domingo, 4 de agosto de 2013

Obrigado, Rússia?

O título do post, roubado do belo artigo que Jeffrey Tucker publica hoje, endereça muitas das perplexidades que suscitaram a anuência pelas autoridades russas ao pedido de asilo de Edward Snowden. Mas, afinal, poder-se-ão comparar as credenciais de defesa da liberdade dos EUA perante as da Rússia? O  acolhimento pela plutocracia patrocinada por Putin (e pelo intermitente clone Medvedev) não constituirá "prova" da "culpa" de Snowden?

A resposta à sua própria interrogação leva Tucker a fazer uma rápida viagem pelos séculos XX e XXI, recorrendo também à original interpretação de Murray Rothbard quanto ao tempo real em que decorre o famosíssimo "1984" de Orwell que permite lançar uma luz diferente sobre ortodoxias tidas por definitivas. Em qualquer caso, fundamental se torna observar a volatilidade de quem são os "Bons" e os "Maus" nas potências imperiais. Sobretudo, não deixar passar por verdade o que se inculca nas fracas memórias.

Tucker não teme juntar-se ao pai de Edward nos agradecimentos às autoridades russas. Evidentemente que me associo a ele. A tradução do texto é, como habitualmente, minha.
"Lon Snowden, o pai do Edward Snowden, deu uma entrevista aos meios de comunicação esta semana. O local escolhido: Rossiya 24, uma estação de propriedade estatal [russa]. A sua era uma mensagem de gratidão para com a Rússia por ter contemplado o pedido de asilo do seu filho. Edward, como todos sabem, está em fuga por ter revelado ao povo americano que o seu governo está registando todas as comunicações armazenando-as para utilização posterior.

Por outras palavras, Edward está em apuros por ter revelado que o nosso governo está fazendo aos seus próprios cidadãos o que os EUA, em tempos, acusaram a Rússia de fazer aos seus cidadãos. No que é realmente uma reviravolta bizarra nos acontecimentos, a Rússia tornou-se num refúgio seguro para um whistleblower americano. Qualquer amigo da liberdade tem que se juntar a Lon Snowden, para expressar gratidão. Porque, como se vê, há apenas um punhado de países no mundo que o governo dos EUA não consegue intimidar a observar os seus desejos.

Estou tão contente quanto o homem comum, por "nós" termos vencido a Guerra Fria. Mas, por vezes, não é possível evitar a pergunta: qual foi o objectivo desses 45 anos de impasse nuclear? Durante todo esse tempo foi-nos dito que aquela era uma poderosa luta entre o individualismo e o colectivismo, entre a liberdade e a tirania, entre o capitalismo e o comunismo.

Mas, ao fim e ao cabo, depois de toda a poeira ter assentado, é a Rússia que está proporcionando santuário aos nossos melhores cidadãos.

Será isto uma espécie de um estranho romance distópico? Bem, sim, e tem um nome: 1984, de George Orwell. Murray Rothbard levou uma vez a cabo uma reconstrução do significado oculto desse romance. Ele demonstrou que Orwell estava escrevendo sobre a realidade do período da guerra e do período do pós-guerra. Um tempo em que o estatuto da Rússia, vista como o inimigo, se tornava em amigo e de novo em inimigo num piscar de olhos.

Na representação de Orwell, o mundo é dominado por três superpotências: Oceania, Eurásia e a Lestásia. As alianças são totalmente voláteis em função das prioridades políticas. "Nós sempre estivemos em guerra com a Lestásia", diz o slogan. Soa como algo que ouvíssemos hoje.

Na minha memória viva, os fundamentalistas islâmicos foram aliados dos EUA. Eles eram anunciados em 1980 como combatentes da liberdade que preservavam os valores tradicionais da família e que serviram como um poderoso baluarte contra o comunismo ateu. Após a Guerra Fria, os nossos amigos tornaram-se nossos inimigos. Agora, nos talk shows de direita fala-se diariamente de como nós sempre estivemos em guerra contra o Islão.


O caso da Rússia é particularmente interessante. Nos anos 1920, a política americana foi consumida esporadicamente pelo Pânico Vermelho. Na década de 1930, a Rússia tornou-se uma espécie de paradigma do progresso. Era um modelo do qual o New Deal havia copiado os seus esquemas de planeamento para a agricultura e para a grande indústria. Durante os tempos de guerra, a Rússia foi o nosso mais querido amigo, um aliado heróico na luta contra o imperialismo japonês e alemão. Mas, apenas um ano após o termo da II Guerra Mundial, o presidente Truman girou novamente: agora, a Rússia era a maior ameaça à liberdade da Europa, e assim começou a longa Guerra Fria.

Mas é ainda mais complicado do que isto. Como Rothbard escreveu em 1986:
"Os nossos inimigos mortais na II Guerra Mundial, a Alemanha e o Japão, são agora considerados os "melhores Bons", sendo que o único problema é a sua lamentável relutância em pegar em armas contra os anteriores Bons, a União Soviética. A China, tendo sido um muito elogiado Bom sob Chiang Kai-shek quando lutava contra os Maus do Japão, tornou-se no pior dos Maus sob o comunismo e, de facto, os Estados Unidos travaram as guerras da Coreia e do Vietname para conter o expansionismo da China comunista, que era suposto ser um de um ainda "pior mau" que a União Soviética. Mas agora tudo se alterou, e a China comunista é neste momento o virtual aliado dos Estados Unidos contra o Inimigo principal no Kremlin."
E hoje? Depois de alguns anos de amizade, em união com a causa anti-islâmica (os EUA tacitamente apoiaram o presidente Putin em todas as suas guerras imperiais), a Rússia é novamente o inimigo. Afinal, este estado terrível está protegendo um whistleblower evitando que ele seja capturado pelos EUA! Enquanto isso, o Japão não é de todo uma peça relevante na política mundial, mas já a China é considerada uma ameaça incessante à nossa superioridade industrial devido à sua propensão para roubar segredos comerciais.

Como deve ter ficado claro, Orwell não estava tanto a escrever sobre um futuro que poderia vir a acontecer quanto sobre um presente que já se tinha revelado na política ao longo do século XX. Este foi o século do estado total. O que significa isso? Significa que nenhum aspecto da vida está conceptualmente fora do alcance do governo. Todos os vossos dados lhe pertencem. Todos os vossos produtos, serviços e actividades lhe dizem respeito. A nossa propriedade é apenas nossa nos limites estritos do seu critério. Nenhum aspecto da vida escapa ao planeamento dos nossos senhores, desde que tenham o interesse e os meios de o concretizar.

A mente totalitária revela-se na sua plenitude na atitude em relação à guerra. Começando na era da democracia do século XX, populações inteiras foram consideradas combatentes e alvos potenciais. Lembrar-se-ão de como, durante as guerras dos EUA, ouvimos dizer que os civis são igualmente culpados do poder tirânico porque, de alguma forma, permitem que o ditador governe pelo facto de não o derrubarem? Ouvimos isso constantemente durante a Guerra do Iraque.

Esta é uma mentalidade totalitária. Ninguém é considerado fora da constelação política.

A liberdade e o estado total são incompatíveis, excepto que, evidentemente, todo o estado se apraz a utilizar a propaganda para se autoproclamar como a verdadeira terra dos livres e o lar dos bravos. A realidade é comprovada pela atitude do estado para com os dissidentes. Se o cidadão se der conta de algo e proferir palavras desagradáveis acerca do governo, o que lhe acontece de seguida? Este é um teste básico de liberdade. Neste caso, os EUA falharam miseravelmente.

Mas a humilhação aumenta para os americanos ao verem os nossos antigos inimigos (bem, que foram outrora inimigos que se tornaram amigos que viraram inimigos para se transformarem em amigos, etc...) a proporcionarem um refúgio seguro a um jovem que contou a verdade sobre o estado de vigilância dos EUA. Edward Snowden, disse Doug Casey na semana passada, no Simpósio em Vancouver da Agora Financial, não é apenas um herói, mas um super-herói. Ele desistiu de tudo para prestar um serviço público, com o exclusivo interesse de deixar uma marca na tendência inexorável em direcção ao controlo total.

O que é fascinante é observar como Snowden é completa e verdadeiramente desprovido de cinismo . Ele pensa que o sistema pode mudar. Ele quer que o Congresso faça algo. Ele quer que o povo americano se erga e exija que o governo observe padrões normais de civilidade e proporcione aos seus cidadãos algum grau de privacidade. Ao expressar esta esperança, Edward Snowden revelou-se como um dos últimos homens que realmente acreditam que o sistema pode funcionar para o bem. A maioria de nós perdeu essa esperança há muito tempo."
Leitura c0mplementar: Shades of the Old Soviet Union?

2 comentários:

Luís disse...

Agradeco o seu trabalho de pesquisa e tradução de textos
que me dão muito prazer de ler.
Obrigado.
Luis Machado

Vivendi disse...

As novas da Rússia:

World leaders should unite to end anti-Christian persecution, Vladimir Putin says