Para os que elevam o regime democrático como a descoberta do Santo Graal e, portanto, do "Fim da História", os recentes acontecimentos no Egipto (como antes com a Autoridade Palestina ou ainda com a catástrofe da Argélia de 1991, para já não falar dos resultados "incorrectos" de vários referendos no processo de "construção europeia") são perturbadores.Neste texto Patrick J. Buchanan proporciona uma viagem ao devir histórico dos EUA para concluir que não cabe aos EUA a defesa e a promoção universal do "democratismo". Pelo contrário, finda que foi a Guerra Fria (há 20 anos) e não havendo interesse vital dos EUA a preservar, defende caber aos países Árabes a resolução dos seus próprios problemas - no Egipto como na Síria, no Iraque como no Líbano.
No seu texto, Buchanan evoca a "Boa Guerra" de 1941-1945 como exemplo de uma intervenção americana implícita e moralmente justificável fora do seu território. Todavia não escrutina as consequências não-intencionais do voluntarismo wilsoniano, entre as quais, nomeadamente, a ascensão dos comunistas ao poder na Rússia, ou a "ferida aberta" pelo Tratado de Versalhes A tradução do texto é minha.
"Compreensivelmente, a Irmandade Muçulmana está enfurecida.
Depois de ter ganho a presidência do Egipto em eleições livres e justas após o derrube de Hosni Mubarak, o presidente Mohammed Morsi foi deposto por um golpe militar e colocado sob prisão domiciliária.
Os líderes da Irmandade, sem que tenham sido condenados por quaisquer crimes, estão a ser circunscritos em redis.
Eles jogaram pelas regras da América. Agora, com a bênção da América, estão a ser presos pelos amigos da América nas forças armadas egípcias.
Não que esta seja a primeira traição percebida. Quando o Hamas venceu as eleições livres exigidas por George W. Bush, a América recusou-se a reconhecer a sua legitimidade e conspirou para a queda violenta do Hamas em Gaza.
Quando os islamitas ganharam a primeira volta das eleições argelinas em 1991, o regime, com a bênção de Bush I, cancelou a segunda volta, o que levou a uma guerra de guerrilha que custou entre 100 e 200 mil mortos.
Se os muçulmanos passaram entretanto a crer que os americanos pregadores pela democracia não passam de charlatães e hipócritas, não terão eles alguma razão?
A política externa dos EUA pareceu em tempos fazer sentido. Nós púnhamos os interesses vitais à frente da ideologia "democratista". Éramos por aqueles que eram por nós. Nós não gastávamos tempo a inspeccionar as credenciais morais daqueles que ficavam do lado da América. Nós jogávamos com as cartas que nos calhavam em sorte neste mundo.
O general Washington dançou quando soube que Luís XVI, um descendente do Rei Sol, apoiaria a causa da América contra a nossa mãe pátria [o Reino Unido].
Em 1917, Woodrow Wilson conduziu-nos à guerra "para tornar o mundo seguro para a democracia" enquanto potência associada de cinco impérios - o britânico, o francês, o italiano, o russo e o japonês. No fim da guerra, Wilson assinou tratados que levaram à pilhagem das terras e colónias dos três impérios derrotados, em benefício dos impérios vitoriosos.
Na Boa Guerra [Good War, no original] de 1941-1945 contra os nazis, o nosso maior aliado foi o assassino genocida de cristãos e democratas, José Estaline.
Durante a Guerra Fria, Dwight Eisenhower sancionou o derrube de governos democráticos na Guatemala e no Irão e a sua substituição por autocratas que se tornariam nossos aliados na luta pelo mundo.
Congratulámo-nos com o Xá, com os reis sauditas e com os emires do Golfo. JFK acolheu o "Carniceiro dos Balcãs", o marechal Tito, na Casa Branca.
O presidente Nixon tomou o partido do autocrático Paquistão contra a democrática Índia, pelo facto do Paquistão ter tomado o nosso partido.
Nixon foi a Pequim brindar com o Presidente Mao, um monstro tão grande quanto Estaline. Os liberais [sociais-democratas no sentido europeu], nauseados com a nossa aliança com o "regime corrupto e ditatorial" do presidente Ngo Dinh Diem em Saigão, ficaram em êxtase.
A Casa Branca de Nixon comemorou a queda do presidente eleito do Chile, Salvador Allende, pelo general Augusto Pinochet.
Entre outros aliados dos EUA na Guerra Fria, estiveram ditadores e generais asiáticos como Chiang Kai-shek da China, Syngman Rhee and Park Chung-hee da Coreia do Sul, e Suharto da Indonésia.
O ditador em Portugal, António Salazar, e o general Francisco Franco, em Espanha, foram fieis aliados contra o bolchevismo. Mobutu Sese Seko foi durante 32 anos o nosso homem no Congo, como o imperador Haile Selassie o foi na Etiópia.
Anwar Sadat e Hosni Mubarak foram aliados americanos e ditadores no Egipto de 1970 a 2011, até que, em nome de nossos ideais democráticos, lançámos Mubarak, o nosso defeituoso amigo, aos lobos.
Qual é a causa da nossa actual angústia sobre o que está acontecendo no Cairo? Os nossos ideais "democratistas" parecem ter sido atropelados por blindados americanos de transporte de pessoal conduzidos por soldados egípcios treinados pelo exército dos EUA. Quer tal tenha acontecido em defesa dos nossos interesses, os nossos ideais parecem ter sido feridos.
Por trás da nossa ambivalência e paralisia podem ser encontradas várias verdades. Em primeiro lugar, a Guerra Fria, a luta civilizacional de vida ou morte que definiu os nossos tempos, terminou. Nenhum interesse vital dos EUA está em risco no Egipto que possa justificar uma intervenção militar ou o derramamento de sangue americano.
Este é, pois, um problema deles, não nosso, e é o que a maioria dos americanos acredita, e lá a nossa influência está recuando, tal como aconteceu antes de nós com os britânicos, franceses e russos. Deixem-os resolver os seus próprios problemas.
Testemunhando esta verdade está o video do Secretário de Estado John Kerry a inspeccionar o seu iate ao largo de Nantucket enquanto o regime egípcio caía, enquanto Obama, depois de um breve conclave do Conselho de Segurança Nacional, saiu para jogar golfe no fim-de-semana de 4 de Julho, seguindo depois para Camp David.
Hoje, do Egipto ao Líbano, da Síria ao Iraque, trata-se da luta entre islamistas contra secularistas, sunitas contra xiitas, tribo contra tribo, da luta de quem está no poder contra aqueles que querem o poder. A Primavera Árabe deu início à guerra árabe de todos contra todos.
Aquele ano de 1848, quando todos os tronos da Europa foram abalados por revoluções, constituiu um tempo similar. E os antigos prudentes falcões da guerra de 1812, Henry Clay e John Calhoun, encontraram-se novamente no mesmo lado.
A América, diziam eles, deve ficar de fora.
"Inactividade magistral" é o nosso papel, disse Calhoun. Acrescentou Clay, que ao "evitar as guerras distantes da Europa, devemos manter o nosso farol a brilhar intensamente nesta margem ocidental para iluminar todas as nações em vez de arriscar a sua completa extinção no meio das ruínas de repúblicas que já caíram ou ameaçam cair".
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