domingo, 11 de novembro de 2012

A loucura monetária (4)

Continuado daqui (Parte I e Parte II). Nesta secção, Schlichter aborda o funcionamento actual do sistema bancário totalmente assente em moeda fiduciária e explica como ele decorre essencialmente do modus operandi do banco central, ou seja, da vontade dos estados. É por essa razão que defende ser impróprio categorizar a banca de "privada" no arranjo institucional hoje existente. A criação de moeda-depósito a partir do nada é um facto mas tal só acontece porque os bancos centrais o permitem e o estimulam. Só o regresso ao padrão-ouro - a perspectiva dos Austriacos - permitirá fazer regressar a sanidade monetária e o fim dos ciclos de expansão e recessão associados à expansão do crédito (e necessária correcção posterior). 
Benes e Kumhof criam um problema artificial

Para qualquer análise do actual sistema financeiro, uma distinção entre moeda criada pelo Estado e moeda criada por privados é completamente artificial e não proporciona qualquer utilidade porque, no nosso sistema monetário, a moeda é criada por um processo no qual os bancos "privados" estão intimamente ligados ao banco central estatal. Qualquer distinção entre "privado" e "estatal" é, portanto, arbitrária, e, para uma análise das consequências económicas de tal sistema, desprovida de sentido. Sim, a maior parte da moeda em circulação é hoje moeda-depósito e faz parte dos balanços dos nominalmente bancos "privados", mas as reservas estão constituídas na forma de moeda fiduciária estatal, sendo apenas criadas pelo banco central estatal, no qual os bancos nominalmente privados têm que ter uma conta para que possam obter uma licença bancária. Os bancos que operam sob um regime de reservas fraccionárias dependem fundamentalmente dos bancos centrais, patrocinados e controlados pelo Estado, que têm uma função de emprestador de último recurso e que podem - num sistema de moeda fiduciária - criar reservas bancárias segundo o seu livre arbítrio, sem custos e sem limite, e estão, em circunstâncias normais, dispostos a fazê-lo para apoiar [no limite, salvar] os bancos. Sem esse apoio fundamental, o sistema bancário de reservas fraccionárias, à escala que tem sido praticada nos anos e décadas recentes, seria inconcebível. Na sua descrição do sistema actual, Benes e Kumhof não têm em conta nada disto. Com toda a franqueza, não parecem entendê-lo.

Eis duas afirmações do ensaio do FMI que podem parecer à primeira vista razoáveis, mas que, sob inspecção mais minuciosa, revelam o grave mal entendido do nosso sistema actual revelado por Benes e Kumhof:
"Num sistema financeiro com pouco ou nenhum suporte dos depósitos através de reservas, e com o dinheiro [notas] emitido pelo governo a desempenhar um papel muito pequeno relativamente aos depósitos bancários, a criação dos agregados monetários de uma nação depende quase inteiramente da disposição dos bancos em fornecer depósitos." (página 5)
Mas o que determina a disposição dos bancos em oferecer depósitos? Um sistema bancário de reservas fraccionárias (que oferece depósitos) é lucrativo, mas é também arriscado para os bancos caso o público possa exigir o reembolso dos depósitos em dinheiro ou via transferência para outros bancos, e os bancos não podem criar dinheiro [notas] ou moeda sob a forma de reservas, o que é necessário para facilitar as transferências. Estas formas de moeda permanecem uma prerrogativa do banco central do Estado. É a certeza, ou a alta probabilidade, sob os presentes arranjos institucionais, que o banco central irá apoiar os bancos e continuar a fornecer qualquer quantidade de moeda e reservas ["liquidez"] que seja necessário, que permite aos bancos oferecer - de forma muito rentável, claro - grandes quantidades de moeda-depósito a partir de uma pequena quantidade de moeda-reserva. Caso o público exija o pagamento em dinheiro [notas], há a expectativa, razoável, de que o banco central apoie os bancos e forneça o dinheiro [notas] necessário.

Nas últimas décadas, o sistema bancário mundial encontrou-se em numerosas ocasiões numa posição em que sentiu que tinha assumido um risco financeiro demasiado elevado e que uma desalavancagem e uma diminuição do seu balanço era aconselhável. Eu sugeriria que foi este o caso em 1987, 1992/3, 1998, 2001/2, e, certamente, 2007/8. No entanto, em cada uma dessas ocasiões, o impacto económico mais amplo de uma tal estratégia de diminuição do risco foi considerada indesejável ou mesmo inaceitável por razões políticas, e os bancos centrais ofereceram amplas novas reservas bancárias a um custo muito baixo com a finalidade de desencorajar a contracção monetária e incentivar uma adicional expansão monetária, ou seja, a criação adicional de reservas fraccionárias. É assim de admirar que os bancos tenham continuado a produzir grandes quantidades de dinheiro-depósito - de forma rentável, claro? Poderá o resultado ser realmente atribuído à iniciativa "privada"?

Um sistema bancário de reservas fraccionárias à dimensão que hoje existe exige duas coisas: 1) um banco central patrocinado pelo Estado que tem o monopólio da criação de reservas e a função de emprestador de último recurso do sector bancário; 2) o banco central tem de ter o controle completo sobre as reservas bancárias e ser capaz de as criar, sem custos e sem limites. Em suma, a condição prévia para a existência em grande escala de um sistema bancário de reservas fraccionárias é um sistema completa e irrestritamente fiduciário [fiat]. Em contraste, a capacidade do banco central para criar reservas está fundamentalmente restrita sob um regime de padrão-ouro.

O padrão-ouro foi abolido e substituído por um sistema inteiramente irrestrito de moeda estatal fiduciária mediante um acto político. O Estado estabeleceu bancos centrais monopolistas que têm uma função de emprestador de último recurso ao sector bancário. O estado criou assim a infra-estrutura que permite aos bancos fornecer grandes quantidades de depósitos e, ao longo de décadas, tem repetidamente subsidiado esta actividade e socializado os seus riscos.

Aqui está a segunda afirmação de Benes e Kumhof:
"O controlo do crescimento do crédito seria muito mais directo porque os bancos já não seriam capazes, como são hoje, de gerar o seu próprio financiamento, depósitos, no acto de emprestar, um privilégio extraordinário que não é usufruído por nenhum outro tipo de negócio."(página 5)
Mas o que, exactamente, constitui o privilégio? - Numa sociedade livre, somos naturalmente livres de emitir os nossos próprios meios fiduciários - basta que passemos cheques sobre nós mesmos e, de seguida, os ponhamos a circular como substitutos de dinheiro. Provavelmente teremos de convencer o público que iremos converter esses cheques em dinheiro próprio a pedido, de modo a persuadir o público a usar os cheques como equivalentes a dinheiro, e mesmo assim é possível que não tenhamos sucesso. Mas se o público acreditar em nós e o nosso esforço for bem sucedido, tornámo-nos de facto em produtores de moeda e podemos financiar os nossos próprios empréstimos com os nossos cheques. Na verdade, foi basicamente assim que se originou o sistema bancário de reservas fraccionárias. Até agora, pois, nenhum privilégio. O negócio só se torna privilegiado, e possível na escala a que assistimos hoje, uma vez que o Estado o suporta. A solução "Austríaca" é simples: remova-se o privilégio! Sem moeda fiduciária, sem os bancos centrais e sem o seguro dos depósitos patrocinado pelo Estado, vejamos quanta criação de moeda "privada" haverá realmente!
(Continua)

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