segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Os horrores do capitalismo: lendas e narrativas

Como João Miguel Tavares (JMT) observava na semana passada, referindo-se ao esfuziante entusiasmo com que a esquerda, nomeadamente  a doméstica (Francisco Louçã incluído), saudou a recente exortação apostólica do papa Francisco, não foi agora que o papado procedeu à divulgação urbi et orbi da designada "doutrina social da Igreja", como se ilustra neste breve excerto1 da Rerum Novarum (RN), divulgada em 1891:
"[O]s trabalhadores, isolados e sem defesa, têm-se visto, com o decorrer do tempo, entregues à mercê de senhores desumanos e à cobiça duma concorrência desenfreada. A usura voraz veio agravar ainda mais o mal. Condenada muitas vezes pelo julgamento da Igreja, não tem deixado de ser praticada sob outra forma por homens ávidos de ganância, e de insaciável ambição. A tudo isto deve acrescentar-se o monopólio do trabalho e dos papéis de crédito, que se tornaram o quinhão dum pequeno número de ricos e de opulentos, que impõem assim um jugo quase servil à imensa multidão dos proletários."

Leão XIII, encíclica Rerum Novarum "Sobre a condição dos operários"
É certo que um trecho como este poderá ser invocado para, à direita, rechaçar as críticas (como por exemplo, a que veementemente se faz aqui) que têm sido dirigidas ao papa Francisco, entre as quais aquela que dei conta, no sentido em que o actual papa não terá feito outra coisa senão voltar a repetir o que a Igreja há muito postulou como sua doutrina. Bem, mas não irei entrar na exegese das encíclicas e exortações papais tarefa para a qual não tenho qualquer tipo de competência nem, para ser franco, apetência. Interessa-me mais perceber por que razão o trecho acima está decalcado na narrativa standard que há décadas se constituiu como "a narrativa oficial" dos supostos horrores da industrialização. Ora vejam (traduzido daqui) o seguinte texto, constante do livro de História com que Bryan Caplan se defrontou quando estudava no liceu:
"A Condição do Operário. O desenvolvimento do sistema industrial provocou um tal abismo entre empregadores e empregados que os primeiros deixaram de ter um interesse pessoal no bem-estar dos últimos. Como a concorrência entre fabricantes era aguda e a oferta de trabalho aumentava continuamente por via da imigração estrangeira, eles puderam impor condições de trabalho intoleráveis aos trabalhadores. Horários de trabalho entre 13 a 15 horas diárias, seis dias por semana, enquanto os salários eram tão baixos que, após o pânico de 1837, uma família só conseguia subsistir se todos os seus membros trabalhassem. Daí que o trabalho infantil fosse comum. As fábricas eram normalmente insalubres, mal iluminadas, sem que fosse fornecida uma qualquer protecção no trabalho com máquinas perigosas. A segurança era desconhecida; os trabalhadores eram despedidos sempre que a doença ou a idade prejudicasse a sua eficiência. Como nem a sociedade nem o governo se preocupavam com estas condições, os trabalhadores foram forçados a organizar-se para se protegerem a si próprios."

Ray Billington, American History Before 1877 (1988)
Esta autêntica descrição do inferno na Terra supõe,, implicitamente um contraste com a vida "natural" que os ex-camponeses desfrutavam na antecedente era pré-industrial. Uma vida que seria fraternamente comunitária, em que as pessoas não estavam "alienadas" do seu trabalho, onde as criancinhas brincavam alegremente, entre prados e riachos, em contacto directo com a natureza, sempre vigiados de perto pelos pais na sua labuta diária, assim desfrutando de uma vida saudável e segura - um autêntico paraíso na Terra que o capitalismo veio destruir talvez para todo o sempre (caso as "boas almas" não consigam destruir a lógica da "ganância" estribada no "lucro fácil" ou na "usura").

E todavia... atente-se nos três gráficos seguintes (retirados daqui) que representam a evolução do PIB per capita mundial a partir de estatísticas coligidas separadamente por dois economistas, Brad De Long e Angus Maddison, que constituem, especialmente o segundo, a fonte de referência relativa às estatísticas do crescimento económico:

I - Desde 10000 a.C. até 2003 d.C. (Maddison apenas estimou valores para a nossa era)

Repare-se na anormalidade que se verifica na parte direita do gráfico. O que raio se terá passado para a provocar? 

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II - De 1600 até 2003

Fazendo um "zoom" sobre a figura anterior, observamos que é à volta de 1800 que se inicia algo de revolucionário - um crescimento sustentado do PIB per capita mundial. Agora, não apenas a população total crescia como o produto médio per capita também subia! Tal possibilitava que o nível de vida médio aumentasse sustentadamente pela primeira vez na História! Ou seja, a "armadilha/maldição malthusiana" era finalmente superada.

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III - De 1820 a 2003

Com uma nova ampliação, e agora desagregando por grandes regiões do planeta, o panorama é o seguinte, ressaltando, entre outras, uma observação notável: o recente comportamento da "Ásia".

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Tal sugere uma investigação sobre o comportamento particular da variável em estudo relativamente à China. É o que proporciona o gráfico seguinte.

IV - Evolução do PIB per capita na Europa Ocidental na China (de 1000 a 2003 a.C.)

Gráfico retirado daqui
O que terá acontecido na China nos finais da década de 70 do séc. XX? Para o Papa Francisco deverá ser um Mistério!!
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1Este texto é (bastante) diferente daquele citado por JMT. Por não ter sido capaz de localizar a fonte da versão citada por JMT, preferi adoptar a tradução que consta no site do Vaticano.

2 comentários:

Diogo disse...

Não compreendo o objetivo do post. O que provocou o disparar do PIB foi a evolução exponencial da tecnologia (não foi a mão “invisível” do mercado).

Eduardo Freitas disse...

Caro Diogo,

Se analisar por uns momentos os quadros III e IV, verá que a a "definitiva" explicação que fornece é, afinal, perfeitamente redutora.