sexta-feira, 9 de agosto de 2013

O incidente do Golfo de Tonkin, as mentiras e o elogio ao whistleblower que as pôs a nu

Na 4ª feira desta semana, Barack Obama foi ao programa de Jay Leno (vídeo e transcrição da entrevista aqui). A certa altura, afirmou: "Nós não temos um programa de espionagem doméstica. O que temos são alguns mecanismos através dos quais podemos seguir o rasto de um número de telefone ou de um endereço de email que nós sabemos estar de algum modo ligado a alguma espécie de ameaça terrorista". Espantoso! Apenas algumas semanas após Edward Snowden (por exemplo, aqui)!

No texto que se segue, Ellberg's Lessons For Our Time, que procurei traduzir o melhor que soube, publicado em 1 de Maio de 2008, James Bovard, um colunista frequente da American Conservative recorda uma das reflexões de Daniel Ellsberg que, creio, pode ajudar à compreensão da lógica que preside a uma tal descarada declaração do presidente americano em exercício: "a concentração de poder no Executivo desde a II Guerra Mundial tinha focado praticamente toda a responsabilidade pelo "fracasso" político sobre um homem, o presidente. Em simultâneo, isso deu-lhe uma enorme capacidade para evitar ou adiar ou ocultar um fracasso pessoal através da força ou da fraude. Confrontado com uma resistência externa resoluta, como aconteceu no Vietname, esse poder não poderia deixar de corromper o homem que o detinha."

O meu objectivo é, porém, ajudar a melhor compreender o papel insubstituível (e heróico) dos whistleblowers o aproveitando o aniversário de uma das muitas operações de false-flag (o incidente do Golgo de Tonkin). A bem da verdade.
Daniel Ellsberg
Daniel Ellsberg é o tipo de americano que deveria receber uma Medalha da Liberdade. Só que as Medalhas da Liberdade são distribuídas por presidentes que rotineiramente as atribuem aos "idiotas úteis" e apologistas das suas guerras e tomadas de poder. Ela devia ser renomeada para Medalha pela Capacitação ou Aplauso de Crimes Oficiais em Nome da Liberdade.

Ellsberg, conscientemente, arriscou passar uma vida na prisão para levar a verdade sobre a Guerra do Vietname aos americanos. Ele tinha tido a esperança que a verdade libertaria os americanos do feitiço das mentiras oficiais. Mas a experiência no Iraque indica que os americanos pouco ou nada aprenderam com os logros da era do Vietname.

Flora Lewis, uma colunista do New York Times, escrevendo três semanas antes do 11 de Setembro, comentava numa recensão a um livro sobre as mentiras do governo dos EUA relativas à Guerra do Vietname, "Provavelmente nunca haverá um retorno à discrição, na verdade, conluio, com o qual os media costumavam lidar com os presidentes, e é melhor que assim seja". Mas, poucos meses após o seu comentário, os media provaram ser tão cobardes como sempre.

No ano seguinte, saía o livro de Ellsberg - "Secrets: A Memoir of Vietnam and the Pentagon Papers". Eu deveria ter lido este livro antes de escrever o capítulo "Lying and Legitimacy" de "Attention Deficit Democracy". As amargas experiências de Ellsberg teriam refreado o meu idealismo juvenil. O seu livro foi publicado numa época em que os americanos ainda tendiam a ver Bush através da santa névoa do 11 de Setembro. As suas mentiras sobre o Iraque só vieram a ser amplamente reconhecidas depois da queda de Baghdad e da não materialização das armas de destruição maciça.

Ellsberg conta a história de como ele, enquanto antigo tenente dos Marines com um doutoramento pela Universidade de Harvard, foi contratado por John McNaughton, assistente do Secretário da Defesa, e começou a trabalhar, em Agosto de 1964, no dia em que a crise do Golfo de Tonkin eclodiu. Ele relata a recepção dos despachos por telegrama emitidos pelo navio de guerra USS Maddox.

Poucas horas após o destroyer dos EUA ter informado que estava a ser atacado por lanchas torpedeiras norte-vietnamitas [PT boats, no original], o comandante do navio telegrafara para Washington que os relatos de um ataque contra o seu navio podiam ter sido muito exagerados: "Toda a acção deixa muitas dúvidas".

Imagem wikipedia
Mas isso não importava, porque este foi apenas o pretexto que Lyndon Johnson estava à procura. Johnson e o Secretário da Defesa, Robert McNamara, apressaram-se a anunciar que o ataque tinha sido não provocado. Mas, numa reunião do Conselho de Segurança Nacional na noite em que o primeiro relatório chegou, quando Johnson perguntou, "Será que eles querem a guerra ao atacar os nossos navios no meio do Golfo de Tonkin?" o chefe da CIA, John McCone, respondeu:
Não. Os norte-vietnamitas estão reagindo defensivamente ao nosso ataque às suas ilhas ao largo da costa. Eles estão respondendo por questões de orgulho e na base de considerações de defesa.
O facto era que os Estados Unidos tinham orquestrado um ataque de comandos sul-vietnamitas em território norte-vietnamita antes do alegado conflito ter começado. Mas Johnson mentiu e começou os bombardeamentos, e o Congresso apressou-se a apoiá-lo.


No Vietname, como no Iraque, o governo dos EUA pressionou fortemente para levar a cabo umas eleições para santificar o seu regime fantoche. Ellsberg, que passou dois anos no Vietname após a sua passagem pelo Pentágono, auxiliou alguns dos principais funcionários dos EUA num esforço de quem procurava assegurar umas eleições honestas. Mas, quando o embaixador dos EUA, Henry Cabot Lodge, se deu conta das suas intenções, ele respondeu:
Temos agora um senhor na Casa Branca [Johnson], que passou a maior parte da sua vida a viciar eleições. Eu passei a maior da minha vida a viciar eleições. Eu gastei nove meses inteiros a manipular uma convenção republicana para que escolhesse Ike como candidato em vez de Bob Taft.
Lodge, posteriormente, viria a ordenar: "Façam passar a mensagem à imprensa que eles não devem usar padrões mais rigorosos aqui no Vietname do que aplicam nos EUA".

Mas os comentários de Lodge eram francamente edificantes quando comparados com uma reunião em que Ellsberg participou com o antigo vice-presidente Richard Nixon, que estava de visita ao Vietname numa "missão de apuramento de factos" para ajudar a reforçar as suas aspirações presidenciais. O antigo operacional da CIA, Edward Lansdale, disse a Nixon que ele e os seus colegas queriam ajudar a "fazer com que essa eleição fosse a mais honesta até aí realizada no Vietname". Nixon respondeu: "Ah, claro, honesta, sim, honesta, evidentemente... desde que a ganhemos!" Acompanhando as suas últimas palavras, ele fez três coisas em rápida sucessão: piscou o olho, deu uma forte cotovelada no braço de Lansdale e deu uma palmada no seu próprio joelho.

É difícil imaginar um qualquer funcionário do governo dos EUA a sequer sugerir a Bush, nos seus voos furtivos a Camp Cupcake no Iraque, que os Estados Unidos deveriam certificar-se de que as eleições iraquianas seriam justas.

As memórias de Ellsberg explicam com nitidez de que modo os altos funcionários são corrompidos pela posse do que consideram ser informação ultra-secreta. Ellsberg advertiu Henry Kissinger, logo após a vitória eleitoral de Nixon em 1968, que ter acesso a informação classificada é "algo de semelhante aos efeitos da poção que Circe deu aos viajantes e náufragos que vieram dar à sua ilha, que os transformaria em suínos".

Os Documentos do Pentágono

Em 1967, o Pentágono deu ordens para que os melhores especialistas que procedessem à análise do que tinha corrido mal na guerra. Do estudo resultante, constituído por 47 volumes de material que expunha as loucuras políticas e intelectuais que, por essa altura, já tinham conduzido à morte de dezenas de milhares de americanos. Após a conclusão do estudo, ele foi distribuído aos principais protagonistas e às agências federais. Contudo, o maciço estudo foi completamente ignorado. À época, o New York Times começou a publicar excertos em 1971, "a Casa Branca e o Departamento de Estado não foram capazes sequer de localizar os 47 volumes". Tom Wicker, editor do New York Times, comentou na altura que "as pessoas que leram estes documentos no [New York] Times foram os primeiros que os estudaram".

Ellsberg ajudou a escrever uma parte dos documentos relacionados com a administração Kennedy. Ele ficou abalado com o carácter incorrigível da política dos EUA. Não importa quantos graduados pela Ivy League [link] e jovens magos estivessem no comando,
Havia uma falha geral no estudo da história ou para analisar, ou até para registar, a experiência operacional, especialmente os erros. Acima de tudo, as pressões reais para reportar falso optimismo a todos os níveis, para descrever o "progresso" em lugar de problemas ou fracassos, ocultaram a própria necessidade de mudança na abordagem ou a necessidade de aprender.
Os mesmos fracassos permeiam a experiência militar dos EUA no Iraque. O Pentágono e a Casa Branca engendraram padrões falsos, uns após outros, para santificar qualquer recente mudança de política anunciada.

Ellsberg foi um guerreiro liberal ["progressista"], demasiado entusiasta, da Guerra Fria até ao final da década de 1960. Enquanto lia os documentos confidenciais que formaram a base dos Papéis do Pentágono, ele percebeu que tinha largamente subestimado a dimensão da perene mentira presidencial nos Estados Unidos. Ele compreendeu que
a concentração de poder no Executivo desde a II Guerra Mundial tinha focado praticamente toda a responsabilidade pelo "fracasso" político sobre um homem, o presidente. Em simultâneo, isso deu-lhe uma enorme capacidade para evitar ou adiar ou ocultar um fracasso pessoal através da força ou da fraude. Confrontado com uma resistência externa resoluta, como aconteceu no Vietname, esse poder não poderia deixar de corromper o homem que o detinha.
Ellsberg tornou-se um activista com manifestantes anti-guerra e tem grandes anedotas sobre polícias idiotas nos protestos em [Washington] DC. O lema dos protestos anti-guerra do 1º de Maio de 1971 era "Se eles não pararem com a guerra, nós faremos parar o governo". Este é um ideal que não deveria ser esquecido por aqueles que no nosso tempo se cansaram do disparate da onda [a "surge" de David Petraeus no Iraque] e da pós-onda.

A publicação dos Documentos

Fiquei surpreendido ao saber quão difícil foi a luta de Ellsberg para encontrar alguém com a coragem de tornar públicas as 7000 páginas. O senador George McGovern, no início, mostrou interesse mas esquivou-se a colocar os Documentos no Registo do Congresso, tal como aconteceu com o senador William Fulbright. Em contrapartida, o senador Mike Gravel, do Alaska, não teve medo e conseguiu retirar todos os obstáculos para conseguir que a informação saísse.

A publicação dos Documentos do Pentágono pelo New York Times foi o grande avanço. O Departamento de Justiça de Nixon andou numa azáfama para conseguir uma ordem judicial que bloqueasse a publicação, e mais tarde voltou a fazer o mesmo quando o Washington Post começou a publicar o material que Ellsberg lhe enviou. Ellsberg respondeu enviando partes do seu relatório para jornais em todo o país. A raiva da administração Nixon e as suas maquinações foram as melhores relações públicas que os Documentos do Pentágono poderiam ter beneficiado.

O braço direito de Nixon, H.R. Haldeman, disse a Nixon no dia em que a primeira referência aos Documentos surgiu no New York Times, que o resultado seria que o "homem comum" viria a concluir
não ser possível confiar no governo; não ser possível acreditar no que eles dizem; e não ser possível confiar no seu juízo das coisas. E a infalibilidade implícita dos presidentes, que era algo tido por estabelecido nos Estados Unidos, fica gravemente ferida com isto.
Infelizmente, o receio de Haldeman, não viria a ser confirmado. Ellsberg ficou desapontado com a resposta aos Papéis do Pentágono: "Permaneceu nas mentes dos eleitores e comentadores uma enorme resistência em acreditar que essas generalizações se aplicavam a um presidente incumbente". Esta tem sido uma armadilha constante para a democracia americana: a suposição de que o político mais recentemente eleito é de uma espécie completamente diferente da de todos os patifes que o precederam. Foi especialmente irónico que tantos americanos tenham sido tão lentos em reconhecer a perfídia de Nixon.

No início de seu julgamento pela divulgação dos Documentos do Pentágono, Ellsberg declarou:
Este tem sido para mim um acto de esperança e de confiança. Esperança de que a verdade nos libertará desta guerra. Confiança em que os americanos informados irão ordenar aos seus funcionários públicos para parar de mentir e para parar o matar e morrer por americanos na Indochina.
Este foi o tipo de idealismo que levou Henry Kissinger a rotular Ellsberg como "o homem mais perigoso da América".

No novo século, Ellsberg continuou a falar, a condenar as mentiras oficiais e a apelar aos americanos para que reconhecessem que as guerras são muito mais sangrentas e dispendiosas do que os líderes dizem ser. Em Julho de 2006, ele advertiu que caso os Estados Unidos vierem a atacar o Irão, "Eu não tenho dúvidas de que haverá, no dia ou dias seguintes, um equivalente a um decreto pós-incêndio do Reichstag que envolverá detenções maciças no país". Ele tem publicamente incitado outros membros do Pentágono e da administração a assumir o risco de divulgar documentos chave de modo a servir a verdade em vez do regime actual.

Infelizmente, mesmo quando os funcionários governamentais arriscam a sua liberdade e carreira para possibilitar a fuga de informação, os media por vezes recusam-se a publicá-la - ou enterram-na até depois de uma eleição - como fez o New York Times com a informação das escutas ilegais e sem mandado judicial de Bush às chamadas telefónicas dos americanos.

Quem sabe quantas outras fugas de informação nunca chegaram a ver a luz do dia por causa de um jornal que se prostrou perante o presidente Bush e o vice-presidente Dick Cheney como se de deuses se tratassem?

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