domingo, 29 de setembro de 2013

A versão autárquica do atávico respeitinho lusitano

Uma crónica certeira e com um timing adequado, a de Alberto Gonçalves, hoje no DN - Sua Excelência, o autarca:
"Há dias, li um jornalista jurar que a Lisboa actual está sempre em festa, cheia de animação, eventos culturais, artes de rua e "iniciativas" em geral, logo (sublinho o "logo"), o jornalista em causa apoia a reeleição de António Costa. Ainda que não fosse essa a intenção, é difícil resumir melhor a relação dos portugueses com o poder, e sobretudo com o poder local.

Para o cidadão comum, aquilo que acontece numa cidade, Lisboa ou outra, é necessariamente resultado das decisões - ou da falta delas - dos senhores que ocupam a autarquia. Se a cidade é pródiga em bares, espectáculos musicais, exposições e homens-estátua, o mérito é da câmara municipal. Se a cidade anda mortiça, a culpa é da câmara municipal. Os munícipes, criaturas sem vontade própria que seguem as decisões autárquicas como os zombies seguem mioleira fresquinha, não são para aqui chamados, excepto para exaltar a sumidade que espevitou a vida urbana ou criticar a nulidade que deixa a vida urbana desligar-se às sete da tarde. Aparentemente, ninguém é capaz de se instalar a servir copos, organizar concertos ou espirrar três vezes sem o aval, e talvez o patrocínio, de Sua Excelência, o autarca. A ausência de vida para além dos Paços do Concelho não só é uma concepção absurda: se calhar, é verdadeira.

Em países civilizados, é possível visitar uma cidade, ler sobre uma cidade ou espreitar um documentário alusivo a uma cidade e nem sequer notar a existência do senhor presidente da câmara. Em Portugal, isso seria tão estranho quanto um vereador balbuciar uma frase que não inclua a palavra "valências". Não há "apontamento de reportagem" acerca de qualquer lugarejo sem depoimento do senhor presidente. Não há jornal local sem 37 fotografias do senhor presidente. Não há procissão de Nossa Senhora dos Aflitos sem a presença do senhor presidente junto da protagonista. Não há instalação instalada em galeria sem autorização do senhor presidente. Não há garrafa de vodca aberta às duas da madrugada sem uma vénia ao senhor presidente, que afinal criou as "condições" para que os súbditos se embriagassem com galhardia. O senhor presidente, emanação do Estado, encontra-se por toda a parte, numa consumação assustadora das "políticas de proximidade" que o jargão da classe promete "incrementar".

Puro Terceiro Mundo? Obviamente. Ou, se não apreciarem a expressão, herança de séculos de pobreza e dependência, que mantêm o povo petrificado, à espera das migalhas largadas por quem manda. Se a "festa" lisboeta se deve de facto ao dr. Costa, a "festa" é uma exibição do nosso permanente atraso, hoje, aliás, celebrado em eleições."

3 comentários:

Anónimo disse...

Parabéns pelo texto. Está muito bom.

Rui Silva

Eduardo Freitas disse...

Caro Rui Silva,

Os parabéns devem naturalmente ser endereçados ao autor do texto...

Cumprimentos

Anónimo disse...

E ao presidente da Câmara.