Albert Esplugas Boter, num estimulante artigo intitulado A alternativa à democracia, termina-o da seguinte forma (minha tradução):
Significa esta reflexão que temos que aceitar a democracia para o bem e para o mau? Que o preço da paz social e das liberdades civis são políticas económicas que nos empobrecem? Há uma maneira de evitar esse odioso "trade-off": reduzir o âmbito das decisões democráticas, tanto quanto seja possível. A maioria das decisões importantes na nossa vida não é submetida a votação democrática na nossa comunidade, nem sequer daqueles que nos estão mais próximos: o que queremos estudar, em que queremos trabalhar ou que negócio pretendemos criar, onde queremos viver, com quem nos relacionamos e estabelecemos amizade, com quem nos emparelhamos, a que clubes e associações nos associamos, em que investimos, o quanto poupamos, que casa compramos... Quanto menos decisões se tomem "democraticamente" e mais decisões sejam tomadas no contexto do mercado e da sociedade civil, menos necessária será a ilusão de "jogo limpo" para conquistar o poder, pois não haverá nenhum poder de decisão para capturar, e maior será o bem-estar social fruto de uma política económica laissez-faire.
Porque a alternativa à democracia não é a ditadura, nem a monarquia, nem o sufrágio censitário, nem qualquer outra forma de governo. A alternativa à democracia é o mercado.
Tratando-se, a meu ver, de um texto conexo com este outro (que obteve um interesse assinalável, a avaliar pelo número de cliques que teve) pensei ser útil partilhá-lo com os leitores. Nele o autor percorre brevemente o pensamento de figuras determinantes da intelectualidade contemporânea relativamente à crítica do regime democrático (relembrando igualmente os perigos antevistos pelos liberais clássicos), detendo-se mais longamente num exame crítico a um proponente do "sufrágio censitário". Se o extracto lhe parecer interessante, convido-o a ler o texto na íntegra clicando em "ler mais".
Não há que confundir democracia com liberdade. A democracia é uma forma de decidir sobre os assuntos de todos, enquanto a liberdade é o direito de cada um decidir sobre o que é seu. Embora hoje as pessoas associem os dois termos e, frequentemente, como Ortega y Gasset afirmou, gritem por um querendo o outro, o facto é que a idade de ouro do liberalismo ocorreu num contexto dominado por monarquias constitucionais e democracias restritivas.
Erik von Kuehnelt-Leddihn, na sua magnum opus Leftism Revisited, explica que nem José II nem Jorge III tiveram o poder efectivo que hoje detém um parlamento moderno. Até meados do século XIX, a despesa pública manteve-se abaixo dos 5% da riqueza nacional, e o emprego público era inferior a 3% (actualmente a despesa atinge os 50% do PIB em muitas economias ocidentais, e o emprego público representa entre 10 e 20% da população activa). O serviço militar obrigatório, a Lei Seca ou o imposto sobre o rendimento foram introduzidos por "representantes do povo". Numa democracia, o parlamento é o povo, e esta identificação tão falaciosa quanto enraizada permite ao legislador violar a liberdade sem que o povo possa o acusar de tirania. Não surpreende que as primeiras "guerras totais" tenham tido lugar no século XX, quando a distinção entre Estado e sociedade civil se esbateu, e a população passou a ser um alvo militar aceitável. Muitos liberais clássicos já haviam alertado sobre os perigos da democracia (Locke, Tocqueville, Constant, Lord Acton, von Humboldt), e mesmo entre os fundadores da democracia americana existia cepticismo (Hamilton, Washington, Adams, Madison, Jefferson).
Hans-Hermann Hoppe, provavelmente a maior referência pro-monárquica e antidemocrática do liberalismo contemporâneo, argumenta que o governo eleito é como o arrendatário de uma casa (por quatro anos), enquanto o monarca absoluto é como o seu proprietário (que pode deixá-la em herança). Quem tem mais incentivos para procurar a sua manutenção e recapitalização a longo prazo? O governo democrático actua esbanjando às expensas dos governos e gerações futuras: bolhas que rebentarão numa outra legislatura, despesas levadas a encargo da dívida futura, direitos sociais assentes em esquemas de Ponzi. Para além disso, de acordo com Hoppe, em democracia governam sempre os mais demagogos, celebrando a disputa eleitoral os que mais prometem (ou seja, os que melhor defraudam). O monarca absoluto, ao invés, não compete com ninguém, não teve que se corromper para chegar ao poder. Pode ser um déspota ou uma pessoa decente, mas ao menos será o acaso a determiná-lo. Porque, se se estiver na dependência das urnas, é improvável que o governo seja muito decente.
No entanto, algo falha na argumentação de Hoppe porque muitas ditaduras actuais funcionam como dinastias, e em geral não se correlacionam com um maior grau de liberdade, muito pelo contrário. Há excepções, como a dos emiratos do Golfo Pérsico, a democracia controlada de Singapura, ou a antiga colónia de Hong Kong, geridas com uma visão de longo prazo bastante hoppeana que deu primazia à liberdade económica e ao desenvolvimento. Mas também aqui não está clara a causalidade. A dimensão da unidade pode ter sido mais decisiva que o seu sistema político (Nassim Taleb dixit). Por outro lado, ainda que seja provável que em democracia os demagogos e os corruptos tenham vantagem, é pelo menos possível expulsá-los a cada quatro anos, sem que haja que esperar que abdiquem.
Pablo Carabias também nos propõe viajar no tempo, neste caso para estabelecer o sufrágio censitário [o artigo da Wikipedia em português é fraquinho; quem puder, leia-o em inglês]. Que votem apenas aqueles que pagam mais impostos (ou que tenham mais votos aqueles que queiram e possam comprá-los). De acordo com Pablo, a democracia é um mecanismo para decidir como administrar os contributos, e, nesse sentido, os que mais contribuem deveriam ter um maior poder de decisão. Esta abordagem tem muitos problemas, mas também suscita reflexões interessantes.
Em primeiro lugar, a democracia não é um mecanismo para decidir sobre a contribuição de cada um. A democracia é um mecanismo para tomar decisões que a todos afectam, inclusive aqueles que se recusam a participar nelas. O rico não tem mais direito a impor-me os seus caprichos do que o cidadão médio, ou que 99% da população, não importando a contribuição para o erário comum. O Ministério da Educação não seria menos autocrático se fossem os mais ricos que impusessem o seu currículo nacional. Dito de outra forma, uma coisa é que os mais endinheirados possam ter mais direitos de voto sobre o que é seu (corresponderia ao resultado da redução dos seus impostos), outra bem diferente, e alheia ao liberalismo, é que possam ter mais votos sobre as questões de todos. Nos tempos do laissez-faire, quando os ministérios se contavam pelos dedos de uma mão, [a questão de saber] quem votava era trivial, pois apenas se podia decidir sobre [quase?] nada. Porém, hoje em dia, o eleitor pode entrar no seu quarto, dizer-lhe como gerir o seu negócio e meter a mão no seu bolso uma e outra vez. É verdade que Pablo introduz uma nuance que poucos comentadores têm observado: que o Estado se financie apenas com os contributos dos que desejem votar, uma espécie de cláusula de "opt out" para os que não queiram participar no sistema quer como eleitores quer como contribuintes. Essa ideia é sugestiva mas até que ponto estamos "saindo" do sistema se as políticas dos votantes continuarem a afectar-nos?
Em segundo lugar, poder-se-ia argumentar que o sufrágio censitário em função do rendimento serviria para conter a repressão fiscal e mitigar a redistribuição. Talvez tenha sido assim no passado, e certamente seria um resultado desejável do ponto de vista liberal, mas se esse é o objectivo, porquê escolher o caminho confuso e complicado do sufrágio censitário e não defender directamente uma emenda constitucional que proíba determinados níveis de tributação? É improvável que um parlamento vote uma emenda semelhante, mas é ainda menos provável que vá excluir do recenseamento a maioria dos seus eleitores.
Em terceiro lugar, em certo sentido já vivemos numa "democracia censitária" e os resultados deixam muito a desejar. Talvez todos os votos valham o mesmo nas urnas, mas nos despachos ministeriais uns têm mais peso que outros: a banca, a grande indústria, os sindicatos... A influência dos lobbies é indicativa de um fenómeno que questiona as teses de Pablo sobre o sufrágio censitário: os rendimentos elevados não apenas querem pagar menos impostos (algo perfeitamente liberal), como também querem proteger o seu nível de rendimento petrificando o status quo (algo perfeitamente anti-liberal). Do mesmo modo que têm incentivos para exigir impostos mais baixos, também têm incentivos para exigir regulamentos e privilégios para os proteger das oscilações do mercado e da concorrência. Os bancos e as grandes corporações solicitam resgates públicos para evitar a falência e taxas de juro artificialmente baixas para alimentar bolhas especulativas, empresas estabelecidas pedem regulamentos para dificultar a entrada de novos concorrentes, os sindicatos blindam os postos de trabalho dos seus membros à custa do encarecimento da contratação dos desempregados, intelectuais e artistas pedem subsídios para não terem de depender dos consumidores...
Em quarto lugar, em ligação ao ponto anterior, a defesa do sufrágio censitário parece sustentar-se na premissa de que o Estado de Bem-estar redistribui o rendimento dos ricos pelos pobres (e conceder o voto apenas às vítimas da espoliação fiscal reduziria essa transferência). Mas deixando de lado o marketing social-democrata, não está claro que a redistribuição seja, em termos líquidos, vertical. Nos serviços básicos (saúde, educação, pensões), a progressividade é baixa. Para o grosso da classe média, tudo se passa como neste exemplo: o Pedro paga a saúde de João, enquanto o João paga ao Pedro a educação dos seus filhos - uma redistribuição horizontal. Em muitas outras áreas, as políticas são regressivas (há redistribuição de rendimentos dos estratos mais baixos aos mais altos, saindo os pobres mais prejudicados): universidade, cultura, energia, agricultura, política monetária, mercado de trabalho...
Quinto, aqueles que arrancam os cabelos com a proposta sufrágio censitário não parecem dar-se conta que praticamente todas as democracias ocidentais restringem o voto de uma fracção dos cidadãos com menos recursos: os imigrantes, mais de 10% da população da Espanha (sem contar com os não-documentados). É indiferente que se trabalhe em Espanha legalmente pagando os seus impostos. Se se vier de fora, não é possível votar na escolha do governo do país. Naturalmente que aos imigrantes (seja de um comerciante paquistanês em Barcelona ou de um expatriado europeu no Dubai) importa-lhes muito pouco a falta de "direitos políticos" pois não cruzaram a fronteira para votar, mas para conseguir uma vida melhor. Neste sentido, não existe política mais solidária que a abertura das fronteiras e a consequente extensão do sufrágio censitário, e somos muitos os liberais que defendem a liberdade de imigração como o maior programa anti-pobreza (pelo menos nos países que criam emprego, em vez de o destruírem!).
Em suma, que o voto censitário (como as monarquias constitucionais e os governos mistos) tenha convivido com o laissez-faire antes do advento da democracia absoluta não significa que seja um modelo desejável e transportável para o século XXI. Os sistemas políticos são frequentemente o resultado das suas circunstâncias, e divorciados do seu contexto podem perder a sua razão de ser.
Existe então uma alternativa à democracia? Para responder esta pergunta é preciso primeiro saber para que serve e para que não serve a democracia.
A democracia não serve para produzir boas políticas. Bryan Caplan, no seu livro The Myth of the Rational Voter ["O Mito do Eleitor Racional"], explica que o eleitor médio é pior que ignorante: é irracional, isto é, defende políticas baseadas nas convicções erradas que tem sobre a economia, e essas políticas são inconsistentes com o objectivo de promoção de um maior bem-estar, que também valoriza. Caplan estuda empiricamente os preconceitos dos votantes e conclui que a maioria das pessoas não entende os processos de mercado, subestima os benefícios do comércio com os estrangeiros, equipara a prosperidade com o emprego e não com a produção, e tende a ser mais pessimista do que a realidade exige. Obviamente que os preconceitos não começam e terminam às portas do colégio eleitoral, mas enquanto o mercado desincentiva a irracionalidade por via dos preços, das perdas e das falências, a democracia não. Errar nas urnas quase nos custa zero, porque a relevância do nosso voto [individual] tende para zero. O preço de satisfazer as nossas crenças erróneas é a redução do bem-estar provocada por uma determinada política descontada pela probabilidade de que o nosso voto seja decisivo. Se uma medida proteccionista vai reduzir o nosso bem-estar de 1000 € e o eleitorado é de 1000 pessoas, satisfazer as nossas ânsias nacionalistas custará a cada um de nós 1 €. Dizer que os elevados custos de uma política nos levará a sermos mais sábios é análogo a afirmar que os danos da poluição nos levam a andar menos de automóvel. Como os níveis de poluição, sejam eles altos ou baixos, não dependem de nós, continuaremos a conduzir sem alterações. Como diz Caplan, ninguém enfrenta numa eleição escolhas como "conduza menos ou sofra de cancro do pulmão" ou "reconsidere as suas ideias sobre a economia ou viva na pobreza".
No entanto, a democracia e o sufrágio universal serve para produzir um bem valioso no contexto actual: a ilusão de "jogo limpo",de que todos temos o mesmo direito de participar no sistema, e esta ilusão gera paz social. Num contexto em que se valoriza a igualdade, a ausência de discriminação faz com que as distintas facções não sintam agravos nem possam alegá-los e dediquem os seus esforços a ganhar votos em vez de organizar revoltas. Se se deixar que as pessoas joguem e percam, elas resignam-se. Se se impedir que joguem, elas ressentem-se e revoltam-se. A democracia, de resto, está ligada a um elevado grau de liberdade de expressão e de associação, bem como a outras liberdades civis, como o direito a um julgamento justo, sem as quais seria difícil criar as condições que tornam possível eleições pacíficas.
Significa esta reflexão que temos que aceitar a democracia para o bem e para o mau? Que o preço da paz social e das liberdades civis são políticas económicas que nos empobrecem? Há uma maneira de evitar esse odioso "trade-off": reduzir o âmbito das decisões democráticas, tanto quanto seja possível. A maioria das decisões importantes na nossa vida não é submetida a votação democrática na nossa comunidade, nem sequer daqueles que nos estão mais próximos: o que queremos estudar, em que queremos trabalhar ou que negócio pretendemos criar, onde queremos viver, com quem nos relacionamos e estabelecemos amizade, com quem nos emparelhamos, a que clubes e associações nos associamos, em que investimos, o quanto poupamos, que casa compramos... Quanto menos decisões se tomem "democraticamente" e mais decisões sejam tomadas no contexto do mercado e da sociedade civil, menos necessária será a ilusão de "jogo limpo" para conquistar o poder, pois não haverá nenhum poder de decisão para capturar, e maior será o bem-estar social fruto de uma política económica laissez-faire.
Porque a alternativa à democracia não é a ditadura, nem a monarquia, nem o sufrágio censitário, nem qualquer outra forma de governo. A alternativa à democracia é o mercado.
3 comentários:
Excelente texto (de autor que desconheço). Os ideias são muito pertinentes e partilho das dúvidas quanto à justificação pró-monárquica de Hoppe (tenho dificuldade em compreender como se pode conciliar a posição mais substancial de Hoppe quanto ao anarco-capitalismo face a essa visão pró-monárquica).
Estas ideias aqui abordadas têm de fazer o seu caminho, não é possível evitar a realidade por muito mais tempo. Ou é?
Saudações,
LV
Notável e actual.
Já Aristóteles notava n'"A Constituição dos Atenienses" (edição da FCG) que a democracia, já naquele tempo, descambou rapidamente em corrupção.
Não se poderia esperar outra coisa.
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