terça-feira, 21 de abril de 2015

A Grande Guerra - O desastre de Gallipoli (e de Churchill)

Em mais um episódio ilustrador do famoso dictum de George Orwell quanto à importância do controlo sobre a "narrativa" do passado, o presidente turco Recep Erdoğan resolveu este ano antecipar em um dia as comemorações sobre o centenário da campanha militar na península de Gallipoli (25 de Abril), onde as tropas do então império otomano, antecessor na Anatólia da Turquia moderna, venceram as tropas aliadas. A ideia das autoridades turcas é, obviamente, contribuir para olvidar um outro aniversário que ocorre na véspera, 24 de Abril de 1915 - o da detenção pelas polícias de cerca de 250 individualidades de etnia arménia no país -, caso que marcou o início do que reconhecidamente, à prática excepção das autoridades turcas, a História assinalou como o genocídio arménio - bem acima de um milhão de mortos. São poucas, infelizmente, as vezes em que vejo razão para aplaudir o Papa Francisco, mas esta é uma delas. Haverá ainda, talvez, razões para especular quanto a uma eventual ligação entre os dois acontecimentos, mas esse não é o tema do artigo que hoje me propus partilhar com os eleitores. Eric Margolis traz-nos uma leitura sobre a campanha militar de Gallipoli, e sobre o seu principal responsável - Winston Churchill. Votos de uma boa leitura.
19 de Abril de 2015
Por Eric Margolis


Faz este mês cem anos, em Abril de 1915, quando os aliados e a Alemanha se encontravam numa situação de impasse na Frente Ocidental. Winston Churchill, o jovem e ambicioso ministro da Marinha britânica, propôs uma manobra inicialmente avançada pelo primeiro-ministro da França, Aristide Briand.

Eric Margolis
A melhor maneira de a Grã-Bretanha e a França porem termo ao impasse e estabelecerem ligação com o seu aliado isolado, a Rússia, seria através de um ousado "coup de main", um ataque de surpresa, visando conquistar os Dardanelos ao Império Otomano, ocupar Constantinopla (hoje Istambul) e pôr a Turquia fora da I Guerra Mundial. Embora muito periclitante, o Império Otomano era o mais importante aliado da Alemanha.

O plano de Churchill consistia em enviar navios de guerra das marinhas de guerra britânica e francesa e abrir caminho à força por entre os decrépitos e obsoletos fortes da Turquia ao longo do estreito dos Dardanelos que liga o Mar Egeu e o Mediterrâneo ao Mar de Mármara, a Constantinopla e ao Mar Negro, a linha de vida marítima da Rússia.

Esta ousada intervenção naval, que alguns previram que rivalizaria a do dramático ataque do almirante Nelson em 1801 à esquadra dinamarquesa-norueguesa abrigada em Copenhaga, conduziria rapidamente à vitória na guerra e alcandoraria Churchill à condição de supremo senhor da guerra, uma sua ardente ambição.


Tomados os Dardanelos, 480.000 militares aliados da Grã-Bretanha, França, Austrália e Nova Zelândia desembarcariam em Gallipoli e em outras praias, marchariam para norte mantendo aberto o estratégico estreito.

Os Dardanelos são relativamente estreitos, cerca de 1,6 km, a distância de um tiro de espingarda entre o lado europeu e o asiático. Em 1810, Byron, o poeta romântico britânico, atravessou a nado os Dardanelos para emular o feito de Leandro, o herói grego da Antiguidade.

Churchill convenceu os seus relutantes colegas de gabinete a adoptar o audacioso plano. Eles deveriam ter sido mais cautelosos: o plano, originado em França, não era sólido e os franceses não têm uma história feliz em matéria naval.

Os esforços dos 18 velhos navios de guerra britânicos e franceses para forçar o caminho pelo estreito falharam miseravelmente. Os canhões Krupp dispostos nos velhos fortes turcos de tijolo e minas recém-colocadas afundaram três navios de guerra aliados e danificaram gravemente outros três.

O muito aclamado cruzador francês "Bouvet", atingido por uma mina, virou-se e provocou a morte de 600 tripulantes.

Dois navios de guerra britânicos e outros dois franceses foram postos fora de combate. Esta foi a última acção naval significativa da França no Mediterrâneo até à II Guerra Mundial, quando os britânicos afundaram o resto da sua frota em Toulon.

Entretanto, decorria uma vasta operação anfíbia, o desembarque de dezenas de milhares de tropas aliadas na península de Gallipoli, principalmente no lado do Mar Egeu. O desembarque em Sulva Bay foi particularmente sangrento: as tropas aliadas foram apanhadas por fogo de flanco de metralhadoras turcas que tingiram o mar de vermelho.

A expedição de Churchill a Gallipoli foi um triunfo de audácia anfíbia, precursora da campanha das ilhas do Pacífico da II Guerra Mundial. Mas foi também um desastre de planeamento e logística em que dezenas de milhares de bravos soldados foram sacrificados à glória dos políticos.

Churchill, ao menos, sabia o que era uma guerra tendo lutado contra os dervixes no Alto Nilo, no Sudão (veja-se o seu "War River"). Tal como o seu arrojado colega Lord Kitchner. Combater nativos, armados com lanças e espadas, era uma coisa.

Combater alemães e turcos era outra completamente diferente. Quando o exército imperial britânico enfrentou os alemães na Frente Ocidental foi destroçado. O mesmo é provável que aconteça se e quando o exército imperial dos EUA, também habituado a combater nativos, tiver que enfrentar exércitos regulares russos ou chineses.

Churchill e a sua entourage não conseguiram compreender correctamente a topografia tortuosa de Gallipoli. O que parecia ser terreno fácil nos mapas (muitos deles incorrectos) transformou-se em ravinas profundas, em íngremes encostas áridas que se revelaram um pesadelo para a infantaria. Percorrê-las para cima e para baixo foi um exercício que me deixou exausto e sem fôlego.

Com o racismo típico do britânico imperial, Churchill e o governo em Londres menosprezaram os turcos tendo-os por muçulmanos atrasados e cobardes. Gallipoli ensinou-lhes exactamente o oposto.

Desta batalha feroz emergiu o seu herói, o coronel Mustafa Kemal Ataturk, que derrotou os aliados, fundou a república turca oito anos mais tarde, e salvou a sua nação de invasões por parte da Grécia, Rússia, Itália, Rússia e França.

Em Dezembro de 1915, os aliados começaram a retirar as suas tropas, uma derrota humilhante e sangrenta às mãos dos turcos "atrasados" e dos seus conselheiros alemães. O suposto KO a infligir ao Império Otomano acabou por derrubar Winston Churchill que foi despromovido embora tenha permanecido no gabinete durante mais algum tempo. O seu chefe, o primeiro-ministro Asquith, renunciou.

Churchill foi porém suficientemente homem para assumir o comando de uma unidade de infantaria Scots na Frente Ocidental, ao contrário de tantos outros políticos que enviaram homens para a morte a partir da segurança dos seus clubes privados em Whitehall.

Diz-se frequentemente que a Austrália e a Nova Zelândia modernas se tornaram nações independentes de facto em Gallipoli, o mesmo se dizendo do Canadá na batalha de Vimy.

É verdade até certo ponto, mas devemos também recordar que o Império Britânico usou com frequência as suas "tropas brancas" da Austrália, Nova Zelândia, África do Sul e Canadá como carne para canhão para poupar os regimentos britânicos das ilhas da metrópole.

O desastre de Gallipoli e a rendição de um exército britânico em Kut, na Mesopotâmia, fragilizou o poder e a invencibilidade do Império Britânico. Pondo de lado os habituais disparates patrióticos, 250.000 militares aliados morreram ou foram feridos sem propósito útil. Um número semelhante de soldados turcos morrera, mas os turcos, ao menos, podiam reivindicar a vitória e a defesa da sua nação.

As tropas australianas e neozelandesas (ANZAC), que não haviam participado anteriormente em combate, lutaram com honra e bravura. Mas os seus comandantes e Churchill cometeram erros crassos sucessivos, fazendo lembrar a devastadora descrição das forças britânicas na Guerra da Crimeia de 1854, "um exército de leões, comandado por burros".

2 comentários:

len disse...

<< As tropas australianas e neozelandesas (ANZAC), que não haviam participado anteriormente em combate, lutaram com honra e bravura. Mas os seus comandantes e Churchill cometeram erros crassos sucessivos, fazendo lembrar a devastadora descrição das forças britânicas na Guerra da Crimeia de 1854, "um exército de leões, comandado por burros". >>

Eduardo Freitas, as duas naçoes recentes já haviam participado sim de um certo conflito em prol do governo britanico, que foi a Guerra dos Boeres (1899-1902), tudo bem ...

No mais, seu blog é bom, só fique mais atento, vlw ...

Tchau e até a próxima !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Eduardo Freitas disse...

Caro len,

Compreenderá que a única responsabilidade que tenho relativamente ao texto de Margolis respeita à qualidade, maior ou menor, da tradução.

Em todo o caso, e como aliás Margolis faz referência no seu próprio texto, não foram tropas regulares da Austrália e da Nova Zelândia que combateram na Guerra dos Boers mas sim uma espécie de legionários, ao contrário do que sucedeu em Gallipoli onde, aí sim, eram tropas "oficiais" que combatiam sob a sua própria bandeira e não do Império.

Cumprimentos,

Eduardo Freitas