segunda-feira, 19 de maio de 2014

Ascensão e (muito) provável queda do dólar americano

Julgo ter encontrado neste artigo de Robert P. Murphy - editor de um muito frequentado blogue para economistas, e autor de vários livros entre os quais o excelente Lessons for the Young Economist (dirigido à população juvenil do ensino secundário nas versões para aluno e professor) -, uma sucinta mas rica súmula da ascensão do dólar bem como da sua previsível queda. Murphy descreve o fim do padrão barra-ouro decretado por Franklin Roosevelt em 1933/34 (incluindo o episódio do roubo que perpetrou aos americanos quando lhes confiscou o ouro que detinham) e o novo arranjo monetário que lhe sucedeu, o dólar-ouro, saído da conferência de Bretton Woods e da "nova ordem internacional", dominada pelos EUA, que resultou da II Guerra Mundial. A meu ver, consegue proporcionar um relato inteligível a um qualquer leitor interessado sem todavia lhe escapar o essencial do porquê do papel privilegiado que o dólar tem proporcionado aos EUA durante todo este tempo. Termina o artigo a  explicar as razões para a sua (muito) provável queda, que, a concretizar-se, antecipa fragorosa. Em suma, razões bastantes para que achasse útil traduzi-lo (eventuais erros da minha inteira responsabilidade).
16 de Maio de 2014
Por Robert P. Murphy

Ainda Não Aconteceu o Crash: Estavam os Economistas da Escola Austríaca
Errados relativamente ao Dólar?

Robert P. Murphy
Os críticos do governo dos EUA, com frequência, chamam a atenção para os perigos da moeda fiduciária. Com efeito, desde que Richard Nixon acabou com a ligação do dólar ao ouro (em 1971), muitos proponentes do "dinheiro sólido" alertaram para um crash do dólar. Isto levou os críticos destes "gold bugs" a ridicularizar as previsões aparentemente erradas destes últimos e dos seus excêntricos pontos de vista. Neste artigo irei percorrer algumas das principais questões nesta matéria. Como veremos, os gold bugs poderão vir a acabar por ser os últimos a rir.

Sob o padrão-ouro clássico, o dólar americano era convertível em ouro à paridade de 20,67 dólares por onça. Quando FDR [Franklin Delano Roosevelt N.T.] tomou posse em 1933, ele terminou com esta estrita ligação do dólar e confiscou o ouro da nação. (O famoso depósito de ouro em Fort Knox foi na realidade construído com a finalidade de armazenar o ouro roubado dos americanos).

Para um breve relato, ver aqui
Posteriormente, o dólar voltou a uma relação estável de convertibilidade de 35 dólares por onça, que perdurou durante a era de Bretton Woods subsequente à II Guerra Mundial. Sob este arranjo, os cidadãos comuns não tinham o direito de converter os seus dólares de papel em ouro, mas os outros bancos centrais poderiam fazê-lo. O resto do mundo foi incentivado a usar dólares - não o ouro - como moeda de reserva, porque (assim lhes disseram) o dólar era ele próprio tão bom quanto o ouro.
A gigantesca despesa pública dos finais da década de 1960 - resultante, entre outros motivos, da guerra do Vietname e da "guerra à pobreza" de LBJ [Lyndon Baines Johnson - N.T.] - levou a Reserva Federal a emitir novos dólares para comprar títulos de dívida pública do governo federal. Por outras palavras, chegara a altura de recorrer ao método, consagrado ao longo do tempo, do governo se voltar para as rotativas de impressão (neste caso, de forma indirecta) para cobrir os seus défices orçamentais durante a guerra. Os outros governos começaram a ficar nervosos, em especial o francês, e iniciaram o envio dos seus dólares de volta aos EUA para os converter em ouro. Isto viria a colocar o governo dos EUA numa situação de ter de optar entre o desacelerar da sua inflação monetária (e, portanto, a cortar nas sua despesa), ou em abandonar o seu compromisso de resgatar os dólares por ouro. Nixon escolheria esta última opção em 1971.

À época, alguns economistas keynesianos previram que o preço do ouro, medido em dólares, cairia. Pensavam que o metal amarelo havia sido alavancado devido à sua convertibilidade na moeda preciosa emitida pelo poderoso governo dos EUA. É claro que sucedeu o oposto. Vendo-se com as mãos livres, a Fed aumentou a sua inflação monetária (ou seja, a criação de novos dólares ), e isto conduziu a um subida significativa dos preços ao consumidor, bem como a um grande aumento nas cotações do ouro ao longo dos anos da década de 1970.

Agora que as autoridades norte-americanas tinham seguido os caminhos fatídicos de outros regimes, a inflação crónica dos preços nos finais dos anos 70 teria espiralado numa hiperinflação. Mas Paul Volcker, o novo presidente da Fed nomeado por Carter em 1979, administrou um remédio amargo à nação quando aplicou os freios às máquinas impressoras. Isto conduziu a uma acentuada subida das taxas de juro, que provocou o crash da economia e levou a recessões terríveis nos inícios dos anos 80. Todavia, a terapia de choque funcionou no sentido em que a queda do poder de compra do dólar foi fortemente desacelerada, assim pondo termo à espiral da morte inflacionária em que outros governos mergulharam os seus países.

Devido ao óbvio compromisso de proteger (relativamente falando) o câmbio do dólar, bem como à redução acentuada das taxas marginais máximas do imposto sobre o rendimento na administração Reagan, os anos 80 assistiram a um grande aumento na procura internacional de activos denominados em dólares. Ora, se o resto do mundo pretende adquirir participações (líquidas) em activos financeiros americanos (tais como acções, obrigações, ou mesmo bens imobiliários), as contas do comércio internacional terão que traduzir um défice nas transacções correntes (que é um conceito mais amplo que a mais intuitiva "balança comercial"). Na verdade, os EUA começaram a incorrer em enormes défices nas transacções correntes em meados da década de 1980.

Desde 1971 que o governo dos EUA desfruta da sua posição de produtor da moeda de reserva do mundo. Simplificando um pouco, eis o que se está a passar: sem restrições à sua inflação monetária, o governo pode imprimir novos dólares e enviá-los para o exterior, onde os estrangeiros os acrescentarão às suas carteiras de participações, juntamente com os seus próprios activos nacionais denominados nas respectivas moedas. O modo como estes estrangeiros obtêm os seus dólares é através da exportação de bens e serviços reais para os Estados Unidos. É um bom negócio enquanto durar: o Tio Sam apõe "$100" num pedaço de papel verde pelo qual alguém na China envia em troca um aparelho de televisão. A única coisa que mantém o sistema a flutuar é que os estrangeiros estão dispostos a absorver cada vez maiores quantidades de activos denominados em dólares, porque confiam que as autoridades americanas não irão desvalorizar o dólar a um ritmo excessivamente rápido.

É verdade que este sistema durou muito mais tempo do que muitos dos gold bugs previram. Mais recentemente, eu próprio errei em pelo menos uma das minhas previsões (feitas entre amigos economistas) quanto à rapidez da subida dos preços ao consumidor em resposta às várias injecções monetárias desde 2008. E todavia, desde os inícios da década de 1970, o dólar desceu cerca de 25% contra as principais divisas, e cerca de 97% em relação ao ouro. (Um dólar comprava 1/35 avos duma onça de ouro em 1971 contra 1/1300 hoje). Enquanto isso, existem actualmente cerca de 2,6 milhões de milhões de dólares de "excesso de reservas" no sistema bancário comercial dos EUA, o que em termos ligeiros significa que os bancos têm a capacidade legal de criar um montante adicional de 26 milhões de milhões de dólares em novos depósitos nas mãos do público, se e quando se sentirem confortáveis em retomar a concessão de empréstimos.

Resumindo, creio que o dólar americano, os títulos do Tesouro dos EUA, e o mercado accionista dos EUA estão todos sobrevalorizados - numa "bolha", como se diz. A dificuldade em anunciar uma bolha reside no facto de quem o faz poder estar certo, mas todavia poder passar por tolo durante alguns anos enquanto a bolha continua a inchar. (Recorde-se a forma como as pessoas literalmente riram na cara de Peter Schiff quando ele anunciou a bolha imobiliária.)

Se e quando a bolha do dólar rebentar, veremos os preços a subir não apenas pelo que Bernanke (e agora Yellen) bombearam desde 2008, mas devido à torrente de dólares, a fluir de volta aos EUA, que foram acumulados durante anos de défices da balança comercial. Nessa altura, a Fed terá de decidir: deixar naufragar o sector financeiro dos EUA e a economia como um todo em ordem a salvar o dólar (uma situação comparável à actuação de Volcker no final da década de 1970, só que em escala muito maior)? Ou irá seguir o caminho de vários outros bancos centrais da história, e recorrer às rotativas até que o jogo termine? Em qualquer caso, não vai ser bonito de se ver.

9 comentários:

JS disse...

Mais interessados, também, noutras paragens.
" ... Gold is money “in extremis”, and this is why it should not be stored out of the country. Only exception being an exceptional situation like a war, and only for a short time. I think that the only motivation countries had to store their gold in New York was greed through the possibility to speculate on gold at the risk of losing this “in extremis” reserve. Actually, this is what happened to Portugal; during the 2008 crisis and the Lehman Brothers’ default, the country lost its gold it had lent out. In times of crises or wars, it is very important not only to have legal ownership but also physical possession of the gold. Geopolitical alliances may change at any time and access to this “in extremis” money could be restrained or even refused ...".

http://www.zerohedge.com/news/2014-05-18/gold-geopolitics

Saudações.

JS disse...

... e um comentário "interessante" por Strannick's:

" ... Au contraire. When western Sovereign Govts sell gold, especially lackey nations like Canada and Portugal, they trade it off balance sheet, seripitiously, leased, traded after market, via proxies thru the B.I.S., trade it during illiquid hours, at market, in conjuction with the Federal Reserve and BOE, to smash the price...."

"Gold is my enemy"
-Paul Volker

Pi-Erre disse...

No post aparece duas vezes o nome de Richard P. Murphy em vez de Robert P. Murphy. Será lapso?

Eduardo Freitas disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Eduardo Freitas disse...

Caro Pi-Erre,

Corrigido (o nome correcto é Robert). Obrigado pela chamada de atenção.

Saudações

LV disse...

Caro JS,

A passagem de Volker espelha exactamente aquilo que muitos não sabem (ou talvez tenham receio de o admitir): o ouro foi sempre o travão à trapalhada dos bancos centrais e das elites políticas (e académicas).
As limitações que um padrão-ouro tivesse haveriam de ser muito pequenas quando comparadas com as voltas que as negociatas de papel encerram.
Ocorre-me a expressão (não recordo o autor): "a dívida é a matéria-prima de que é feito o papel-moeda" ("Debt is the raw material from what fiat money is made").

Saudações,
LV

LV disse...

Procurei informação relativa à renovação do acordo entre bancos centrais europeus (de dentro e fora da zona euro) acerca das reservas de ouro no sítio do banco de Portugal, mas apenas encontrei no SNB (suíço).

"Gold agreement between the SNB and other central banks extended
The Swiss National Bank (SNB), the European Central Bank (ECB), the central banks of the euro area (Austria, Belgium, Cyprus, Estonia, Finland, France, Germany, Greece, Ireland, Italy, Latvia, Luxembourg, Malta, the Netherlands, Portugal, Slovakia, Slovenia, Spain) as well as the Swedish Riksbank today announce the fourth gold agreement between central banks.
To state their intentions with regard to their gold holdings, the participants in the gold agreement make the following declaration:
- Gold remains an important element of global monetary reserves.
- The participants in the gold agreement will continue to coordinate their gold transactions so as to avoid market turmoil.
- The participants currently have no plans to sell any substantial quantities of gold.
The agreement, which applies as of 27 September 2014, following the expiry of the current agreement, will be reviewed in five years’ time. The first gold agreement was concluded in 1999 in order to coordinate the planned gold sales by the different central banks. The agreement was extended in 2004 and 2009."

(ligação:http://www.snb.ch/en/mmr/reference/pre_20140519_1/source/pre_20140519_1.en.pdf)

O que é estranho é que nada se sabe destas coisas, destas decisões em nosso nome. E é, igualmente, estranho que o acordo anterior era válido até 29 de Setembro… mas a sua renovação foi antecipada… Porque será?

Saudações,
LV

majoMo disse...

JS e LV, muito obrigado pelas informações que em Portugal são de todo omitidas/ocultadas!

LV disse...

majoMo,

Efectivamente, nada relativo a estes temas é discutido com a serenidade e a seriedade necessárias. Apenas se detectam os actos da narrativa da verdade oficial. No dia seguinte ao estabelecimento deste acordo dos Bancos centrais (já é o quarto!) relativamente à importância estratégica do ouro, um jornal dedicado à economia (o Económico, creio) fazia notícia de que havia uma quebra na procura de ouro.
E pronto, é tudo.
Desconhecem estes actores que face às alternativas de investimento (embora o ouro não deva ser compreendido apenas como tal), o ouro - este ano - está melhor do que alguns índices? S&P 500: +1,9%; Russell 2000: -4,5%; ouro: +7,6%
Consta que houve - hoje - mais uma "troca" de bilhetes do Tesouro americano por várias toneladas de ouro por parte da Rússia. Uma venda de papel para aquisição de metal físico, bem entendido.
Lá teve de vir a Bélgica em auxílio da dívida americana…
"Sigam caminho, não há nada para ver por aqui" é o que nos dizem.
Saudações,
LV