quarta-feira, 22 de julho de 2015

Desafios Reflexivos

A propósito de amores abstractos


Gostava de trazer à consideração dos nossos leitores um artigo publicado por Daniela Silva n´O Insurgente (aqui). É, julgo, uma importante e oportuna reflexão levada a cabo acerca do ambiente moral em que vivemos.
É importante, pois foca a sua atenção no impulso e orientação do discurso e da acção – nas vertentes política, económica, social e cultural - para o global e para o abstracto. Identifico esta orientação como a tentativa de concretização de uma fuga e de um apagamento.




É uma reflexão oportuna, pois é publicada, precisamente, num tempo em que a eficácia desse movimento de descentramento e fuga é inquestionável. Mesmo se não nos damos conta dele facilmente, dado o nevoeiro ideológico em que vivemos.
Logo no primeiro parágrafo, os exemplos que Daniela Silva escolheu são paradigmáticos daquele ímpeto de fuga para o global, que acaba por promover a desresponsabilização do indivíduo face ao que, de imediato, vê e sente. A este ímpeto, julgo, temos de ligar igualmente um fenómeno – premeditado e global – de apagamento das identidades.
Esta dimensão da erosão do património das diferenças, da diversidade – que é essencial e potenciadora – decorre dos “amores abstractos” que Daniela Silva bem mostra.

Descortinam-se duas principais intenções na expressão “amorosa” pelo global.
Por um lado, a inclinação para o global porque as elites têm poder para isso e, por outro, a consideração da superficialidade das competências (pelas mesmas elites, presume-se) que seriam o sustento essencial da autonomia. Da acção livre e esclarecida, acrescento eu.
A identificação destas intenções é fundamental para a compreensão de todo o escopo dessa atenção difusa em temáticas globais. Essas duas dinâmicas (inegavelmente operativas na nossa sociedade global actual) fazem parte do mesmo movimento e têm o mesmo fim: a concretização de uma “superorganização atomizante”.
A negação de qualquer reacção, de qualquer resposta a essas dinâmicas é efectiva dada a eficácia da censura a vários níveis, destacando aqui a prevalência na academia e do entretenimento.
No primeiro caso, subverte-se a própria natureza da instituição académica (e, por conseguinte, do papel do conhecimento também), determinando-lhe a finalidade de “preparar para o mercado de trabalho”. De acordo com essa reconfiguração, seleccionam-se ferramentas, conteúdos e valores estruturantes adequados a transmitir às novas gerações de maneira a que possam lidar com a realidade, já depurada e optimizada. O resultado deste esforço afigura-se-me, na verdade, como um círculo vicioso. Será que teremos consciência disso?
No segundo caso, procede-se tanto a uma formatação condicionante dos conteúdos do entretenimento de massas para garantir que aquelas ferramentas, conteúdos e valores encontrem utilidade numa narrativa de sentido único. Para além da promoção descarada e diligente da perversão e do mau gosto. Puro e simples.
Em ambos os casos, as competências mais críticas, e por natureza mais autonomizadoras, são suprimidas.
Alguns dos seus mais evidentes resultados? O relativismo no conhecimento e na moral, o positivismo no direito (confundindo lei e legislação), o degradação e a violência que passam por boas expressões de divertimento, lazer ou até como expressões artísticas e culturais.
Estas constatações não podem, do meu ponto de vista, deixar de ser articuladas com o apagamento das identidades. Têm de se entender em relação com a dissolução – lenta mas eficaz – daquilo que são as raízes e as diferenças constitutivas das identidades culturais – referenciais que orientam a percepção e a consciência moral de cada um.
Através da promoção de uma (falsamente sofisticada) cultura global enamorada pelos seus apetrechos tecnológicos, estimula-se a atenção genérica e indistinta em causas (paixões) globais em que a dificuldade de ajuizar moralmente, por exemplo, não é pequena e, por isso, conduz à desresponsabilização individual e à inércia moral. Daí à inacção é só um pequeno salto. Daniela refere-se mesmo à “falta de empatia nas interacções sociais, (à) desconfiança, (ao) hedonismo, (aos) objectivos de curto prazo, (ao) elogio (da) mediocridade, (à) pouca predisposição para a cooperação, (à) fraca estima pelos recursos e pelo próximo, e (à) fraude endémica.” Lapidar.

O enamoramento pelo abstracto (aqui entendido como indeterminado, como o fora, o global) facilita a reorganização dos diferentes indivíduos e culturas num grupo progressivamente maior, mais homogéneo e, por isso, mais fácil de comandar.
Trata-se, julgo, de ver nos “amores abstractos”, e nestes dois vectores (fuga e negação da autonomia), uma profunda visão do homem, da sua natureza e vocação. Uma visão unificadora que se expressa globalmente (em fóruns e através de agentes aparentemente tão diversos) na imposição de ideias, valores e expectativas absolutos. Esta metafísica do absoluto constrói-se numa oposição redutora face ao que é individual (particular) e tradicional. Estes últimos são entendidos como desafiadores da autoridade daquela visão absoluta e, por isso, devem ser negados. De múltiplas formas.
Deixo à consideração dos leitores duas imagens que podem expressar esse enamoramento pelo abstracto (indistinto que não fere as susceptibilidades do politicamente correcto) e a promoção da decadência e do mau-gosto.


Daqui


É possível que só nos dêmos conta dessa imposição quando, na primeira pessoa, esbarrarmos nos limites que o actual nevoeiro ideológico nos impõe. Convém não esquecer, esses espartilhos são suaves, mas são implacáveis.
Curioso é Daniela apelidar de benfeitores os profetas modernos. Ironia. Só pode.

Créditos a Maria João Marques pela referência à segunda imagem.

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