sexta-feira, 24 de maio de 2013

Tentando escapar à mentalidade mercantilista

Em On Escaping the Mercantilist Mindset, Gary North, socorrendo-se do inigualável discernimento misesiano, evidencia a existência de uma profunda contradição entre a perspectiva mercantilista dominante ("o que é nacional é bom") e o normal (e "egoísta") comportamento do agente económico efectivamente soberano numa economia de mercado - o consumidor. Crendo constituir um complemento adequado aos temas abordados aqui, aqui e aqui, entendi por útil traduzir o artigo.
Na sua pequena obra-prima, datada de 1944, Burocracy, Ludwig von Mises identificou o agente supremo na economia de mercado: o consumidor.
Os capitalistas, os empreendedores e os agricultores são instrumentais na condução das questões económicos. Eles estão ao leme a dirigir o navio. Mas não é deles a liberdade para traçar o seu rumo. Eles não são soberanos, são apenas timoneiros, obrigados a obedecer incondicionalmente às ordens do capitão. E o capitão é o consumidor.
Mises nunca se desviou desse argumento. Ele mostrou como a  actuação  dos clientes no mercado livre proporciona lucros a alguns capitalistas e prejuízos a outros.
Não são nem os capitalistas, nem os empresários, nem os agricultores que determinam o que deve ser produzido. São os consumidores que o fazem. Os produtores não produzem para o seu próprio consumo mas sim para o mercado. Eles estão empenhados em vender os seus produtos. Se os consumidores não comprarem os bens que lhes são propostos, o empresário não poderá recuperar as despesas em que incorreu. Ele perderá o seu dinheiro. Se ele não se conseguir ajustar aos desejos dos consumidores, irá muito em breve ser removido da sua posição de destaque ao comando do leme. Outros, que melhor fizeram para satisfazer a procura dos consumidores, substituí-lo-ão.
Este é o sistema de causa e efeito no mercado livre. São os consumidores que mandam. E eles são implacáveis​​.
Os verdadeiros patrões no sistema capitalista de economia de mercado são os consumidores. São eles, pelas suas decisões de comprar ou da abstenção de comprar, que decidem quem deverá possuir o capital e gerir as fábricas. Eles determinam o que deve ser produzido e em que quantidade e qualidade. Das suas atitudes resultará o lucro ou o prejuízo para o empreendedor. Eles transformam homens pobres em ricos e homens ricos em pobres. Eles não são patrões fáceis. Estão cheios de caprichos e fantasias, mutáveis e imprevisíveis. Eles não se importam minimamente com os méritos passados. Logo que algo lhes for proposto e que mais lhes agrade, ou que seja mais barato, abandonam os seus antigos fornecedores. Para eles, nada é mais importante que a sua própria satisfação. Eles não se preocupam nem com os interesses dos capitalistas, nem com o destino dos trabalhadores que perdem os seus empregos se os consumidores deixarem de comprar o que antes costumavam comprar.
Esta percepção não é compreendida por muitos. A mentalidade colectivista é uma característica padrão da maioria das pessoas. É preciso um acto de vontade para interiorizar a análise de Mises. Isto é tão verdadeiro entre os que auto-intitulam professos defensores do capitalismo, como o é para os seus críticos.

A mentalidade mercantilista

A visão keynesiana do mundo é uma extensão da visão do mundo mercantilista. Adam Smith, em 1776, tentou refutar as ideias mercantilistas mas, no cômputo geral, sem sucesso. Hoje, a maioria das pessoas são mercantilistas, tal como o eram em 1776.

Deixem-me dar um exemplo. As empresas americanas abrem fábricas na China porque dessa forma podem comprar mais barato certos tipos de mão-de-obra chinesa do que poderiam comprar mão-de-obra americana comparável.

Isso levanta uma questão: como é que as empresas americanas esperam que os americanos sejam capazes de comprar a produção desses trabalhadores chineses, quando as empresas americanas não contratam trabalhadores americanos com salários elevados?

Os administradores das empresas americanas não tomam decisões em função dos efeitos dessas decisões sobre os americanos em geral. Eles não tomam as suas decisões em função dos seus efeitos sobre os trabalhadores da América empresarial. Eles tomam as suas decisões em função de um único mercado: o mercado para os seus próprios produtos manufacturados. Eles não se preocupam com a América em geral.

Deixem-me dizer-vos quem é que mais não se preocupa com a América em geral: os indivíduos americanos. Como é que eu sei isto? Porque eles não "compram americano". Nunca compraram. Quando o governo federal lhes permite comprar o que quer que queiram, eles compram o bem mais barato que proporcione um dado valor esperado. Eles não se importam com quem o produz. Eles não se preocupam se é importado. Eles não querem saber se a Walmart o compra a um fabricante americano na China ou a um fabricante americano em Chicago. Tudo o que importa é o preço e a qualidade.

As empresas americanas decidem o que os seus clientes irão comprar. Elas tomam as suas decisões em função das aquisições previstas pelo seu grupo específico de clientes. Elas não se importam com os clientes em geral. Elas não devem preocupar-se com os clientes em geral. Isto porque os clientes em geral não se preocupam com os clientes em geral. Os clientes preocupam-se consigo próprios. Não é da sua responsabilidade tomar decisões em nome de todos os outros clientes na América, na América do Norte, ou no mundo. Eles têm conhecimento sobre o que pretendem comprar. Eles têm dinheiro. Eles decidem o que comprar baseados no que querem comprar e no dinheiro que têm disponível para o efeito. É tolice esperar que os clientes individuais tomem decisões baseadas nos supostos efeitos das suas decisões individuais em todos os outros clientes. Eles não têm essa informação, e mesmo se a tivessem, iriam ignorá-la. Eles estão cuidando de si, não de todos os demais clientes. Eles são responsáveis ​​por si mesmos.

Isto significa que as empresas americanas tomam estas decisões de produção, baseando-se não nas decisões dos seus efeitos sobre a economia em geral, mas em função dos seus efeitos sobre a sua clientela particular. A sua clientela não se preocupa minimamente com os efeitos das suas compras em todos os clientes da empresa ou potenciais clientes. Os directores das empresas americanas actuam primariamente em nome das únicas pessoas que fazem alguma diferença para com o resultado das suas decisões, ou seja, clientes específicos.

As pessoas que tomam as decisões determinantes da América empresarial não são os americanos em geral, os norte-americanos em geral, ou os clientes do mundo em geral. As únicas pessoas com que a empresa se ​​preocupa são os seus clientes ou os possíveis novos clientes. É para isso que os seus clientes lhes pagam para se preocupar. Qualquer empresa que comece a agir em nome de outros, que não dos seus próprios clientes, rapidamente descobrirá  que já não tem muitos clientes.

Justamente porque tantos americanos são mercantilistas na teoria, eles não entendem a sua própria motivação. Eles não vão a uma grande loja, ou à Amazon, em função dos efeitos das suas compras em todas as outras pessoas. Eles vão à Amazon para comprar um livro e procuram o mais barato que consigam encontrar que satisfaça as suas especificações. O vendedor avalia o livro: aceitável, bom, como novo, ou novo. Em seguida, o vendedor atribui-lhe um preço. O cliente compra o livro, independentemente de onde foi produzido, ou de quem foi pago para o produzir, mas apenas em função do preço mais barato (com entrega à sua porta), atendendo ao nível de qualidade que está disposto a pagar. Por que deveria ele preocupar-se com algo mais que isto? Assim, à Amazon não interessa saber onde foi publicado um dado livro. Isto porque os compradores de livros não querem saber onde foi publicado um dado livro. Por que deveriam os editores preocupar-se com algo mais que não seja produzir livros que clientes específicos estejam dispostos a pagar? Não é da responsabilidade do editor do livro adivinhar as preocupações que um mão cheia de clientes possa ter relativamente ao sítio onde o livro onde foi fabricado. O editor do livro apenas se preocupa em gerar receitas com o livro.

O mercado livre produz os melhores resultados através da competição pelos preços. Melhores resultados para quem? Para os clientes. Os clientes são servidos pelos produtores que desejam o seu dinheiro. Os clientes detêm a cenoura: o dinheiro. O dinheiro é o bem mais comercializável, disse Mises. Ninguém precisa de recorrer à publicidade para convencer os vendedores a ficar com o seu dinheiro. Os decisores individuais gastam o seu dinheiro, ou recusam gastar o seu dinheiro, e dessa multiplicidade de decisões por parte dos clientes surge uma variedade de preços e uma variedade de margens de lucro. Os decisores Individuais detêm a autoridade, não os fabricantes. Os fabricantes devem fazer o que os clientes pretendem pois, caso contrário, irão à falência.

É uma marca da mentalidade mercantilista que as pessoas culpem as empresas pelas suas decisões de contratação e despedimento, quando os decisores nas empresas estão simplesmente agindo como agentes económicos dos seus clientes. Culpem-se os clientes, não os fabricantes.

Encontrámos o inimigo, e o inimigo somos nós.

3 comentários:

LV disse...

Boa escolha quanto ao texto (e tradução adequada).
Junte-se ao que o Eduardo concluiu a relação difícil com a problemática da regulação. Que é apresentada - pelos colectivistas - como a defesa última dos consumidores. Quando o que ela permite, para além de negociatas entre políticos e gestores de interesses particulares, é a negação da concorrência. Por via das regulamentações obtém-se assim um resultado de monta: a promoção e a defesa do interesse de uns quantos à custa de muitos. Dos consumidores, obviamente.
Nota final - quando no início do artigo, o Eduardo diz: "Crendo constituir um complemento…" quer dizer "Querendo constituir um complemento…" estou certo?
Saudações filosóficas,
L V

Eduardo Freitas disse...

Caro LV,

Obrigado pelo comentário, como sempre substantivo.

Sucede que ando exactamente a planear um post relativo ao tema da "regulação" que intuo (e outros quantificam) como sendo hoje tão importante para o descalabro económico e desemprego crescentes (actuais e prospectivos) como o é a elevadíssima carga fiscal.

Quando ao "crendo" vs "querendo", a opção pela primeira forma foi propositada. De facto, queria complementar os posts anteriores linkados e, na altura, cri que este texto de Gary North seria adequado para o fazer. O Luís Vilela deu-me agora o conforto da sua concordância para o que terá sido uma boa escolha. Obrigado, mais uma vez.

LV disse...

Eduardo,
Não sei se vou a tempo, deixo uma ligação para uma entrevista que, julgo, demonstra a má interpretação da problemática da regulação. O entrevistado tem-se manifestado como uma voz que desmonta algumas das intenções das administrações americanas (em particular nas questões económicas e monetárias) parecendo favorecer uma abordagem de menos estado e mais liberdade. Mas depois esta entrevista revela que, até entre defensores de menos estado, a problemática da regulação é mal compreendida. Não na sua prática legal, mas na sua fundamentação filosófica básica.
A ligação é a seguinte: http://www.corbettreport.com/interview-665-paul-craig-roberts-on-the-economic-dissolution-of-the-west/

Espero que possa ajudar a balizar a reflexão. Que aguardo serenamente.

Saudações filosóficas,
LV