quarta-feira, 17 de julho de 2013

Da banalidade do PIB ao Produto Privado Interno Bruto

Encorajado por várias reacções positivas que tenho recebido quanto à publicação de traduções de alguns textos por mim escolhidos, ouso hoje dar agora um passo correndo o risco de alienar aqueles leitores que muito justamente abominam o "economês" até porque, para aqueles que se sujeitam à regular tortura mediática, são impiedosamente bombardeados com ele. Refiro-me, em concreto, à omnipresença do PIB a que tudo se pretende reduzir e cujo agregado, tipicamente, os governos tentam manipular na incessante busca de anúncios de um salvífico (e tantas vezes pífio) "crescimento". Daí que tenha achado que o breve ensaio de Robert Higgs que me propus traduzir possa ser útil para melhor se entender a verdadeira obsessão em que nos encontramos rodeados relativamente à evolução daquele agregado económico e esclarecer alguns (grandes) equívocos sobre o mesmo.

Robert Higgs
Higgs que, recorde-se, começou por ter recebido uma formação, que chegou mesmo à obtenção de um Phd em economia, segundo o paradigma neo-clássico (ou seja, um tanto grosseiramente, num quadro de um keynesianismo recauchutado), começa por recordar-nos que não foi pacífica a definição do conceito de PIB especialmente quanto à inclusão da despesa governamental no seu cálculo (Simon Kuznets, o grande impulsionador do sistema de contas nacionais, pelas quais recebeu o Nobel da Economia, foi contra essa inclusão). Enumera em seguida, explicando, algumas das principais razões que justificariam a sua exclusão do cálculo para concluir pela naturalidade da sua adopção pelos governos na configuração que se mantém desde a sua criação - faz jeito ao governo (a TODOS os governos) serem "promotores" e "agentes activos do crescimento".

Isso leva-o a construir e a calcular um novo "conceito" - o Produto Privado Interno Produto - na tentativa de melhor isolar o verdadeiro crescimento do produto interno - aquele produzido no sector privado. A conclusão que retira, após a análise da evolução do PPIB nos últimos 12 anos nos EUA é, não surpreendentemente, lúgubre.
"Nas décadas de 1930 e 1940, quando o moderno sistema moderno de contas  nacionais para a determinação do rendimento e do produto [NIPA] estava sendo desenvolvido, o "perímetro" do produto nacional foi um tema calorosamente debatido. Nenhuma questão provocou mais debate do que esta: deve o produto governamental ser incluído no produto bruto? Simon Kuznets (Nobel de Economia de 1971), o americano que deu o mais importante contributo para o desenvolvimento do sistema de contas nacionais, tinha grandes reservas quanto a incluir todas as compras de bens e serviços governamentais no produto nacional. Ao longo dos anos, outros elaboraram sobre as razões que ele então adiantou e outras razões foram entretanto aduzidas.

Porquê excluir o produto estatal? Em primeiro lugar, as actividades estatais podem ser vistas como dando origem a produtos intermédios em vez de produtos finais, mesmo que o governo seja fornecedor de serviços valiosos como o de fazer valer os direitos de propriedade privada ou o de promover a resolução de disputas. Em segundo lugar, porque não sendo os serviços públicos, na sua maioria, vendidos nos mercados, os seus preços não são determinados por eles [não resultam da interacção entre a procura e a oferta] para que possam ser usados no cálculo do seu valor total àqueles que deles beneficiam. Em terceiro lugar, porque muitos serviços públicos surgem por motivos políticos e não de motivações económicas ou de instituições, alguns deles podem ter pouco ou nenhum valor. De facto, alguns comentadores - onde se inclui o autor destas linhas - foram até ao ponto de  afirmar que alguns serviços públicos têm valor negativo: se lhes fosse dado escolher, as pessoas vitimizadas por esses "serviços" estariam dispostas a pagar para se livrar deles.



Quando o governo atingiu proporções gigantescas durante a Segunda Guerra Mundial, este debate foi posto de lado enquanto a guerra durou, e as contas foram instituídas de uma forma que melhor acomodou a tentativa do governo de planear e controlar a economia com o propósito principal de ganhar a guerra. Esta situação, naturalmente, ditou que os gastos estatais, que cresceram até ao ponto de quase constituir a metade do produto interno bruto oficial (PIB) durante os anos de pico da guerra, fossem incluídos no PIB, e o Conselho de Produção de Guerra [War Production Board], o Departamento de Comércio e outras agências governamentais envolvidas na composição do NIPA recrutaram um grande corpo de funcionários, entre outros, contabilistas e economistas para levar a cabo o trabalho.

Depois da guerra, o Departamento de Comércio, que levou por diante a contabilidade nacional para a qual tinha contribuído durante a guerra (desde 1972 no âmbito do seu Gabinete de Análise Económica [Bureau of Economic Analysis], naturalmente preferiu continuar a utilização do seu sistema preferido, que trata toda a despesa pública com bens e serviços finais, como parte do PIB. Economistas como Kuznets, que não favoreciam esta metodologia, tentaram durante algum tempo continuar o seu trabalho segundo as suas próprias e diferentes linhas de pensamento, mas nenhum desses economistas podia competir com a enorme e bem financiada organização estatística que o estado possuía, e quase todos eles acabaram eventualmente por desistir aceitando o NIPA oficial (O'Brien 1994, 242; Higgs 2006, 64-68).

E foi assim que a despesa pública se alojou na definição e medição do PIB de uma forma que as subsequentes gerações de economistas, jornalistas, políticos e outros consideraram adequada e tomaram por adquirida. No entanto, as questões que tinham sido alvo de longa disputa durante as décadas de 1930 e 1940 não desapareceram. Elas foram simplesmente ignoradas, muito embora não tivessem sido resolvidas no plano intelectual, para simplesmente serem varridas para debaixo do grande (e caro) tapete do Departamento de Comércio. Em particular, a inclusão da despesa pública no PIB manteve-se extremamente problemática.

Gerações de estudantes de economia elementar desde a Segunda Guerra Mundial terminaram a cadeira de Introdução à Economia tendo aprendido, se alguma coisa, que o PIB é definido como:

PIB = C + I + G + X - M

Ou seja, o PIB durante um determinado período, geralmente um ano, é a soma das despesas em bens e serviços finais pelos consumidores domésticos privados [Consumo das famílias] (C), pelos investidores privados domésticos [Investimento das empressa] (I), pelos governos domésticos (G) em todos os níveis (federal, estadual e municipal), além das compras de exportações dos Estados Unidos por parte de estrangeiros (X) menos as compras pelos americanos de importações ao estrangeiro (M). Este tipo de contabilidade fornece a estrutura básica para os modelos keynesianos que tomaram de assalto a profissão de economista nas décadas de 1940 e 1950, a partir da qual uma conclusão política fundamental foi derivada: a de que o estado pode variar a sua despesa para compensar deficiências ou excessos de despesa privada e, assim, estabilizar o crescimento da economia e manter "o pleno emprego". Desde o início, a parte mais enfatizada desta conclusão foi a de que os aumentos da despesa pública podem compensar eventuais declínios na despesa privada e, assim, evitar ou moderar as contracções macroeconómicas.

Grande parte do aumento da despesa pública nas últimas décadas decorreu do aumento de pagamentos de transferências - pagamentos para as quais o governo não recebe bens e benefícios em troca - como é caso das pensões da Segurança Social, dos benefícios por incapacidade laboral, e dos pagamentos via Medicare [link] ou Medicaid [link] para subsidiar os serviços de saúde dos beneficiários. Em 2000, esses pagamentos totalizaram 56% do total dos gastos federais; em 2012, eram 61% (dados do US Office of Management and Budget [link] 2012, 332-33). Os pagamentos de transferências não entram no cálculo do rendimento e do produto nacional: apenas as compras de bens e serviços finais são incluídas. Os economistas keynesianos alegam, contudo, que o governo pode usar os acréscimos das transferências para amortecer as quedas na actividade económica das empresas da mesma forma que pode aumentar as suas compras de bens e serviços finais, porque os acréscimos nas transferências fazem crescer o rendimento pessoal ["rendimento disponível"] estimulando uma maior despesa de consumo e, portanto, também uma maior despesa de investimento e, consequentemente, por ambas as vias, um aumento no PIB.

As questões precedentes assumiram uma relevância especial durante os últimos cinco anos quando o governo federal aumentou fortemente a sua despesa total. O total das despesas reais federais aumentou em 25%, de 2,564 milhões de milhões de dólares para (uma estimativa de) 3,213 milhões de milhões (em dólares de 2005) entre os anos fiscais de 2007 e 2012 (US Office of Management and Budget 2012, 27). Embora grande parte desse acréscimo tenha assumido a forma de aumentos nas transferências, a parte que está incluída no PIB também cresceu substancialmente - a nível federal, aumentou em 13% (em dólares reais) entre 2007 e 2012. Parte desse aumento foi compensado por uma diminuição nas compras estaduais e locais de bens e serviços finais, que caíram 4% durante este período (dados do Departamento de Comércio dos EUA).

Como o modelo keynesiano básico implica, os recentes aumentos da despesa pública parecem ter impedido um ainda maior declínio no PIB real durante a recessão que começou no Inverno de 2007-2008. Mesmo admitindo que tal possa ter sucedido, porque grande parte destas despesas pode ter tido, em si mesma, pouco ou nenhum valor - ou até mesmo um valor negativo -, a questão permanece quanto a saber se, apesar do que os números oficiais do PIB mostram, o verdadeiro bem-estar económico da população possa ter sofrido uma contracção maior do que economistas convencionais, jornalistas, políticos e outros acreditam.

Para resolver esta questão, calculei o que chamo de "produto privado interno bruto" (PPIB), que é simplesmente o PIB padrão em termos reais menos a parcela das compras governamentais nele incluído. A Figura 1 mostra o movimento dessa variável no período de 2000-2012.


Se o PPIB real tivesse crescido à sua taxa média de longo prazo de cerca de 3% ao ano durante o período de 2000 a 2012, ele teria aumentado em cerca de 43%. Na realidade, porém, o PPIB real aumentou durante este período apenas 22% ou cerca de 1,7 % por ano, em média. Assim, durante este período de mais de uma década, o produto privado cresceu a uma taxa ligeiramente superior a metade da sua taxa média histórica. Entre 2002 e 2007, enquanto a bolha imobiliária foi dando origem a um crescimento aparentemente efusivo, até mesmo superior ao do sector da habitação, os bons tempos pareciam ter voltado, mas o inevitável estouro de 2007-2009 e a lenta recuperação desde 2009 trouxe a taxa de crescimento do período intermédio de 2000-2012 de volta a um nível anémico. A recuperação do período de 2009-2012 trouxe o PPIB real para um nível de apenas 3% acima do seu nível de 2007, o que significou cinco anos sem praticamente nenhum ganho líquido e a ocorrência de muito sofrimento entre o início e o fim do período.

Provavelmente que a declaração mais positiva que possamos fazer sobre o desempenho da economia privada durante este período de treze anos é que foi algo melhor que a completa estagnação. Muitas das medidas tomadas para lidar com a contracção recente - enormes acréscimos na despesa e na dívida do governo federal; uma grande expansão das reservas bancárias por acção do Fed, a alocação de crédito directamente a empresas em declínio e a sectores em dificuldade e a acomodação dos défices gigantescos do governo federal; e a promulgação pelo governo federal de leis regulamentares extremamente inquietantes, especialmente a Obamacare e a Dodd-Frank Act- terem servido para desencorajar o investimento privado necessário para acelerar a recuperação e lançar as bases para um crescimento económico mais rápido no longo prazo. Para encontrar uma tempestade perfeita semelhante de medidas governamentais [federais] contraproducentes de política fiscal, monetária e regulatória, é preciso voltar aos anos da década de 1930, quando as medidas tomadas nas presidências de Herbert Hoover e Franklin D. Roosevelt transformaram o que provavelmente teria sido uma uma recessão comum de curta duração na Grande Depressão (1987 Higgs, 159-95, 2006, 3-29). Se o governo e o Fed persistirem no tipo de políticas destrutivas que empreenderam desde 2007, o potencial para uma outra grande depressão permanecerá. Mesmo sem uma tal catástrofe, a economia dos EUA apresenta, na melhor das hipóteses, uma perspectiva de fraco desempenho por muitos anos vindouros."

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