sábado, 10 de novembro de 2012

A loucura monetária (3)

Continuado daqui (e daqui), publico agora a tradução da Parte III da contra-resposta de Detlev Schlichter ao "Documento de Trabalho", publicado por dois funcionários do FMI, que advoga a total estatização do controle da moeda por parte do Estado. Neste trecho, Schlichter demonstra que a abordagem dos seus autores não se enquadra em nenhuma teoria monetária - "Austríaca" ou "Monetarista" - o que acaba por se compreender já que a tese principal do ensaio se estriba em argumentos não-económicos.
O que este ensaio não é: não é nem "Austríaco" nem Monetarista

Benes e e Kumhof, cedo no seu artigo, afirmam que o sistema de reservas fraccionárias aumenta o risco de corridas aos bancos, provoca ciclos económicos de prosperidade exuberante [boom] e de recessão e que um sistema de reservas a 100 por cento iria assegurar uma maior estabilidade. Estas observações são, em princípio, correctas. Mas, infelizmente, por aqui se ficam. Benes e Kumhof não desenvolvem estas ideias. Na verdade, para a sua própria argumentação, estas ideias são completamente irrelevantes. No seu artigo não se dão ao trabalho de investigar toda a gama de efeitos da expansão do crédito bancário questionando, por exemplo, se a expansão da base monetária levada a cabo pelo banco central sob um sistema de reservas a 100% não poderia ter efeitos semelhantes ou até os mesmos efeitos adversos que a expansão da moeda-depósito tem num sistema de reservas fraccionárias.

A Escola Austríaca tem fornecido a análise mais abrangente dos efeitos da expansão do crédito bancário e tem mostrado de forma conclusiva por que os sistemas monetários mais inelásticos ("mais fortes") ["harder"] proporcionam uma maior estabilidade. A expansão da oferta monetária tem sempre efeitos perturbadores pois o influxo de dinheiro novo tem necessariamente de distorcer as taxas de juro, e as taxas de juro são cruciais para a coordenação das actividades de investimento com poupança voluntária. A pergunta que os "Austríacos" perseguem não é quem é que deve controlar a criação de moeda, mas se alguém deve controlar a criação de moeda. Deveria mesmo alguém poder criar moeda numa base contínua? Uma vez que um bem de oferta razoavelmente inelástica, como é o caso do ouro, seja amplamente aceite como moeda, qualquer quantidade desse activo monetário - dentro de limites razoáveis - é suficiente, e de facto ideal, para satisfazer qualquer procura de moeda. A procura de moeda é a procura de poder de compra na forma de dinheiro, e pode sempre ser satisfeita permitindo que o mercado ajuste o preço do activo monetário relativamente aos bens não-monetários. Não é necessária nenhuma criação de moeda e qualquer processo permanente de criação de moeda é na verdade perturbador.

Os "Austríacos" tendem a ser crítico do sistema bancário de reservas fraccionárias mas eles são igualmente críticos - na realidade, ainda mais críticos - da moeda fiduciária e do banco central. Os problemas que eles estudaram também ocorreriam - e são até mais prováveis de ocorrer - se o sistema bancário de reservas fraccionárias fosse substituído por um gigantesco banco central do Estado.
Mas Benes e Kumhof não nomearam o seu ensaio de "O Plano Austríaco Revisitado", mas o "O Plano de Chicago Revisitado". A abordagem e os objectivos da Escola de Chicago eram diferentes. Mas vale a pena de qualquer forma mencionar que no seu livro de 1935, "100% Money", Irving Fisher sugeriu que o seu plano poderia ser combinado com o padrão-ouro, algo que é impossível com o plano de Benes / plano de Kumhof e de que Benes / Kumhof não mostram qualquer interesse. Eis Fisher, na página 16:
"Além disso, um retorno ao tipo de padrão-ouro que tivemos antes de 1933 (antes de a moeda padrão-ouro doméstica ter sido abolida por Roosevelt e o ouro privado confiscado) poderia, se entendido desejável, ser tão facilmente conseguido sob o sistema 100% como agora; na verdade, sob o sistema 100%, haveria uma possibilidade muito maior de o velho padrão ouro , se restaurado, funcionar como foi intenção que funcionasse".
Este seria de facto o padrão-ouro a 100% que muitos "Austríacos" propõem, e um sistema infinitamente mais estável que o que temos hoje. No entanto, não foi certamente objectivo primário de Fisher restaurar o padrão-ouro. Fisher queria manter o sistema de moeda fiduciária e consolidar o controle do banco central sobre o sistema bancário eliminando qualquer discricionariedade remanescente por parte dos bancos privados. Fisher foi um grande defensor dos preços determinados por números índice. Ele acreditava que o poder de compra da moeda poderia ser medido com precisão através de estatísticas - uma falácia que ainda é amplamente aceite hoje e que causa confusão e danos - e ele foi um dos primeiros defensores da fixação das metas de inflação [por parte dos bancos centrais]. (Para uma resposta da Escola Austríaca ao plano original Fisher ver Ludwig von Mises, Acção Humana, 1949, capítulo XVII, 12. A limitação de emissão de meios fiduciários.)

25 anos depois, o companheiro de Chicago de Fisher, Milton Friedman, também propôs uma versão do plano 100%, desta vez com ainda menos referência aos ciclos económicos de prosperidade e recessão ou o potencial de um padrão-ouro. Friedman foi um defensor do banco central, porque ele acreditava que a estabilidade monetária e económica podiam ser alcançadas pela garantia de uma expansão estável, persistente e moderada da oferta monetária, que está no cerne do monetarismo de Friedman. Num sistema 100% o banco central do estado, argumentou, pode certificar-se de que tal iria suceder.

É importante realçar que tanto Fisher como Friedman tinham uma visão assimétrica da expansão monetária. A contínua expansão da oferta monetária - e, portanto, as injecções persistentes de dinheiro novo na economia - não eram consideradas prejudiciais (muito pelo contrário), desde que o fluxo monetário permanecesse moderado, mas qualquer contracção da oferta monetária (diminuição dos balanços dos banco e a destruição de moeda) era vista como um problema grave e devia ser evitado praticamente a todo custo. Nos seus planos para o sistema bancário de reservas a 100% foram em grande parte motivados por um desejo de evitar a destruição de moeda-depósito criada anteriormente. Claro que os "Austríacos" vêem isto de modo muito diferente. A expansão da moeda - mesmo que moderada e controlada - já tem que causar problemas (uma alocação incorrecta de capital) e quando esses problemas vêm à superfície eles não podem ser suprimidos com a criação de ainda mais moeda, pelo menos não para todo o sempre (embora tal tenha sido tentado sob a proposta de Friedman de uma muito acomodatícia política monetária [isto é, fornecendo toda a "liquidez" "necessária"] em situação de crise).

Deveria ser agora claro por que está a Escola Austríaca a desfrutar de um renascimento na actual crise e não a Escola de Chicago. Fisher e Friedman não obtiveram os seus 100% - um sistema com controle completo sobre a criação de moeda por parte do banco central. Mas qualquer que tenha sido o poder dos bancos centrais nas últimas décadas - e esse foi um poder formidável - ele foi usado de maneiras fortemente influenciadas pela Escola de Chicago. Fisher e Friedman moldaram a ortodoxia do moderno banco central até hoje. Desde que a inflação seja moderada, os banqueiros centrais acreditam que não existe nenhum problema monetário, alinhando pelas teses de Fisher. Mesmo no período que conduziu à actual e espectacular crise financeira, a inflação permaneceu moderada na maioria dos países mais importantes, pelo menos na comum (e perigosamente estreita) definição de IPC [Índice de Preços ao Consumidor] . E quanto às últimas duas décadas, qualquer crise que, a não ter sido controlada, poderia ter causado a desalavancagem no balanço dos bancos e a ocorrência de contracções no crédito, foi agressivamente combatida com baixas taxas de juros e com injecções de moeda na base monetária pelo banco central, segundo a prescrição de Friedman. Na verdade, a Fed de Bernanke tem repetidamente referido as prescrições de política [monetária] de Friedman como um template para as suas próprias acções. Contudo, nada disso impediu que surgissem grandes desequilíbrios financeiros , tendo mesmo essas políticas ajudado a criar esses mesmos desequilíbrios, como a teoria Austríaca teria sugerido.

Mas estou divagando. Nada disto causa qualquer impressão em Benes e Kumhof. Na verdade, Benes e Kumhof parecem decididamente desinteressados da teoria monetária, da teoria dos ciclos económicos, ou da Escola Austríaca. Não há menção de Mises ou Hayek e apenas Carl Menger é referido - numa nota de rodapé e de forma desaprovadora.

Ao invés, o artigo define um completamente novo e acredito que inteiramente falso problema baseado na premissa que no nosso sistema monetário, a moeda, supostamente, é fornecida "por via privada", isto é, pelos "bancos privados", e que a moeda "emitida pelo Estado" desempenha apenas um papel menor. A partir desta observação bastante confusa, o ensaio deriva a sua alegação fundamental de que o "dinheiro emitido pelo Estado" garante a estabilidade, enquanto a "moeda emitida privadamente" conduzirá à instabilidade. Esta afirmação não é apoiada pela teoria económica e, certamente, de modo algum, pela Escola Austríaca ou, aliás, pelo monetarismo de Friedman ou pelo plano original de Irving Fisher. A teoria monetária não faz distinção entre "moeda controlada pelo estado" e "moeda produzida privadamente", tratando-se de uma distinção sem sentido para qualquer teórico monetário. Uma tentativa de dar credibilidade a esta distinção e à sua alegada importância é levada a cabo num capítulo posterior no papel Benes / Kumhof mas, de forma reveladora, esta tentativa não se baseia na teoria monetária, mas numa ambiciosa, para não dizer bizarra, re-escrita do registo histórico.
(Continua)

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