietnamitas pereceram. Pelo menos três milhões de militares comunistas e de civis vietnamitas foram mortos, na sua maioria pelo poder aéreo dos Estados Unidos.

Quando olho para trás, é muito doloroso perceber que a guerra foi, parafraseando o perverso Talleyrand, "pior do que um crime, um erro".

As hordas vermelhas não inundaram a Indochina nem marcharam em Cleveland. O nosso lado cometeu tantos crimes quantos os dos nossos inimigos. O programa Phoenix, gerido pela CIA, por exemplo, "liquidou" cerca de 41 mil quadros comunistas. A nossa campanha actual de "contra-terrorismo" no Afeganistão, Iraque e Somália segue o mesmo padrão.

Depois do Vietname, o patriotismo de juventude terminou para mim. O que realmente me chocou na guerra do Vietname foi o facto de não termos saído dela com uma imagem melhor que a dos soviéticos. Foi uma guerra sem sentido, no lugar errado, contra um inimigo desnecessário, e travada, em parte, por soldados relutantes “pedrados” com haxixe e heroína.

Hoje, os EUA e o Vietname unificado têm um comércio bilateral na ordem dos 36 mil milhões de dólares e fortes relações comerciais e diplomáticas. O Vietname unificado está a tornar-se num importante aliado para os EUA contra a China. O que nos faz pensar como podem os EUA desfrutar de relações frutuosas com o Vietname comunista enquanto até há bem pouco tempo recusavam a Cuba comunista.

Infelizmente, parecemos ter esquecido tudo sobre a guerra do Vietname sem que tenhamos aprendido nada. Sustentamos torpes regimes fantoches ou ditadores brutais porque alinham connosco. O novo bicho-papão é o Irão em vez de China, mas a cantiga continua a mesma.

5 comentários:

Anónimo disse...

bem verdade. Com a entrega do Vietname do Sul aos comunistas, tb caiu a seguir o Laos e o Cambodja dos kmer vermelhos que chacinaram milhões de pessoas ( o Afeganistão, Etiopia, Angola, Moçambique, Granada, Guatemala etc ). No Vietname ( cujos vencedores nunca cumpriram o assinado nos acordos de Paris) ainda hoje as 2ª gerações filhos dos vietnamitas do sul apelidados de colaboracionistas ou marionetas dos EUA ( como se os vietnamitas do norte não o tivessm sido tb da China e da URSS), sofrem a descriminação nos serviços públicos e na sociedade onde são ostracizados. Se a teoria dominó foi exemplarmente comprovada foi na Indochina.

Eduardo Freitas disse...

Caro Anónimo,

Tomar consequências por causas é um erro frequente de onde decorrem invariáveis falácias.

Vir afirmar, após os factos, que a "teoria do dominó" se comprovou não obstante o assombroso número de vítimas incorridas, precisamente para evitar os seus antecipados efeitos, é exemplo de uma falácia bem conhecida - post hoc ergo propter hoc. Não lhe ocorre a hipótese de que os efeitos pudessem ter sido outros bem diferentes na ausência desse intervencionismo?

Saudações,

Eduardo Freitas

Anónimo disse...

Caro Eduardo Freitas. É verdade que me ocorreram várias hipóteses. No entanto a história do comunismo e as suas consequências trágicas ( não meras hipóteses mas bem reais )falam sempre mais alto. Considerar que os crimes do comunismo seja na ásia seja na europa ou africa ( sempre com milhões de pessoas perseguidas, encarceradas e assassinada ou mantidas como escravos em gulags) são sempre consequência das acções americanas é que me parece ingenuidade ou preconceito.

Eduardo Freitas disse...

Caro Anónimo,

Em momento algum, neste como em qualquer outro texto que por aqui tenha publicado, encontra a defesa de posições que, directa ou indirectamente, permitam a "consideração" que refere.

Já encontra, isso sim, frequentes críticas ao intervencionismo messiânico que, de modo praticamente invariável, arrastou sacrifícios inomináveis para os alvos do seu proclamado e desinteressado "humanitarismo" (é assim pelo menos desde a guerra hispano-americana). Isto quando em simultâneo produzia efeitos não antecipados bem piores do que aqueles que, intentava prevenir (ou pelo menos assim era alegado).

É com o império que subsiste, as tragédias que continua a provocar, o contínuo cercear do espaço de liberdade que promove em nome da "segurança" que diz promover e a destruição monetária mundial que o seu financiamento dissimulado exige, que hoje temos que nos preocupar.

Saudações,

Eduardo Freitas

Bmonteiro disse...

«Intervencionismo messiânico», relevo.
E vejo a expressão algo idiota do cavaleiro George Walker Bush sobre o Iraque de Sadam.
E o desplante justificativo de um general USA com currículo sobre as ADM escondidas.
Talvez? o complexo industrial-militar do General Presidente Eisenhower no seu discurso final.
Malhas que o Império tece.
Dien Bien Fhu, relido em tempos.
A batalha de Gadamael descrita por um dos seus capitães no terreno/Guiné, a prometer-nos o nosso Dien Bien Bissau no futuro.