Os leitores habituais do Espectador Interessado ter-se-ão dado conta do progressivo afastamento do ruído do dia-a-dia, próprio do "combate de blogues", para privilegiar um olhar mais sereno embora nem por isso menos incisivo e, quiçá, até mesmo mais "radical" sobre os temas que são alvo da atenção dos seus autores.
De facto, usando para aferição o número de posts (não) publicados, temos estado muito alheados dos "debates" (?) sobre uma suposta "espiral recessiva" e uma não menos suposta "recuperação redentora" (que, num momento de arrebatamento, chegou mesmo a ser apelidada de "milagre") decorrente da acção patriótica do governo de turno. Do mesmo modo, o interesse que manifestámos em exercícios de exegese económica ao ritmo da divulgação das mais variadas estatísticas, tem sido bastante diminuto. E não apenas porque, parafraseando Ronald Coase, os dados estatísticos, se sujeitos a suficiente tortura, acabarão por confessar tudo (e um par de botas). Por aqui, preferimos cingirmo-nos à aritmética elementar aliada ao bom senso. E, aqui chegados, é fácil concluir, à semelhança aliás do verificado nas situações de pré-bancarrota de 1978-1979 e de 1983-1985, que o "ajustamento" da economia portuguesa foi conseguido quase integralmente à custa do sector privado da economia, continuando o Estado estruturalmente tão rotundo quanto o era em Abril de 2011. Sem receitas extraordinárias, o défice do orçamento continuaria acima dos 5% do PIB e isto depois de uma punção fiscal de que não há memória, nem plano (ou vontade) para a aliviar.
É então a austeridade inevitável? A resposta a esta pergunta depende do que entendamos por "austeridade". Constituirá "austeridade" ter um défice orçamental superior a 5% do PIB? Constituirá austeridade a situação de "risco" de inclusão nas contas públicas de outras rubricas que sempre lá deveriam ter estado? Há uns meses atrás, João Cortez proporcionou-nos uma boa tradução de um excelente texto de Franz Hollenbeck intitulado "As três formas de austeridade" que aconselharia agora a (re)ler. Na 5ª feira, dia 27 de Fevereiro, Mark Thornton, a propósito da nova proposta de orçamento de Obama onde este proclama a necessidade de pôr "fim à austeridade", volta ao tema que continua a ser alvo de basta mistificação. A "actualidade estrutural" do texto de Thornton compeliu-me a traduzi-lo. (Todos os erros que possam decorrer da tradução são da minha responsabilidade, bem assim como das notas introduzidas.)
O presidente Barack Obama divulgou recentemente a sua proposta de orçamento na qual apela ao "fim da austeridade". Esta é uma declaração surpreendente por parte de um presidente sob cuja administração a despesa pública federal atingiu a maior percentagem de sempre no PIB e em que a dívida pública aumentou mais do que no conjunto de todos os presidentes que o precederam. O que entenderá ele por austeridade?
Há manifestações pelo mundo fora contra a austeridade quase todos os dias. Ela é condenada por constituir um veneno em tempos económicos difíceis, enquanto outros a tomam pelo elixir contra as depressões económicas.
Mark Thornton
A rejeição da austeridade pelo presidente representa a visão keynesiana, que rejeita completamente a austeridade em favor da abordagem às recessões conhecida por "pedir emprestado e gastar" - a de fazer crescer a procura agregada. O que ele na realidade está a rejeitar são as reduções infinitesimais na taxa de crescimento da despesa e os obstáculos políticos a novos programas de despesa.
Embora os níveis de despesa nos orçamentos entre 2009 e 2012 tenham permanecido relativamente constantes, eles foram ainda assim 15% superiores ao de 2008 e 75% mais elevados que os verificados na década anterior. Este salto na despesa nestes quatro anos foi financiado com um aumento de 5 milhões de milhões de dólares da dívida pública. Austeridade, aqui? Nenhuma!
A forma de austeridade que recebe diariamente a maior atenção da imprensa em todo o mundo é a promovida pelos economistas do Fundo Monetário Internacional. Esta abordagem, designada por "austerian"[1], envolve cortes nos serviços públicos e aumento de impostos sobre o povo sitiado, a fim de, a todo custo, reembolsar os corruptos credores do governo. Esta abordagem pró-"bankster"[2] é a que gera uma enorme atenção por parte dos media e, por vezes, violentas manifestações.
Os economistas da Escola Austríaca rejeitam tanto a abordagem dos estímulos keynesianos como aquela do FMI, assente em impostos elevados e pró-bankster, como contraproducentes. Embora os "austríacos" sejam frequentemente tidos por "austerians", os economistas da Escola Austríaca apoiam a austeridade real. A verdadeira austeridade envolve o corte dos orçamentos públicos pela via da redução de salários e benefícios aos funcionários e pensionistas. Envolve igualmente a venda de activos estatais e até mesmo o repúdio da dívida pública. Em vez de aumentar os impostos, a abordagem austríaca defende a diminuição dos impostos.
Apesar de todo o alvoroço em países como a Grécia, neles não existe austeridade real à excepção dos países da Europa Oriental. Por exemplo, a Letónia é o país mais "austeritário" da Europa e também uma das economias em mais rápido crescimento. A Estónia implementou uma política de austeridade que dependeu em grande medida da redução nos salários dos funcionários públicos. Em contraste, muito simplesmente, não há austeridade significativa na maior parte da Europa Ocidental ou nos EUA. Como o professor Philipp Bagus explica, "o problema da Europa (e dos Estados Unidos) não está no excesso de austeridade mas sim na muito reduzida austeridade, senão mesmo na sua completa ausência".
Para os indivíduos, a verdadeira austeridade significa a adopção de um estilo de vida altamente restritivo. O melhor exemplo é o do monge que vive sob uma dieta de subsistência, usa roupas simples, possui umas poucas peças básicas de mobiliário, e usa apenas os utensílios estritamente necessários. Os seus dias consistem em longas horas de trabalho e oração sem actividades de lazer e talvez mesmo sem poder desfrutar de aquecimento doméstico ou canalização.
A austeridade aplicada a países no seu todo, não é necessariamente tão dura ou ascética. Significa simplesmente que o governo tem que viver adentro das suas possibilidades.
Caso o governo[3] viesse a adoptar um rigoroso estilo de vida de "monge libertário", então o governo nacional reduzir-se-ia à defesa nacional, sem exércitos permanente nem armas nucleares. A dívida nacional seria totalmente repudiada. Isso implicaria certas dificuldades de curto prazo mas uma muito maior prosperidade a longo prazo.
Em contraste, a típica política de austeridade [à la FMI - NT] não é severa. Os funcionários públicos sofreriam cortes nos salários e outros benefícios, e os reformados nas suas pensões, necessários para equilibrar o orçamento. Os maiores cortes recairiam nos políticos e nos por eles nomeados, e nos burocratas seniores. Dado que tais reduções ocorrem quando praticamente toda a gente está a enfrentar cortes e dificuldades, e dado que os funcionários públicos são tipicamente muito bem remunerados, não é irracional esperar que sejam eles a suportar a maior parte do fardo de uma política de austeridade.
Uma área particularmente promissora como alvo de cortes é a da regulação governamental. A regulação constitui um fardo sobre os contribuintes, desencoraja o empreendedorismo, e torna-nos menos seguros. Um estudo empírico recente [link - NT]revelou que a regulação é extremamente onerosa e que "a eliminação de um emprego num único regulador faz crescer a economia americana em 6,2 milhões dólares e cria quase 100 empregos no sector privado por ano".
A verdadeira austeridade, na realidade, funciona melhor através de reduções nos impostos. Para ajudar a que a austeridade promova o crescimento é preciso entender que certos impostos são altamente desencorajadores da actividade produtiva. Já as reduções de impostos sobre o investimento e o capital estimulam a actividade económica e a produção.
Os aumentos de impostos inspirados pelo FMI não fazem sentido. Em tempos difíceis, as políticas governamentais devem ser guiadas pela ideia de aumentar a produção, não de tornar a produção mais onerosa por via de impostos mais elevados. De uma forma em boa medida similar, o nosso monge asceta não impõe os seus deveres e encargos aos cidadãos comuns.
O presidente Obama também sugeriu impostos mais elevados (de novo), desta vez pelo fim dos "benefícios fiscais" aos reformados ricos. Este seria o primeiro passo para roubar os nossos IRAs[4]. Alguns chegaram mesmo a sugerir que a "austeridade" deveria envolver o alargamento dos impostos já existentes às instituições de caridade ou sem fins lucrativos. Outros sugeriram retirar o estatuto de isenção de impostos de instituições de caridade ou sem fins lucrativos, o que é nada mais que um aumento de impostos encapotado. Estas são algumas das sugestões mais idiotas, particularmente durante crises económicas, e não constituem austeridade real.
A austeridade não significa, por exemplo, cortes orçamentais que eliminassem a recolha de lixo ou a desactivação dos corpos de bombeiros enquanto que, ao mesmo tempo, deixasse incólumes os militares, a educação, e o estado de espionagem. Esta é apenas uma forma de extorsão que não resolve o problema. Apenas revela a verdadeira natureza e intenções dos governantes.
A abordagem dos estímulos keynesianos não funciona. A abordagem "austerian", inspirada no FMI, também não funciona. Só a austeridade real funciona. Isto significa reduzir os rendimentos dos funcionários públicos e outros benefícios, e reduzir as pensões e benefícios dos reformados. Por si só, isto incentivá-los-ia a adoptar uma maior disciplina no futuro. A eliminação de reguladores e regulamentos, a redução nos impostos e a venda de activos públicos constituiriam uma ajuda ao processo de recuperação.
O presidente Obama e o Congresso deveriam trabalhar para fazer o que é melhor para a economia e para os americanos em vez de se enriquecer a si próprios e a todos aqueles que se alimentam da gamela pública.
[1] Termo de conotação pejorativa, intraduzível para português, que terá resultado da "fusão" entre as palavras "austerity" (austeridade) e "austrians" (os proponentes da Escola Austríaca) e que é um vocábulo profusamente utilizado por, entre outros, Paul Krugman nas suas peças propagandísticas no New York Times. Hoje em dia, como Mark Thornton de resto assinala, este termo está normalmente associado à austeridade à la FMI.
[2] Termo, igualmente pejorativo e também intraduzível, composto a partir das palavras "banker" (banqueiro) e "gangster" e que alude a práticas menos próprias levadas a cabo no sector financeiro.
[3] O autor refere-se aqui, e até ao final do artigo, especificamente ao governo federal norte-americano.
[4] IRA é o acrónimo para "Individual retirement account" ("plano individual de reforma", uma espécie de plano de poupança-reforma)". O autor refere-se explicitamente à cobiça que os governos vêm manifestando sobre as poupanças privadas acumuladas que, em boa medida, visam proteger a visa na velhice
2 comentários:
para os tótószeros o rectângulo necessita viver à tripa forra
o regresso de mais um coelho à vida política
pressupõe regresso aos gastos em sectores do estado altamente produtivos
auto-estradas
aeroportos
portos
estádios e ginásios
nunca se fala em apoio a novas indústrias criadoras de riqueza
metade dos votos são do monstro
que chupa os contribuintes
'in oculum descansum est'
Austeridade, bem assim como: emprego (público ou privado), desemprego, contribuições tributárias, reformas, pensões ....
Estas mesmas palavras proferidas, escritas, na 1ª pessoa do singular, e na 1ª pessoa do plural.
Pronunciadas por políticos, por académicos, ou por cidadão comum.
Sem claro contexto.
Complicado.
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