quinta-feira, 13 de março de 2014

Mas afinal onde pára a austeridade?

No magnífico post que o meu colega de blogue deu ontem à estampa, somos persuasivamente convidados a que não confundamos as peculiaridades da encenação e dos seus episódios laterais, com o guião "dorsal" da peça que se vem desenrolando.

Peça deste jogo de espelhos vem sendo reservada à "austeridade". Para uns, ela tem sido a receita adequada e a causa primeira da obtenção de resultados encorajadores (aumento das exportações, queda na taxa de desemprego, redução do défice orçamental em percentagem do PIB, menores custos de financiamento na emissão de nova dívida pública, etc.); para outros, depois de nos ter colocado numa rota de "espiral recessiva", a continuação da austeridade impede-nos agora de retomar o "caminho de crescimento" (através de mais défice/dívida por conta dos supostamente indispensáveis "investimentos" públicos de "estímulo" à economia). O manifesto dos 70 enquadra-se neste último grupo pois na realidade a "reestruturação" da dívida pública que os seus subscritores propõem é meramente instrumental no acomodar de (ainda) mais despesa pública. Tão só e apenas.

Sendo certo que, como Mark Thornton recordava, há três formas de austeridade e, numa delas, até se encara seriamente a hipótese de repúdio da dívida pública (sem iludir as consequências dessa via), importa ter presente uma clarificação adicional quanto à "narrativa" da austeridade. É o que David Howden faz no texto Where's the Austerity? cuja tradução, de minha responsabilidade, se segue.

(Entretanto, assinei este outro manifesto por força do que aqui se alude ironicamente.)
10 de Março de 2014
Por David Howden

A dívida global já ultrapassa 100 milhões de milhões (trillions) de dólares, segundo o Banco de Pagamentos Internacionais[1]. Ao longo dos últimos cinco anos, a dívida aumentou em cerca de 30 trillions de dólares. E, saliente-se, os maiores emitentes de dívida foram os estados.

As baixas taxas de juros atraíram os governos a recorrer à dívida para financiar os projectos públicos do presente. Ora, como se costuma dizer, não há almoços grátis. A certa altura, essa dívida terá de ser paga. Na melhor das hipóteses, tudo o que esses governos fizeram foi deslocar despesa para o futuro à custa das gerações futuras em benefício das gerações actuais.


O que é impressionante é a magnitude do endividamento. Os 30 trillions de dólares de nova dívida emitida ao longo dos últimos cinco anos, representam a totalidade do produto da economia americana durante dois anos. Mesmo ignorando os pagamentos de juros (que, apesar das baixas taxas de juros, são muito significativos porque incidem sobre um capital de 30 trillions de dólares), o seu reembolso constitui uma obrigação fenomenal.

Mas, ao menos, o FMI não está preocupado. Afinal de contas, se se ajustarem os orçamentos de estado de modo a ignorar os juros dessas dívidas, daí resultará uma análise positiva. Ao considerar apenas o défice primário, os países do Grupo dos Sete estão na realidade a conseguir obter excedentes orçamentais!

Medidas como a do défice primário, são como jogar golfe sem contar com as pancadas até se alcançar o green. De volta ao mundo real, todas as componentes das despesas de um estado são relevantes, e não apenas a parte não afecta ao pagamento da dívida.

Ao longo dos últimos cinco anos, a imprensa esteve cheia de discussões sobre austeridade. Supostamente, os governos impuseram fortes restrições e poupanças para conseguir vencer a crise. Descobrimos agora que estamos colectivamente enterrados num buraco que se tornou 30 trillions de dólares maior, por comparação com a situação em que estávamos quando a recessão começou. Se isto é austeridade, abominaria defrontar-me com a alternativa.
[1] - Veja-se também o highlight do próprio BIS.

3 comentários:

floribundus disse...

nos anos 30-50 o meu avô materno, marceneiro de porfissão e republicano por convicção,

nunca levava para casa nada que não estivesse pago até ao último avo

subiu, outros desceram

essa foi sempre a minha receita

Freire de Andrade disse...

Se 30 trillions (biliões segundo a nomenclatura internacional) equivale à totalidade do produto da economia americana durante dois anos, os 100 trillions corresponderão a mais de 6 vezes o produto da economia anual. Suponho que este produto será o PIB. A ser assim, a dívida americana vai em 600% do PIB. Por que nos nos ralamos nós por ter 130%? Onde está a sustentabilidade desta dívida se há dúvidas de a nossa ser insustentável?

LV disse...

Freire de Andrade,
À segunda pergunta pode responder-se que o poder que os EUA têm de ocultar, de forçar compromissos (e silêncios) é muito considerável e tem mantido toda a gente calada. Mas esse poder está a dissolver-se num ritmo crescente. Alguma vez, face a uma divergência da magnitude da que assistimos na Ucrânia, julgámos possível presenciar os avisos que a Rússia e a China têm feito face à possibilidade de sanções por parte dos EUA e UE. Julgo que dificilmente este "diálogo" seria tão público se o poder dos EUA não estivesse em declínio. Precisamente por razões de natureza económica e financeira.
Com o agravar das condições económicas - e consequente recessão - a dívida americana continuará a crescer. No entanto, a China e a Rússia, que possuem divisas e dívida americana, não estão interessadas numa crise da economia americana. Mas que querem fazer exercer o seu crescente poder, lá isso querem. De forma lenta, decisiva e musculada se for necessário. Estou em crer que não podem mais com a sobranceria do falido Tio Sam.
Quanto à sua primeira pergunta, bem Portugal não é os EUA (nem em força militar ou nem na projecção de poder financeiro) e estará num contexto económico muito mais desgastado. O que torna tudo mais exigente. Se juntarmos aquilo que são as projecções demográficas para a Europa (e Portugal, claro), então compreendemos o que esse perigo (da nossa dívida) representa para as gerações presentes e futuras.
Saudações,
LV