segunda-feira, 12 de maio de 2014

Fronteiras (também a propósito da Ucrânia)

Uma confissão prévia: não só não me dei conta da passagem do "dia da Europa" (o que poderia passar por mera distracção) como - e mais "grave" - desconhecia mesmo a sua existência. De resto, não fora um outro cartaz na rua, dificilmente evitável ao olhar, e umas quantas fotografias sorridentemente indigentes no facebook (e também capa de um jornal) onde descortinei o que julgo ter sido um candidato a candidato a presidente da Comissão Europeia, e corria o risco de não me dar conta de a campanha eleitoral para as eleições "europeias" se ter iniciado. Bem, exagero um pouco pois não apenas sou um visitante frequente do Euro Referendum como procuro seguir o caminho que o UKIP e o seu líder, Nigel Farage, vão trilhando (e as sondagens prometem-lhe uns saborosos 20%!).

Agora que começam a chegar os primeiros resultados dos referendos de ontem em várias zonas da Ucrânia do Leste, parece-me oportuno sublinhar duas coisas relevantes para os europeus:
1) Que o "desafogo" a que agora assistimos no financiamento da dívida pública, que determinou ao governo português uma "saída limpa", é totalmente artificial (os "mercados" estão a exigir à república portuguesa um prémio menor do que fazem, por exemplo, à Austrália, um país de rating AAA);

2) A importância de se conhecer a história. A esse respeito, dois mapas: um primeiro da The Economist que ilustra o que seria a geografia do mundo caso a suposta doutrina de Putin de protecção da "nação russa" fosse levada por diante à escala mundial. Nem uma palavra, claro, quanto ao facto de ter sido exactamente essa a doutrina efectiva de Woodrow Wilson que assacava à Alemanha a responsabilidade pela segurança dos cidadãos americanos a bordo dos navios que atravessavam o Atlântico, mesmo dos que que transportassem armamento e munições (caso do Lusitania). Tal doutrina constituiu peça central na estratégia de envolvimento da América no conflito.


Depois, um segundo no The Telegraph, que recorda as muito poucas zonas do globo que nunca foram alvo de uma invasão por parte dos britânicos:


Posto isto, que já vai demasiado longo, proponho-vos o texto de Simon Black que me chamou a atenção para a existência do "dia da Europa". Nele se inclui uma muito breve mas ainda assim interessante reflexão sobre o carácter arbitrário das fronteiras e, consequentemente, para a mutabilidade das mesmas. De resto, mercê das tecnologias e da massificação do transporte aéreo, elas já se estão na realidade a diluir. Isto, claro está, para além da concorrência entre países pela atracção dos factores que lhes fazem falta. A tradução, algo livre, é da minha responsabilidade.
9 de Maio de 2014
Por Simon Black

Adivinhem que dia é hoje?!

Já ouviram falar da lenda urbana sobre o modo como Winston Churchill retalhou um mapa de África em estado de torpor alcoólico?

De facto não existe nenhuma prova que permita validar esta história.

Mas o que é verdade é que, do nada, a partir dos seus palácios em Bruxelas, Paris e Londres, os imperialistas europeus conjuraram nações inteiras em África.

E tudo isto foi feito sem qualquer consideração por divisões étnicas, linguísticas, religiosas e históricas entre as várias tribos que habitavam a África.

Mas o que poucas pessoas se apercebem é que a Europa não é diferente.

Pense-se nisto: o Reino Unido é constituído pela Inglaterra, País de Gales, Escócia e Irlanda do Norte agrupados numa união política.

Cada uma delas [das nações] é totalmente diferente das outras. E os movimentos secessionistas estão bem vivos.

A Escócia vai realizar um referendo sobre a sua independência em Setembro. E os problemas na Irlanda do Norte flagelam a região há décadas.

A Bélgica é um país completamente artificial, e os flamengos perseguem activamente a sua independência em relação aos valões.

Em finais do século XIX, quer a Alemanha quer a Itália foram unificadas em países modernos a partir de diversos feudos e cidades-estado com fortes identidades regionais.

Essas identidades regionais continuam presentes ainda hoje. Há apenas algumas semanas atrás, teve lugar um referendo em Veneza sobre a independência da região.

Os movimentos separatistas bascos em Espanha estão mais fortes do que nunca. Os Balcãs foram uma experiência absurda. E poderia continuar por aí adiante.

A Europa é o melhor exemplo de que as fronteiras - e os países - são completamente arbitrários.

Elas são criadas com um propósito - o de consolidar a autoridade sobre um pedaço de terra e as pessoas que nele vivem.
Sucede que hoje é o "Dia da Europa", uma ocasião em que é suposto os europeus comemorarem a "Declaração Schuman", o pontapé de saída para a União Europeia de hoje.

Este é um continente com uma longa história de um constante guerrear entre si.

Os políticos traçaram linhas num mapa, formaram alguns novos países, e esperaram que tudo viesse a correr bem.

A certa altura, tornaram essas linhas ainda mais abrangentes quando consolidaram tudo na União Europeia. E os políticos da UE estão a tentar não ficar por aí.

A história mostra que quando a conjuntura económica é boa, as pessoas mostram-se satisfeitas com a unidade.

Mas quando os tempos estão difíceis como é agora o caso, as divisões começam crescer. As pessoas olham à sua volta e dizem que "este sistema não está a funcionar".

Elas exigem mudança. Por vezes, de forma violenta. E seríamos insensatos se supuséssemos que desta vez vai ser diferente.
A avenida imediata para evitar este conflito ainda continua a ser a do recurso a meios pacíficos -o recurso a referendos e a ascensão de partidos políticos nacionalistas e eurocépticos.

Mas é evidente que a tendência é para que as dimensões se reduzam, não para que fiquem maiores. E para que o sistema se altere completamente.

Tal como sucedeu anteriormente com o feudalismo, o estado-nação é uma experiência fracassada que acabará por vir a ser substituída. E isso já está a ocorrer.

Em muitos lugares pelo mundo fora, do Panamá ao Porto Rico ou ao Chile, há uma activa competição por residentes produtivos.
Aí, saúdam-se os estrangeiros e proporcionam-lhes incentivos para lá viver e investir, em vez de tratarem as pessoas como vacas leiteiras.

A tecnologia e os transporte modernos tornaram a geografia praticamente irrelevante.

Já não é necessário estar amarrado a um único pedaço de terra, e certamente não num país conjurado por políticos.

Há um mundo de oportunidades por aí. E cada parte da vida de cada um poderá 'viver' no lugar que melhor se lhe adeqúe.

Por exemplo, o leitor e a sua família poderão viver num belo lugar como Bali, que poderá ter o estilo de vida que considerem melhor.

Mas as suas poupanças podem “viver” em Hong Kong que tem bancos fortes e estáveis. E os seus investimentos podem “viver” na América do Sul capitalizando os negócios com terras agrícolas.

Tudo isto já é hoje possível. E em breve, à medida que mais pessoas se apercebem das oportunidades que por aí há, isto será a regra para toda a gente.

Desejo-vos então um feliz Dia da Europa. Enquanto dura.

Tenha um óptimo fim-de-semana.

3 comentários:

LV disse...

Eduardo,

Oportuno artigo! As máquinas de orientação perceptiva já estão ao rubro.
Fazem esquecer aquilo por que estamos a passar (e o que nos espera quando - mais uma vez! - nos faltar folga), o absurdo que alguns países europeus consigam taxas mais baixas de crédito do que economias dinâmicas (com variáveis demográficas muito mais favoráveis, mais ricos em energia e recursos…), enfim, o filme de terror continua.
Pergunto-me se este clima de optimismo induzido não terá como finalidade a promoção de mais um "dia de celebração do espírito europeu" quando os europeus forem às urnas (se há, ainda, quem vá). Receio que as personagens desta peça se resumam aos crentes na situação e aos extremistas (de várias cores e espaços políticos). E estas personagens alimentam (e muito) a actual situação na Europa. Receio que o fenómeno UKIP e Farage sejam "arrumados" como personagens extremistas britânicos (origem que, para os burocratas continentais, nada pode trazer de bom). E que, caso possam alcançar visibilidade no palco da interpretação da política oficializada, caiam na tentação de exercer essa natureza britânica no seu pior sentido.
Assim, retomando Black e resumindo muito estamos entre o inevitável e o potencial. Entre a inevitabilidade da peça europeia e o potencial energético dos espaços emergentes.
Outra versão para uma oposição entre Ocidente e Oriente? Decadência e Renovação?
Estejamos atentos.
Saudações,
LV

Miguel Madeira disse...

Tenho dúvidas que o mapa da "Grande Rússia" corresponda realmente ao que a doutrina Putin daria - afinal, vejo estados incluidos em que quase não há populações russófonas (a mim parece-me que os autores do mapa simplesmente "restauraram" a antiga URSS sem irem ver a demografia especifica de cada território)

Blogue de Júlio de Magalhães disse...

Um texto muito pertinente, Eduardo. É muito importante reflectirmos sobre a Europa e suas fronteiras. O que há umas décadas era dado como adquirido vai sendo progressivaente modificado. Nada, pois, de certezas nesta matéria, mas tão só de grandes dúvidas quanto ao futuro.

No que à Ucrânia respeita, Putin cumpre o seu papel, muito melhor que o ébrio Yeltsin. As suas ideias são, aliás, partilhadas pela maioria dos russos, excepto quanto aos costumes (Putin sacrifica à ortodoxia religiosa) e quanto à expressão cultural (em que o advento de uma censura inepta cria obstáculos à criação artística e literária, sem verdadeiro proveito para o regime). As censuras culturais nunca aproveitaram aos regimes autoritários, o caso do Estado Novo é um exemplo.