segunda-feira, 16 de junho de 2014

O inimigo do meu inimigo tornou-se inimigo do meu amigo

A incapacidade de reconhecer os erros cometidos e assumir as respectivas responsabilidades é uma característica excessivamente comum nos políticos para reduzir estas declarações de Tony Blair a um mero caso do foro psiquiátrico. A mentira das "armas de destruição maciça" não foi no essencial diferente - à excepção, talvez, da sua escala - dos "incidentes" do Golfo de Tonkin, da explosão a bordo do USS Maine no porto de Havana ou do bombardeamento do Fort Sumter entre inúmeros outros exemplos. Mas a História ensina-nos que os Impérios não são eternos e, a meu ver, os acontecimentos recentes no Iraque são já extremamente parecidos com a última fase da guerra do Vietname (que começou com os franceses, recorde-se). Por muitas "linhas vermelhas" que se tracem (em caso de conveniência, já se vê). E não é que não tenha havido avisos prévios do que aí viria (um bom exemplo de avivar de memória pode ser lido aqui).

Com tradução de minha responsabilidade (tal como as imagem e os links introduzidos), o texto abaixo de Eric Margolis fornece uma narrativa que, infelizmente sem surpresa, não encontro eco nem nos media nem na blogosfera portuguesa. Também aqui as pistas para o que está a suceder no Médio Oriente remontam aos tempos da I Guerra Mundial e às maquinações imperiais das "Grandes Potências".
14 de Junho de 2014
Por Eric Margolis

Iraque: o caos todo-poderoso

Eric Margolis
O falecido Saddam Hussein tinha realmente razão quando previu que a invasão americana do Iraque se iria tornar na "mãe de todas as batalhas". Onze anos depois, a batalha continua.

Nesta semana, assistimos ao colapso de duas divisões do exército governamental do Iraque, 30 mil homens correndo como galinhas diante do avanço implacável dos combatentes do ISIS - Estado islâmico do Iraque e do Levante (Síria). O mesmo exército fantoche que foi treinado e equipado durante uma década pelos EUA pela soma de 14 mil milhões de dólares. Um mau augúrio para aquilo que aguarda o exército e a polícia do Afeganistão, também eles criados pelos EUA.

Recordam-se de quando o presidente George W. Bush se vangloriava da "missão cumprida"? Não foi o malévolo Saddam Hussein linchado pelos aliados xiitas dos EUA? Não foi a temida Al-Qaeda derrotada e o seu líder, Osama bin Laden, assassinado? Recordam-se de todo aquele palrar proveniente de Washington para "drenar o pântano" no Iraque?

Logo que os EUA derrubam um desafiante ao seu domínio no Médio Oriente - aquilo que chamo de American Raj - há outro que se ergue. O mais recente: o ISIS, uma feroz força jihadista que agora controla grandes parcelas da Síria e do Iraque.

O ISIS é uma combinação de grupos jihadistas sunitas que combatem o governo de Damasco, apoiado pelos xiitas, de Bashar Assad (um inimigo dos EUA apoiado pelo Irão xiita), e unidades de ressurgentes do antigo exército do Partido Baath de Saddam, lideradas por Izzat al-Douri Ibrahin, o último membro sobrevivente do núcleo restrito de Saddam, e um punhado de elementos da Al-Qaeda no Iraque.

Eles batem-se pelo derrube do regime xiita, instalado em Bagdad pelos EUA, de Nuri al-Maliki, um aliado dos iranianos. Há suspeitas de que o ISIS possa estar a ser secretamente financiado pelos sunitas da Arábia Saudita, um aliado dos EUA.

Esperem aí. O inimigo do meu inimigo meu amigo é, segundo o velho ditado do Médio Oriente. Os EUA estão a tentar derrubar o governo secular da Síria para enfraquecer o seu aliado, o Irão. Os EUA vêm servindo-se de grupos jihadistas brutais contra o regime de Assad em Damasco. Mas agora esses jihadistas na Síria, na sua maioria, caíram sob o domínio do ISIS - que está a engolir o regime de Bagdad apoiado pelos EUA. Confuso, não é? O inimigo do meu inimigo tornou-se inimigo do meu amigo.

A invasão do Iraque em 2003, a guerra mais estúpida da história dos EUA, que foi entusiasticamente apoiada pelo Congresso e pelos media, produziu uma desordem monumental de uma complexidade mentalmente entorpecente enquanto Washington tropeça nos seus próprios pés. As senhoras que aconselham o presidente Barack Obama relativamente à sua política no Médio Oriente estão irremediavelmente confundidas.

Washington, agora em estado de pânico por causa do ISIS, está a inclinar-se pelos ataques aéreos contra o Iraque usando os aviões de combate estacionados no Kuwait e no Golfo. Os EUA têm também duas brigadas de combate totalmente mecanizadas no Kuwait. Os republicanos reclamam a reentrada de forças terrestres dos EUA no Iraque para escorar o amplamente detestado regime de Maliki.

Enquanto Washington hesita, o seu pequeno protectorado curdo no norte do Iraque ameaça enviar os seus eficazes combatentes "Pesh Merga" contra o ISIS. Mas isso está a levar a que tanto a Turquia, que se opõe a qualquer estado curdo, como o Irão, com seu próprio problema curdo, se sintam muito desconfortáveis. O Iraque fez parte do Império Otomano. As suas vastas reservas de petróleo são uma tentação constante para uma Turkey desprovida de fontes de energia.

Esta horrível confusão pode ser directamente rastreada aos estrategas neoconservadores em Washington agrupados em torno do vice-presidente Dick Cheney. Em 2002, o seu objectivo principal, de acordo com Cheney, foi o de destruir o Iraque, o estado árabe industrialmente mais avançado e progressista, com a finalidade de remover um grande inimigo de Israel, e, em seguida, de ficar com o seu petróleo.

Seguindo a fórmula imperial romana, testada pelo tempo, de "divide et impera" (dividir para reinar), Washington jogou no Iraque os há muito oprimidos xiitas contra a minoria sunita, desencadeando um amplo conflito entre sunitas e xiitas no mundo árabe, nomeadamente na Síria.

Com efeito, Israel emergiu como o único vencedor estratégico da guerra de Bush/Cheney contra o Iraque. Aquela guerra, até agora, custou aos EUA 4.500 soldados mortos, 35.700 feridos, 45.000 doentes e mais de 1 milhão de milhões de dólares. O Iraque está em ruínas, provavelmente despedaçado de uma tal forma que não volte a ser possível tornar a juntá-lo. Nenhum alto funcionário americano ou britânico foi presente a um tribunal por esta desastrosa e fraudulenta guerra.

Nuri Maliki excluiu totalmente os sunitas do poder no Iraque, e usa a brutal polícia secreta e a tortura para os reprimir. Não admira que enfrente uma revolta de grande dimensão. A economia do Iraque, assente no petróleo, permanece em ruínas. Muitos iraquianos acreditam que a sua agora desgraçada nação estava muito melhor sob o regime de Saddam Hussein, por brutal e torpe que ele tenha sido.

Imagem daqui
Curiosamente, os esforços do ISIS para forjar um estado islâmico através de uma fusão entre a Síria e o Iraque constituem um dos primeiros grandes desafios ao sórdido acordo de Sykes-Picot de 1916 sob o qual os impérios britânico e francês secretamente conspiraram para dividir os despojos dominiais no Médio Oriente do moribundo Império Otomano. As fronteiras artificiais de hoje no Médio Oriente foram desenhadas pelos imperialistas anglo-franceses para impor o seu domínio na região. O Iraque e a Síria foram os exemplos mais egrégios.

O ISIS parece estar empenhado em apagar as fronteiras artificiais de hoje franco-britânicas e a recriar a província otomana unificada (em turco: vilyat) da Síria, Líbano e Iraque. No Ocidente, o commentariat dominado pelos neocons chama terroristas ao ISIS. No Médio Oriente, muitos vêem-nos como combatentes anti-coloniais que lutam para reunir o mundo árabe dividido e estilhaçado pelas potências ocidentais As potências ocidentais preparam-se agora para ripostar.

4 comentários:

floribundus disse...

a indústria de guerra e a sua máquina estão bem montadas e oleadas desde a guerra da secessão

custa dizer e faço-o com mágoa

mas o mundo actual é para ditadores

Unknown disse...

Informação de qualidade que não se encontra na nossa "imprensa" copista.

Anónimo disse...

o ISIS ou alqaeda com outro nome vêm da Siria, Libia, Egipto. Quem apoiou a queda destes regimes ? Mr Bobama ainda há poucos meses dizia que a alqeda estava derrotada. A administração Bobama tranformou o medio oriente num inferno com o seu apoio à primavera árabe apoio militar em armas e dinheiro que foram parar aos terroristas ( caso Libia e Siria ). E agora diz que não é nada com ele. E a culpa foi da invasão do iraque ? vão-se catar.

Eduardo Freitas disse...

Portanto, na sua perspectiva, caro Anónimo, a invasão do Iraque, como aliás a do Afeganistão (e não foi ali que historicamente nasceu o que viríamos a conhecer por Al-Qaeda?), foram um sucesso tremendo até ao final dos mandatos de George W. Bush, sucesso esse que Barack Obama desbaratou. É isso?

Dito de outra forma: uma vez tomada a decisão de intervir num qualquer canto do mundo, os EUA, em nome da preservação de uma paz (?) duradoura, devem permanecer por lá para todo o sempre e, assim, "honrar" a memória das suas próprias vítimas como aconteceu na Europa, no Japão, na Coreia, nas Filipinas, em Cuba, na Turquia, no Kuwait, no Bahrein, etc., etc., num total de largas centenas de bases militares (700? 900?) que tem espalhadas pelo mundo. A legitimidade para o fazer, suponho, decorrerá do excepcionalismo americano que a divindade para todo o sempre lhes outorgou. É assim?