segunda-feira, 8 de setembro de 2014

As acções de Putin na Ucrânia: "inaceitáveis" ou provocadas e previsíveis?

Independentemente de isto se vir a confirmar - caso em que, a meu ver, só acelerará a importância do eixo Moscovo-Pequim (tal como a intervenção no Iraque acabaria a reforçar a posição do Irão) -, parece-me pertinente a devida referência à coluna de sábado do insuspeitíssimo Christopher Booker, no Telegraph, relativa à situação na Ucrânia e da qual retirei o título que encima o post.[1] [2] A tradução é da minha responsabilidade bem como os realces de segmentos do texto.
É sempre revelador quando os políticos nos transmitem que algo é "inaceitável". O que eles querem dizer com isso é que, muito embora as pessoas possam ter a expectativa de que eles irão fazer alguma coisa a esse respeito, o facto é que não têm a menor ideia do quê. Foi por isso que os líderes ocidentais, incluindo David Cameron, reunidos para a cimeira da NATO no País de Gales, nos disseram que a intervenção do presidente Putin na Ucrânia era "inaceitável".

O verdadeiro problema aqui não é apenas o de os nossos dirigentes não saberem o que fazer relativamente a Putin e à horrível guerra civil na Ucrânia, que já matou quase 3,000 pessoas e que os russos parecem estar a ganhar sem grande esforço. A questão é que eles e muitos outros no Ocidente têm vindo a fazer uma leitura errada desta crise desde que ela começou no início do ano.

Nunca será demais repetir que o que desencadeou a crise não foi a vontade de Putin em restaurar as fronteiras da União Soviética, mas antes a ambição absurdamente insensata por parte do Ocidente em ver a Ucrânia ser absorvida pela UE e pela NATO. Nunca teria sido possível que Putin ou todos aqueles falantes de russo no leste da Ucrânia e na Crimeia amavelmente assistissem a que o país que foi o berço da identidade russa se tornasse parte de um bloco do poder ocidental. A Rússia ficaria ainda menos contente em ver os únicos portos de águas quentes da sua marinha nas mãos de uma aliança militar que tinha sido formada para, em primeiro lugar, para a conter.

Quando 96% dos cidadãos da Crimeia votaram democraticamente em Março no sentido de se juntarem à Rússia, isso não foi, como os políticos ocidentais nos vêm agora dizer, porque Putin queria "anexar" o seu território. Foi porque os 82% deles que falam o russo como língua materna queriam reunir-se a um país de que a Crimeia havia sido parte integrante durante dois séculos.

E todavia, exactamente na mesma altura, o governo democraticamente eleito da Ucrânia estava a ser derrubado por multidões de manifestantes nas ruas de Kiev, muitos dos quais pagos através de fundos provenientes de Bruxelas para gritar "Europa, Europa" à baronesa Ashton, quando ela os instou a assinar aquele "acordo de associação de" que constituía o penúltimo passo no processo de tornar a Ucrânia num membro de pleno direito da UE.

É por isto que a UE, com o apoio dos Estados Unidos, se meteu na bagunça a que hoje assistimos como resultado da jactância dos seus próprios delírios. Os dirigentes da NATO sabem que há pouco que possam fazer de útil. Há meses que vêm falando acerca daquelas "sanções", muito embora desconfortavelmente conscientes de que a UE depende da Rússia em 30% do gás de que necessita para manter os seus fogões a trabalhar e as luzes acesas. Até mesmo quando o presidente Hollande da França urgia David Cameron durante meses a fio para fechar as portas da City de Londres aos banqueiros e oligarcas russos que investiram 27 mil milhões de libras no Reino Unido, sabíamos que a Grã-Bretanha havia investido 46 mil milhões de libras na Rússia.

Foi assim que os nossos líderes se sentaram à volta da mesa naquele hotel de betão medonho no País de Gales para tagarelar acerca de ainda mais sanções. [...]

Enquanto isso, Putin e os russos do coração industrial da Ucrânia fazem exactamente o que era previsível, combatendo pelo surgimento de um "estado-tampão" semi-autónomo entre a Rússia e o Ocidente.

Os nossos dirigentes foram apanhados numa crise que qualquer pessoa dos serviços de informação deveria ter previsto assim que, de modo tão temerário quanto desnecessário, a puseram em marcha.
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[1] Significativamente veja-se como no próprio seio da elite - no Council of Foreign Relations (Conselho para os Assuntos Externos) - que surgem evidentes sinais de que a maré está a mudar como é o caso deste artigo na publicação do CFR, Foreign AffairsWhy the Ukraine Crisis Is the West’s Fault (Por que é que a crise na Ucrânia é culpa do Ocidente).
[2] De caminho, aproveito para reforçar uma nota que já deixei algures na caixa de comentários, da imprescindibilidade em seguir o blogue do companheiro de muitas lides de Booker, Richard North, o EU Referendum Blog, para se poder ter um seguimento frequente, credível e independente, entre outras matérias, daquilo que vai sucedendo na Ucrânia e no Médio Oriente e das políticas e acções da "Europa" nesses teatros.

6 comentários:

LV disse...

Eduardo,

A maré está a mudar neste caso. Talvez estivesse já a mudar, mas ainda não se tivesse feito notar. Isto porque, numa extraordinária (mas apenas aparente) coincidência, este conflito agudiza-se quando a Rússia e a China assinam um acordo para estabelecer parcerias de natureza económica, financeira e energética. Que, se a memória não falha, ultrapassa qualquer negócio (entre soberanos) no passado. E, claro, não envolve o dólar.
Se juntarmos os factos de estes dois países serem, há uns anos a esta parte, os maiores compradores de metais preciosos (e industriais) a nível mundial, estarem entre os maiores produtores de ouro, paládio e platina (entre outros), de em ambos os países terem aberto praças de transacção de metais preciosos que querem disputar o lugar de Londres e NIorque (no caso chinês uma das maiores praças será de transacção física apenas, nada de ETF´s e com entrega em 48horas), de ambos os países fazerem parte da recente mobilização dos BRICS…
Bom, julgo que são razões suficientes para que "algo tenha de acontecer" para perturbar essas diligências. Pergunto-me: de que lado ficarão os alemães quando o Inverno chegar?

Saudações,
LV

LV disse...

(cont.)

E através de Paul Craig Roberts cheguei a um artigo que evitarei classificar, mas atente-se à passagem:

"Since subtlety doesn’t work with Russians, the president and his European counterparts should also make absolutely clear that we have no interest whatever in how these people solve their Putin problem. If they can talk good old Vladimir into leaving the Kremlin with full military honors and a 21-gun salute -- that would be fine with us. If Putin is too too stubborn to acknowledge that his career is over, and the only way to get him out of the Kremlin is feet-first, with a bullet hole in the back of his head -- that would also be okay with us.

Nor would we object to a bit of poetic justice.... For instance, if the next time Putin’s flying back to Moscow from yet another visit with his good friends in Cuba, or Venezuela, or Iran, his airplane gets blasted out of the sky by some murky para-military group that somehow, inexplicably, got its hands on a surface-to-air missile."

Herbert E. Meyer served during the Reagan Administration as Special Assistant to the Director of Central Intelligence and Vice Chairman of the CIA’s National Intelligence Council.

Aqui:http://www.americanthinker.com/2014/08/how_to_solve_the_putin_problem.html#ixzz3CillE9YK

Será que a maré vazia já revela os rochedos que, há muito, teimam em afundar "ameaças" num esquizofrénico intervencionismo de que esta passagem é uma pequena amostra?

Aterrador.

LV

Eduardo Freitas disse...

Luís,

Et voilà!.

Saudações

JS disse...

Mt. bom e cada vez mais difícil não concordar com o que aqui está claramente explanado....

Mais uma "secessão" à vista, na Europa, infelizmente com um triste banho de sangue e miséria.
Esperemos que na Escócia, e na vizinha Espanha, haja melhor método.
Até porque, aparentmente, não existem, nestes casos, aromas petrolíferos ....

LV disse...

JS,

Correctíssimo quanto à (possibilidade) da(s) secessão(ões) na Europa. Mas não esqueça que a Escócia tem que resolver com a sede do Império, entre outras coisas, as receitas do petróleo do mar do Norte e as reservas de ouro. Ui!! e se isso não está a fazer correr os políticos britânicos!

Coloquemos, por aqui, uma palavra em defesa dos escoceses libertados.

Saudações,
LV

JS disse...

Completamente de acordo.
Todos os negociadores no caso Timor, ou São Tomé (ou Escócia), ..., têm, ou tiveram, os mesmos dados sobre as respectivas reservas petrolíferas?.
E se sim que contratos já estarão assinados para o futuro, qualquer que seja o resultado do referendo?.
O petróleo inquína, e abaliza, todas as líricas liberdades e autonomias.
Haverá petróleo na Catalunha?.
Saudações de um espectador interessado.