sexta-feira, 9 de novembro de 2012

A loucura monetária (2)

Continuado daqui, publico agora a Parte II do artigo de Detlev Schlichter que, como expliquei anteriormente, me propus divulgar aqui traduzindo-o para português. Schlichter começa por apresentar uma sinopse da tese nuclear do ensaio, publicado por dois técnicos do FMI (Jaromir Benes e Michael Kumhof), e faz desde logo notar que a "âncora" invocada no título do ensaio - The Chicago Plan Revisited é totalmente mistificadora pois a argumentação expendida nada tem a ver com os expoentes teóricos daquela Escola (Irving Fisher, Henry Simons ou Milton Friedman). Schlichter termina esta parte do seu contra-artigo explicitando o caminho que se propõe trilhar na refutação das teses presentes no ensaio. Fica de qualquer modo já claro que a tese dos seus autores não é mais que uma "justificação" para uma ainda maior estatização da economia ao reclamar um integral monopólio estatal no domínio da moeda. 
Harry Potter encontra Irving Fisher

A proposta em discussão é o Documento de Trabalho [Working Paper] do FMI 12/202 por Jaromir Benes e Kumhof Michael [link]... Intitula-se "O Plano de Chicago Revisitado" e apresenta-se como uma reafirmação das ideias de Irving Fisher e Henry Simons, da Universidade de Chicago, nas décadas de 1930 e 1940, e uma aplicação destas ideias à presente crise. Nele se sugere o seguinte:

A criação de "moeda privada" é a raiz de todos os males da economia. A maior parte da moeda, hoje, é criada por bancos "privados" através do sistema de reservas fraccionárias. Isso significa que a criação de moeda está ligada à concessão de empréstimos e à acumulação de dívida. Um sistema de reservas a cem por cento deve ser estabelecido pelo estado e o estado irá imediatamente reprimir qualquer tentativa por parte do sector privado para emitir instrumentos financeiros líquidos - quase moeda - que poderiam ser aceites pelo público como equivalentes a moeda. A criação de moeda é colocada sob o controle total do Estado. O novo sistema deve ser implementado imediatamente num único grande movimento: os bancos são obrigados a pedir emprestadas as reservas necessárias ao Governo (ao Tesouro) para atingir instantaneamente os novos rácios de reservas a 100 por cento . O governo cria essas reservas - como é habitual num sistema de moeda fiduciária - a partir do nada. Nos EUA, este plano ascenderia a um montante de novas reservas na ordem dos 184 por cento do PIB, de acordo com Benes / Kumhof, o que significa 27,6 milhões de milhões de dólares ou 15 vezes a dimensão combinado dos QE1 e QE2 [acrónimos das duas primeiras rondas de "Quantitative Easing"]. Com a nova exigência de reservas de 100%, essa moeda não irá circular não permitindo a criação de mais crédito bancário, o que - esperam os autores - tornará esta intervenção não inflacionária. (Uma parte das novas reservas também será cancelada na próxima etapa.) As novas reservas permitirão ao governo / banco central, por fim, transferir a propriedade dos activos bancários para si próprio.

É importante realçar que essas novas reservas são constituídas por um processo muito diferente do que sucede com os bancos de hoje, por exemplo, através do "alívio quantitativo", e do que foi sugerido por Irving Fisher em 1935 ("100% Money" [link]), ou  por Milton Friedman em 1960 ("A Program for Monetary Stability" [link]). Estes processos mais "convencionais" não permitem qualquer eliminação de dívida em grande escala. Os bancos centrais adquirem activos bancários trocando-os pela nova moeda-reserva, que constituem como um crédito sobre si mesmos (uma responsabilidade) e, sob os princípios contabilísticos normais, qualquer redução dos novos activos ("perdão" de dívida) causaria necessariamente também a extinção das reservas bancárias. O abate da dívida reduz o balanço do banco central e, assim, reduz o passivo do banco central, ou seja, reduz as reservas do sistema bancário.
Benes e Kumhof contornam isto muito simplesmente alegando que as novas reservas fiduciárias não são apenas uma nova responsabilidade (passivo) do banco central mas que são também activos, Créditos do Tesouro ou "riqueza da comunidade". Através deste artifício contabilístico, o Estado pode emitir novos activos como de um mero acto administrativo. Deste modo, a nova moeda-reserva aumenta os balanços tanto do banco central como dos bancos privados numa primeira etapa, ou seja, a nova moeda-reserva é simultaneamente um activo E um passivo para ambos. Esta nova abordagem permite pois a posterior redução do balanço e o perdão da dívida sem eliminar as novas reservas que agora [aplicando o sistema de Benes e Kumhof] sustentam a 100% os depósitos. (Ver os modelos de balanços nas páginas 64 a 66 do artigo Benes / Kumhof e compara-se-lhes com o modelo de balanço apresentado por Irving Fisher na página 57 de "Money 100%", de 1935, que é muito mais convencional.)

No final deste processo, não desapareceu apenas um monte de dívida, a separação entre o "crédito" e a esfera da "moeda" da economia é agora total, tal como é o controle do Estado sobre a economia monetária. Este, Benes / Kumhof deixam-no perfeitamente claro, é o objectivo último do exercício que alegam ser para nosso benefício. Por quê? Aqui eles não argumentam como economistas (de modo muito diferente ao de Fisher e Friedman, ou, aliás, de qualquer teórico monetário), mas citam antropólogos e certos historiadores monetários que afirmam que 1) a moeda não se originou espontaneamente a partir da troca directa mas sim como uma criação do estado, ou melhor, dos percursores iniciais do estado, como os sacerdotes e mestres religiosos de cerimónias; isto é tipo por importante porque a origem da moeda determina a "natureza da moeda" (citação de Benes / Kumhof, página 12) e, portanto, determina quem deve controlar a sua emissão. 2) Eles argumentam que milhares de anos de história monetária confirmam que é possível, com confiança plena, conferir ao estado o privilégio monetário. (Se o leitor recordar a História de um pouco algo diferente, então, segundo Benes e Kumhof, terá que repensá-la. O ensaio segue aqui um selecto grupo de antropólogos dissidentes e activistas monetários que, pura e simplesmente, reescreveram a história monetária. Escusado será dizer que nada disso foi alguma vez reivindicado por Irving Fisher ou Milton Friedman e, que seja do meu conhecimento, sequer por Henry Simons.)

Finalmente, o artigo apresenta um elaborado modelo econométrico que mostra que tudo isso irá funcionar na realidade.

Neste ensaio, faço quatro coisas: enquadro o ensaio proposto no contexto das teorias "Austríaca" e Monetarista e mostro que ele não apenas está ausente destas tradições intelectuais mas que o seu argumento principal não é sequer de natureza económica. Mostro que o principal problema que Benes e Kumhof afirmam ter identificado é falso e que eles não compreendem a criação de moeda na nossa economia. Analiso depois a peculiar justificação histórica e não económica presente no ensaio, quanto ao completo controle da moeda por parte do Estado e mostro que essa argumentação é altamente duvidosa mas também irrelevante. Mostro de seguida que a proposta apresentada se baseia em formas inéditas de intervenção estatal e que crucialmente faz avançar a noção de que o Estado pode criar vastos novos activos - acções da comunidade - por decreto, o que lhe permite afirmar que não tem nenhuma dívida líquida e, portanto, se pode envolver na aquisição de empréstimos e em "perdões de dívida".
(Continua)

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