sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Não, a América não é comunista. Só é 70% comunista

Há uns meses atrás cheguei a esboçar um post cujo título seria "A vitória do marxismo é praticamente total". A ideia era ilustrar a tremenda proximidade, quando não mesmo decalque, entre a realidade que hoje vivemos e aquela que Marx e Engels, em 1848, pretendiam então conseguir a curto prazo como um primeiro passo em direcção à construção do paraíso na Terra.

A minha intenção acabou por não se concretizar mas Simon Black escreveu agora algo de parecido (obviamente muito melhor do que eu o faria) com o que eu pretendi.  É provável que muitos tomem o título que roubei ao artigo de Black como denotando um exagero a roçar a tontice. É esse texto, escorreito, despretensioso e to the point, que me propus traduzir e ao qual acrescentei algumas imagens, notas e links, todos da minha inteira responsabilidade. Quem continuar a sorrir com prazenteira bonomia após ter concluído a leitura do texto, ou quem já desistiu nesta altura de o ler de todo, vá até aqui e reflicta sobre algumas das razões por que a grande máquina de produção de riqueza, de liberdade e  de felicidade que é o capitalismo praticamente deixou de funcionar nos países ocidentais. 
29 de Setembro de 2014
Por Simon Black

Não, a América não é comunista. Só é 70% comunista.
(No, America isn’t Communist. It’s only 70% Communist.)

"Os proletários não têm outra coisa a perder que não as suas correntes. Têm um mundo a ganhar. Proletários de todos os países, uni-vos!"

A maioria das pessoas recorda-se das ideias e frases mais enérgicas de Karl Marx, como da montanha de cadáveres que os seus discípulos deixaram para trás, especialmente no século XX.

No entanto, a maior parte esqueceu-se ou nem sequer conhece as políticas específicas que Marx advogava.

No seu Manifesto Comunista[1] de 1848, Marx elencou uma lista[2] de dez exigências de curto prazo. Estas - pensou - seriam precursoras do ideal do fim do estado, a sociedade comunista sem classes.

Ironicamente, as medidas de Marx assemelham-se muito aos pontos de vista convencionais no mundo de hoje. Isso é assim porque praticamente cada um dos itens dessa lista já foi posto em prática, em diferentes graus, nos Estados Unidos.

Crê o leitor que tal não poderia acontecer na Terra dos Livres? Ora atente no que se segue.

No topo da lista de Marx está a abolição da propriedade privada.



Sim, é verdade que a propriedade privada existe, mas só até ao momento em que o estado queira apossar-se dela. Mediante o recurso aos poderes de domínio eminente[3], o estado pode confiscar - e confisca - a propriedade das pessoas quando a pretende para utilização pública.

A sua propriedade não é incondicionalmente sua. Basta pensar nos impostos sobre os bens imóveis, por exemplo.

Se realmente a propriedade privada fosse SUA, por que há então que pagar impostos sobre ela? E por que razão o estado tem a autoridade para lha tirar caso não os pague?

Da mesma forma, embora não tenhamos assistido à completa abolição do direito de herança (uma outra das exigências de Marx), o estado pode ficar com até 40% da sua propriedade após a sua morte.

Portanto, em última análise, a sua propriedade não é de facto sua. O leitor não consegue controlar o que acontece à sua riqueza e aos seus bens após a sua morte. É apenas uma questão de proporção.

Marx também exigiu a centralização dos transportes e das comunicações. Duplamente conferido.

É experimentar fazer uma transmissão de radiodifusão na Terra dos Livres sem deter uma licença e autorização especial.

Praticamente todo o espectro electromagnético está rigidamente controlado pelo estado, centralizado num punhado de agências governamentais.

O mesmo se passa com a rede de estradas e rodovias. Porque, afinal, sem o estado, quem é que iria construir as estradas...

Um outro ponto de Marx era o da produção agrícola dirigida pelo estado e a unificação da agricultura e indústria.

E a Terra dos Livres não decepciona. Ainda que as suas actividades possam não ter muito destaque nas notícias, o Ministério da Agricultura dos Estados Unidos [conhecido nos Estados Unidos pela sigla USDA – N.T.] é claramente um dos departamentos governamentais com maior azáfama.

Com um orçamento de 146 mil milhões de dólares por ano, e um valor muito maior para subsídios, o USDA trabalha incansavelmente para ditar os termos em que deverão decorrer todas as actividades no sector, sejam elas importantes ou minúsculas.

De borla (PDF e ePub)
A próxima da lista é a obrigatoriedade do trabalho para todos. Se alguma vez se perguntou, como já me sucedeu, por que razão os políticos estão sempre perseguindo a criação de empregos pelos empregos em si, e não pelo valor e criação de riqueza, agora já sabe porquê.

Entre a legislação do salário mínimo e o fluxo contínuo de legislação que promete empregos para todos, é evidente que os políticos interiorizaram completamente este ideal marxista.

Agora, poderá pensar-se que se trata apenas de um acaso, de uma coincidência, que algumas políticas americanas se assemelham ao conteúdo da lista de exigências de Marx.

Mas depois vemos que essas reivindicações, que para além de terem sido plenamente implementadas nos EUA,  estão completamente entranhadas na psique nacional:
Primeiro, temos a educação gratuita para todas as crianças, para possibilitar a uniformidade de pensamento. Confere.

Depois temos um pesado imposto progressivo sobre o rendimento. Sim, eu tenho a certeza que você está familiarizado com este, cuja existência se tornou em algo tão maioritariamente convencional, que considerar um qualquer outro sistema que não este seria considerado um acto revolucionário. Confere.

Em terceiro lugar, vem o confisco da propriedade dos emigrantes (expatriados) e rebeldes.

Entre a intimidação por parte do Internal Revenue Service [equivalente à Direcção-Geral dos Impostos nos EUA lá conhecida pela sigla  IRS- N.T.] aos grupos de oposição política e a imposição de impostos à saída para aqueles que renunciam à sua cidadania, os Estados Unidos estão firmemente dispostos a desencorajar a dissidência e a fuga[4]. Confere.

E por último, mas não menos importante, a centralização do crédito nas mãos do estado pelo recurso a um banco nacional. Confere.

De recordar que Karl Marx pensou que a banca central era uma excelente ideia - exactamente o mesmo indivíduo que achava que o sucesso individual e a propriedade privada eram expressões do mal.

Tenha-se isso presente da próxima vez que a Reserva Federal surgir com um plano para ajudar as empresas e "consertar" a economia.

Agora ficou a saber - a América não é comunista. Só o é em cerca de 70%. Não há razão para preocupações.
_________________
Notas:
[1] Optou-se por apontar para uma edição com o selo de garantia do PCP numa edição dirigida por José Barata-Moura e Francisco Melo.
[2] A lista referida encontra-se na 50ª página do ficheiro pdf indicado na nota [1].
[3] A sua relevância concretiza-se no poder de expropriação da propriedade privada por parte do estado por invocação do "interesse público".
[3] Fuga ao longo braço do Estado, entenda-se.

6 comentários:

Unknown disse...

Defendo sempre que a disputa esquerda/direita é uma ficção; isto sem ter pensado no assunto visto por este prisma; como na UE dos 70 passamos para uns 85% sinto o ego inchado.
Temos que pensar no futuro e inovação largando os velhos cliches, sem duvida.

Diogo disse...

Embora o texto esteja engraçado, não concordo. Essencialmente por dois motivos:

Ponto – 1

O estado americano (e a esmagadora maioria de todos os outros estados) foi disfarçadamente privatizado e está nas mãos de meia dúzia de indivíduos.


Fernando Madrinha - Jornal Expresso de 1/9/2007:

[...] "Não obstante, os bancos continuarão a engordar escandalosamente porque, afinal, todo o país, pessoas e empresas, trabalham para eles. [...] os poderes do Estado cedem cada vez mais espaço a poderes ocultos ou, em qualquer caso, não sujeitos ao escrutínio eleitoral. E dizem-nos que o poder do dinheiro concentrado nas mãos de uns poucos é cada vez mais absoluto e opressor. A ponto de os próprios partidos políticos e os governos que deles emergem se tornarem suspeitos de agir, não em obediência ao interesse comum, mas a soldo de quem lhes paga as campanhas eleitorais." [...]



Paulo Morais, professor universitário - Correio da Manhã – 19/6/2012:

[...] "Estas situações de favorecimento ao sector financeiro só são possíveis porque os banqueiros dominam a vida política em Portugal. É da banca privada que saem muitos dos destacados políticos, ministros e deputados. E é também nos bancos que se asilam muitos ex-políticos." [...]

[...] "Com estas artimanhas, os banqueiros dominam a vida política, garantem cumplicidade de governos, neutralizam a regulação. Têm o caminho livre para sugar os parcos recursos que restam. Já não são banqueiros, parecem gangsters, ou seja, banksters."


Diogo disse...

Continuação do Ponto 1


George Wallace foi candidato a presidente dos Estados Unidos:

É sobejamente reconhecido que as corporações internacionais contribuem com largas somas de dinheiro para ambos os partidos políticos, mas será possível que ambos os partidos sejam controlados essencialmente pelas mesmas pessoas?

"... não existe diferença nenhuma entre Republicanos e Democratas."

"... A verdade é que a população raramente é envolvida na selecção dos candidatos presidenciais; normalmente os candidatos são escolhidos por aqueles que secretamente mandam na nossa nação. Assim, de quatro em quatro anos o povo vai às urnas e vota num dos candidatos presidenciais seleccionados pelos nossos 'governantes não eleitos.' Este conceito é estranho àqueles que acreditam no sistema americano de dois-partidos, mas é exactamente assim que o nosso sistema político realmente funciona."



O Professor Arthur Selwyn Miller foi um académico da Fundação Rockefeller. No seu livro «The Secret Constitution and the Need for Constitutional Change» [A Constituição Secreta e a Necessidade de uma Mudança Constitucional], que foi escrito para aqueles que partilhavam os segredos da nossa ordem social, escreveu:

"... aqueles que de facto governam, recebem as suas indicações e ordens, não do eleitorado como um organismo, mas de um pequeno grupo de homens. Este grupo é chamado «Establishment». Este grupo existe, embora a sua existência seja firmemente negada; este é um dos segredos da ordem social americana. Um segundo segredo é o facto da existência do Establishment – a elite dominante – não dever ser motivo de debate. Um terceiro segredo está implícito no que já foi dito – que só existe um único partido político nos Estados Unidos, a que foi chamado o "Partido da Propriedade." Os Republicanos e os Democratas são de facto dois ramos do mesmo partido (secreto)."



Professor Carroll Quigley, o mentor de Bill Clinton quando este era um estudante na Universidade de Georgetown. O Presidente Clinton referiu-se bastantes vezes ao Professor Quigley nos seus discursos. O Professor Quigley deu aulas tanto na Universidade de Harvard como na de Princeton antes de se fixar na Universidade de Georgetown.

Embora Quigley fosse um devotado liberal, estamos em dívida para com ele pelas suas revelações acerca da origem da Elite do Poder que governa a nossa nação e o mundo. No seu livro «Tragedy and Hope: A History Of The World In Our Time» - [Tragédia e Esperança: uma história do Mundo dos nossos dias], Quigley documenta as origens da sociedade secreta que controla os nossos partidos políticos hoje e que se manifesta nas posições chave ocupadas pelo Council on Foreign Relations [Conselho das Relações Exteriores]. Aqueles que estudaram a influência deste Conselho reconhecem que ele controla tanto as nossas políticas domésticas quanto as externas.

Diogo disse...

Ponto – 2

E evolução tecnológica é exponencial. Automação, informatização, robotização, inteligência artificial e todas as outras tecnologias estão um sofrer que tende para o infinito.

Ora, esta evolução tecnológica vai acabar com todos os empregos.

Sem empregos, não há salários.

Sem salários, não há compras.

Sem compras, não há vendas.

Sem vendas, não há lucros.

Sem lucros, não faz sentido a propriedade privada dos meios de produção.


Portanto, o que vai acontecer é que a tecnologia vai produzir tudo sozinha. E essa tecnologia vai ser pertença de todos. Depois é simplesmente distribuir a produção.

Ou seja, a médio prazo vamos ter um verdadeiro comunismo. Mas não o de Marx.


Abraço

Diogo

Lura do Grilo disse...

O ouro desce, desce, desce ...

LV disse...

Caro Lura do Grilo,

Não é só ouro que desce. Para lá dos metais, veja a trajectória do petróleo. E ainda dizem que a economia está em recuperação!
Se está correcto o que dizem alguns analistas:o que se vê é um "post-bubble commodity deflation" face a um movimento ascendente do dólar face às principais moedas (euro ou yen).
Considerou a resposta que lhe enderecei às perguntas que formulou noutro artigo?


Caro Diogo,

Creio que terá interpretado erradamente a substância do artigo. Ou até o seu propósito.
Então não mostra o título, precisamente, que os EUA (a sua economia e não só) estão reféns de uma elite que toma, a coberto da defesa do interesse americano em geral digamos, "o destino em suas mãos" e captura a Liberdade, a energia e a vitalidade do mercado para promover o seu interesse?
O que fizeram as elites comunistas, os seus planos quinquenais, o seu domínio da energia económica ? Não viveriam essas elites comunistas num mundo completamente diferente do cidadão comum? Não controlavam todas as dimensões da vida colectiva? Da banca à produção de cereais?
Ora, do mesmo modo, as actuais elites (americanas ou outras) vivem com essa prerrogativa sobre a nossa vida colectiva. Em particular porque conseguem controlar a dinâmica política e institucional. Agora, de um modo mais encoberto, é certo. Mas será que, na substância, os dois casos são assim tão diferentes?

Considere a sua frase: "O estado americano (e a esmagadora maioria de todos os outros estados) foi disfarçadamente privatizado e está nas mãos de meia dúzia de indivíduos." Substitua as palavras "americano" e "disfarçadamente" por, respectivamente, "soviético" e "abertamente". Será que não vê as semelhanças?

Relativamente à sua referência acerca da evolução tecnológica.
Não posso discutir com a mesma certeza com que o Diogo acerca destes cenários. Considerando que as sociedades se vão tornando cada vez mais complexas até ao dia em que deixam de o ser. Quero dizer: o esforço de resolução de problemas vai tendo concretizações cada vez mais complexas, e isso traduz-se em sistemas (cognitivos, científicos ou tecnológicos) que exigem cada vez mais energia. Até se tornarem insuportáveis por si mesmos. E o colapso dá-se. Colapso aqui entendendo-se como mudança repentina (e inesperada para a maioria) de uma sociedade (ou sistema) complexo para uma sociedade (ou sistema) menos complexa. Com as respectivas consequências drásticas para os humanos, mas é um processo que se repete na História de várias civilizações e povos.

Na hipótese que avança ("Portanto, o que vai acontecer é que a tecnologia vai produzir tudo sozinha. E essa tecnologia vai ser pertença de todos. Depois é simplesmente distribuir a produção") vejo muitos problemas e constrangimentos naturais, se quiser. Considere a energia necessária para tal fim ou capacidade. Quem financiaria tais necessidades?
Por outro lado, considera que seria possível registar uma progressão tão intensa e abrangente na tecnologia sem uma consideração (e respeito) dos direitos de propriedade? Como?
Só imagino a hipótese soviética (ou até a Coreia do Norte) e isso deu os resultados que se conhecem.

E deixo-lhe uma pergunta ou exercício especulativo: nas intenções da elite que Quigley apresenta no livro que indicou, não identifica a mesma pulsão totalitária e internacionalista do comunismo?

Saudações a ambos,
LV