quinta-feira, 19 de junho de 2014

A Grande Guerra 1914-1918 – Algumas notas e fragmentos (VII)

Depois de um interregno aparente, regresso explicitamente ao tema da I Guerra Mundial suprimindo o impulso de escolher para título deste post qualquer coisa como um (por aqui) improvável "Obrigado, Lorde Keynes!" Explico-me. No seu livro de 1919, As Consequências Económicas da Paz" (a paz (?) de Versalhes), Keynes oferece-nos uma breve mas ainda assim rica descrição do ambiente prevalecente no mundo ocidental até às vésperas da eclosão da hecatombe iniciada em Agosto de 1914. Ela ilustra a tripla liberdade então existente - a da livre circulação de pessoas, dinheiro e bens - que o liberalismo clássico tinha tornado possível pela primeira vez na História.  O trecho que se segue é, creio, disso bem ilustrativo. Finda a guerra, uma nova era se iniciaria: a da deificação do estado-nação, do nacionalismo, do proteccionismo e da autarcia. Em suma, a vitória do colectivismo sobre o individualismo para o que era imprescindível proceder à sistemática destruição do padrão-ouro moeda que tinha vigorado nos 100 anos precedentes. A tradução é minha, bem como os realces introduzidos. (O livro está disponível para download gratuito em português do Brasil.)
John M. Keynes
"Que extraordinário episódio de progresso económico humano constituiu aquela era que terminou em Agosto de 1914! É certo que a maior parte da população trabalhava duramente e vivia com um baixo padrão de conforto, mas, aparentemente, contentava-se com a sua sorte. Todavia, a qualquer homem de capacidade ou carácter acima da média, era possível escapar a esse destino, ascendendo às classes média e alta, para quem a vida oferecia, a baixo custo e com pouco esforço, conveniências, confortos e amenidades que iam muito além do que os monarcas mais ricos e poderosos de outras eras alguma vez possuíram. Enquanto beberricava o chá matinal ainda na cama, o habitante de Londres podia encomendar por telefone diversos produtos de todo o mundo, nas quantidades que achasse adequadas, na expectativa razoável que fossem entregues rapidamente à sua porta; em simultâneo, e pelos mesmos meios, podia investir a sua riqueza em recursos naturais e em novos empreendimentos em qualquer parte do mundo e participar, sem esforço ou dificuldade, nas vantagens em perspectiva; ou podia decidir ligar a segurança da sua fortuna à boa-fé dos habitantes de um município importante num qualquer continente que a sua fantasia ou as informações de que dispusesse pudessem recomendar. Se o desejasse, podia assegurar, sem demora, um meio de transporte barato e confortável para qualquer país ou clima, sem necessitar de passaporte ou outra qualquer formalidade; podia enviar um seu empregado ao balcão mais próximo de um banco para se abastecer dos metais preciosos que entendesse conveniente, viajando de seguida para um país estrangeiro, sem conhecer a religião, a língua ou os costumes locais, transportando consigo a sua riqueza sob a forma de moedas, e considerar-se-ia muito ofendido e muito surpreendido caso houvesse o mínimo de interferência nos seus movimentos. Mas, e o mais importante de tudo, considerava esse estado de coisas como sendo normal, certo e permanente, excepto no sentido da introdução de novos aperfeiçoamentos, pelo que considerava qualquer desvio como sendo aberrante, escandaloso e evitável. Os projectos e a política do militarismo e imperialismo, dos monopólios, rivalidades raciais e culturais, restrições e exclusões, que iriam desempenhar o papel de serpente neste paraíso, eram pouco mais do que diversões quotidianas dos jornais, sem que parecessem exercer qualquer influência no curso normal da vida social e económica, cuja internacionalização, na prática, estava quase completa."

John Maynard Keynes, As Consequências Económicas da Paz (1919)

2 comentários:

floribundus disse...

dizem que
'a acção gera sempre a reacção
e vice-versa'

nunca consegui saber quem foi o inteligente que ofereceu lenine à Rússia

LV disse...

Eduardo,

Quase se pode esquecer quem é o autor do texto. A descrição faz maravilhas pela memória do passado. Mesmo se ela acarreta uma certa simplificação. Todavia, depois de duas leituras e olhar o nome do senhor K, não é possível evitar um sorriso irónico.
Como pode o senhor K mostrar esta mundividência e depois avançar para soluções que destroem por completo a substância desse mundo? Não é possível aceitar que a sua posição tivesse sofrido uma pequena reformulação. O seu nome e as suas ideias têm consequências demasiado relevantes nos últimos 80 anos, pelo menos, para podermos aceitar tal hipótese.

Julgo que um caminho para entender esta contradição (entre a visão optimista do mundo antes de 1914 e as ideias e políticas do senhor K) pode ser aquilo que Halévy sublinhou, num movimento mais alargado de crescimento do radicalismo filosófico (de voluntarismo, acrescento eu) na tradição liberal inglesa (veja-se o impressionante "the growth of philosophic radicalism"). E o senhor K é incluído nessa tradição voluntarista, intervencionista que o Halévy já identifica em Mill, Bentham e até em alguns escoceses.

Só pode entender-se a contradição, se compreendermos a sua inclusão nesse movimento voluntarista de alcance quase religioso. A intenção de estabelecer as leis e os princípios de um sistema controlado e previsível que pudesse, num determinado quadro ideológico, assegurar a concretização de um determinado "arranjo político e institucional". Era um projecto que parecia ao alcance da razão humana e justificado por ela. Demasiado apetecível, portanto. E foi isso mesmo que deu origem à disseminação de uma crença (intacta até hoje!) de que o aparelho dos estados (toda a burocracia, todos os tecnocratas - com os seus modelos matemáticos - e forças militares e não-militares) poderia garantir "o céu na terra".

Em conclusão, o sorriso irónico projecta-se sobre o projecto da "missão redentora" desses liberais bastardos. Terão trocado a consciência do estatuto cimeiro da liberdade na concretização plena da dignidade de ser Humano, pela crença na bondade da aplicação de uma ideologia por elites sábias e moralmente superiores para trazer o céu à terra. Como que recuperando um passado idílico que o texto publicado pelo Eduardo tão bem ilustra.

Basta olhar o Mundo e perceber o falhanço perigoso e totalitário dessa demanda. E como nos piores desfechos dramáticos, ainda por aí anda quem - insuflado dessa moral superior e distribuindo olhares condescendentes - condene quem aponte que o "rei vai nu".
A teimosia parece ser um excelente antídoto.

Saudações,
LV