segunda-feira, 12 de novembro de 2012

A loucura monetária (6)

Continuado daqui (Partes IIIIII e IV), termino agora a publicação da tradução do artigo de Detlev Schlichter (numa tradução da minha responsabilidade) elaborado com o propósito de refutar (por KO técnico, acrescento eu) a argumentação dos autores do "Documento de Trabalho" (do FMI, recorde-se) no sentido da defesa da integral estatização da moeda, etapa essencial à construção de um estado totalitário. Numa reedição da mais absoluta "exuberância irracional" dos protagonistas da manipulação/criação da moeda (vide no actual "Super Mário" ou no anterior "Maestro"), supostamente a bem da promoção da "riqueza" e da salvação do desastre (para onde, aliás, nos conduziram), os autores do "Documento de Trabalho" propõem um verdadeiro passo de prestidigitação conseguido por decreto estatal: contabilisticamente, o Estado passaria a "fabricar" os seus próprios "activos" e portanto a "riqueza" colectiva. Loucura maior, seria difícil.
Activos místicos

Lembram-se do que eu disse acima quanto a pôr em circulação os nossos próprios cheques como meios fiduciários? Essa é uma descrição bastante boa relativamente à emissão de papel-moeda. O novo papel-moeda posto a circular é contabilizado como uma responsabilidade no balanço do seu criador, e as coisas que ele adquire através da emissão / despesa deste novo dinheiro de papel tornam-se nos correspondentes activos. Através da emissão de papel-moeda, o criador da moeda aumenta o seu balanço, enquanto que aqueles que transaccionam com o criador da moeda não aumentam nem diminuem os seus balanços mas observam uma troca de posições no lado do activo dos seus balanços, substituindo outros activos anteriormente detidos pela nova moeda.

Isto pode igualmente ser observado na criação da base monetária (reservas bancárias extra) pelos bancos centrais de hoje. Quando a Reserva Federal cria um 1 trillion de dólares extra como parte do "quantitative easing" e decide comprar títulos suportados em hipotecas aos seus bancos membros, o balanço da Fed expande-se de 1 trillion de dólares. As novas reservas bancárias estão do lado das responsabilidade no seu balanço, enquanto os títulos apoiados em hipotecas ficam no lado do activo. Os balanços dos bancos não se expandem como resultado da operação da Fed. Os bancos simplesmente substituem as hipotecas pelas novas reservas. Ambas estão no lado do activo dos seus balanços. O seu mix [a sua composição] de activos mudou. Eles têm agora mais reservas.

Este processo pode ser prolongado até que praticamente todos os activos no banco sejam transferidos para o banco central e os [depósitos nos] bancos estejam completamente cobertos por reservas e, assim, deixam de funcionar como bancos de reservas fraccionárias. Este foi precisamente o processo que Irving Fisher tinha em mente quando escreveu "100% Money" em 1935 (ver página 57), e Milton Friedman, quando escreveu "A Program For Monetary Stability", em 1960.

Em nenhum momento qualquer destes economistas sugeriu, nem nenhum banco central sugere hoje, que a criação de novo papel-moeda aumenta a riqueza geral da sociedade, que há agora mais activos na sociedade. É igualmente claro deste processo que o "perdão de dívida" pelo banco central é difícil. O banco central pode emitir suficiente moeda-reserva para adquirir todos os activos dos banco mas sempre que abata o valor contabilístico de qualquer um desses activos também tem de diminuir o passivo do seu balanço, tem que destruir moeda-reserva.

Benes e Kumhof aparecem agora com uma abordagem totalmente inovadora. O Estado simplesmente declara que a sua nova moeda-reserva é também um activo por direito próprio. Por decreto, o Estado cria riqueza: "Crédito do Tesouro" ou activos da comunidade. Os bancos centrais contabilizam as novas reservas no seu passivo, tal como num processo convencional de criação de moeda mas agora não contabilizam os activos de contrapartida existentes que o banco central adquire de quem contabiliza as novas reservas como activos (os bancos). O activo correspondente é agora "Crédito do Tesouro", o qual não existia anteriormente mas que agora surge por decreto governamental. Nesta fase, o balanço do banco central aumenta sem qualquer aquisição de novos activos - o activo de contrapartida é criado simultaneamente com a responsabilidade da moeda-reserva!

Os balanços dos bancos também aumentam agora: os bancos contabilizam as novas reservas no lado do activo sem (nesta fase) transferir outros activos para o emissor da moeda. O activo dos seus balanços aumenta. O correspondente aumento do passivo é conseguido registando o "Crédito do Tesouro" como um passivo.

É este passo de mágica que permite, nas etapas seguintes, que vários activos dos bancos possam ser abatidos sem uma correspondente diminuição da moeda-reserva. Só através do artifício contabilístico de criação de activos por parte dos bancos centrais a partir do nada (e não apenas as novas responsabilidades dos bancos centrais) afirmando assim que a riqueza global - os novos activos - foram criados administrativamente pelo estado, é possível abater dívida em grande escala o que é, alegadamente, o ponto forte mais "vendável" do artigo.

Tudo isto representa a intervenção estatal nos contratos privados e nos direitos de propriedade numa escala gigantesca. O Estado pode ter o poder de reescrever as regras contabilísticas e simplesmente alegar a existência de uma misteriosa "riqueza estatal". Coisas ainda mais estranhas foram reivindicadas pelos governos durante o século XX. Mas quais são as consequências? Como irá reagir o público? Que confiança haverá no novo sistema monetário 100% controlado pelo estado?

Abater pura e simplesmente toda a dívida das famílias é uma bênção mista. Como se sentiria o leitor se tivesse trabalhado arduamente e constituído poupanças e tivesse pago as suas dívidas para dar à sua família segurança financeira, para vir a descobrir que os seus vizinhos irresponsáveis ​​e imprudentes, vivendo acima das suas posses à custa de cartões de crédito, vissem toda a sua dívida eliminada pelo plano de Benes / Kumhof?

Todo o poder ao Estado!

Todo este plano é um absurdo gigantesco. Benes e Kumhof embaraçaram-se a si próprios meticulosamente. Talvez devêssemos simplesmente olhar para o outro lado e ignorar esse lixo mal concebido, talvez desculpando-o como produto de meditações confusas de dois econometristas adoradores do Estado que caíram sob o feitiço do historicismo da Nova Era de Graeber e Zarlenga, que eles viram como uma grande oportunidade para uma sofisticada modelação econométrica . Mas isto chega sob o endosso do FMI, uma das mais importantes organizações estatais. Será que aqueles que beneficiam da acumulação de mais poder estatal sentem que toda a generalizada crítica severas aos banqueiros e a errada, mas habilmente plantada, noção do fracasso do capitalismo pode ser aproveitada ainda mais a seu favor? Mesmo o normalmente feliz intervencionista que é Ambrose Evans-Pritchard tem suas dúvidas:
"Provavelmente, iria sufocar a liberdade e entronizar um estado Leviatã. Poderia ser ainda mais penoso a longo prazo que o poder dos banqueiros."
Ambrose, por uma vez concordo.

Enquanto isso, a degradação da moeda de papel continua.
Fim.

2 comentários:

LV disse...

A bem de pensarmos, correcta e avisadamente, estas matérias, a sua tradução é muito útil. Os pormenores de adequação à leitura em blogues, ou até algumas afinações de tradução, são apenas isso: pormenores.
Já conhecia o texto (entre outros de GNorth), mas este de DSchlischter não e tão relevantes que são para perceber a fantasia perigosa em que vivemos e que muitos se preparam para aproveitar em mais um "avanço civilizacional".
Bom trabalho.
Saudações,
Luís Vilela.

Eduardo Freitas disse...

Caro Luís Vilela,

Grato pelo encorajamento.

Cumprimentos