sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Da legitimidade

A presença esparsa na blogosfera, cada vez mais condicionada pela minha errância no facebook, não impediu que lesse com atenção este post do rui a. e o subsequente troca de comentários, em especial na sequência das intervenções de Carlos Novais a contestar a tese de rui a., em mais um episódio no cerrado debate filosófico entre minarquistas e a anarco-libertários. Por outras palavras, da necessidade ou não da existência do Estado, ainda que sob uma forma mínima (a estritamente necessária, na senda do liberalismo clássico dos séculos XVIII e XIX e dos actos fundadores, de funções enumeradas, do estado federal da União dos Estados da América do Norte).

Robert Higgs (em excelente entrevista, aqui), presença frequente no EI, e que ultimamente também se "virou" para o fb onde mantém uma página muito activa, publicou ontem um pequeno mas muito interessante texto que me parece ser um bom contributo para (res)suscitar um debate que, em boa medida, não se inicia sequer porque se as coisas "sempre foram assim" para quê discuti-las?

Membro de organizações profissionais, enquanto trabalhador por conta de outrem, sempre lutei contra aquelas paredes, tidas por inexpugnáveis, do "sempre foi assim". Mais novo, as dificuldades do desafio de as ultrapassar serviam apenas para me alimentar de uma ainda maior vontade de o conseguir. Ao longo dos anos, à medida que o tempo foi passando e alguma sabedoria ia sendo adquirida, as tácticas de que me socorria diversificaram-se, mas o objectivo estratégico, esse - "tear down this wall", nas famosas palavras de Reagan -, creio nunca o ter perdido. Foi física e mentalmente esgotante esse percurso. Deixou sequelas. Permanentes.

Convido-vos, assim, a conhecerem mais um belo texto de Robert Higgs - Legitimacy -, numa tradução de minha responsabilidade, lamentavelmente muito pálida perante a qualidade do original:

Qual é a diferença entre um estado, uma quadrilha criminosa ou um prestador de serviços de protecção como a máfia? Numa palavra, a legitimidade [política]. Na prática, esta vaga noção sugere que as pessoas vêem o estado - a sua composição institucional, os seus funcionários e a sua conduta - como moralmente aceitável ou apropriado, enquanto vêem a máfia - pelo menos a sua conduta -, como moralmente inaceitável ou imprópria.

Muitos estados alegam que a sua legitimidade assenta no fundamento lockeano do consentimento dos governados mas, na prática, esse consentimento revela-se altamente problemático pois a população governada raramente é confrontada, se é que o é alguma vez, com a opção de ser ou não ser governada no quadro das instituições estatais estabelecidas. Os regimes utilizam a educação pública, a propaganda, as decisões judiciais (proferida por juízes do próprio estado), as eleições políticas, as audiências públicas e outros artifícios para imbuir as pessoas da ideia de que os seus governantes são autoridades legítimas que levam a cabo acções legítimas. Muitos desses esforços justificativos, talvez mesmo todos, são altamente questionáveis, se é que não são inteiramente falsos, e nenhum deles representa prova decisiva do consentimento do povo para ser governado tal como o é pelos governantes que os dominam.

Na realidade, o assim chamado consentimento dos governados consiste no essencial da mera aquiescência - uma resignação generalizada que significa apenas que a maioria das pessoas prefere suportar o roubo e a intimidação do estado do que abertamente lhe resistir pelos riscos de dano, de prisão e de morte. A aquiescência do povo, em muitos casos, uma espécie de rendição implícita, mal-humorada e ressentida, dificilmente confere aos governantes uma qualquer aprovação moral. Na verdade, mesmo nos países com os maiores graus de participação política popular, a maior parte das pessoas olhará para os políticos governantes e burocratas com um mal disfarçado desprezo e, por vezes abertamente, com um ódio expresso.


Se um governo consegue permanecer no poder por um longo período de tempo, porém, muitas pessoas podem vir a aceitá-lo simplesmente pela força do hábito. Aos olhos de alguns, será visto como não passível de discussão apenas porque ele "sempre lá esteve" e as suas acções serão tidas "como as coisas são". Pessoas de mente de matriz conservadora podem com efeito acreditar que a antiguidade por si só não é apenas uma base suficiente como também é uma base convincente para a aprovação e preservação das instituições estabelecidas. Mesmo grandes filósofos liberais, como David Hume e, no nosso próprio tempo, Anthony de Jasay, consideram os direitos como nada mais que convenções que, de alguma forma, se estabeleceram ao longo de grandes períodos de tempo e, desse modo, adquiriram a sua bona fide e a demonstrada aptidão evolutiva no bom funcionamento de uma sociedade. De facto, muitas pessoas acostumam-se às coisas tais como elas são, mesmo quando essas coisas são irracionais e abusivas.

Em qualquer caso, a ostensiva e luminosa linha de demarcação de legitimidade, que separa o governo dos comuns gangs criminosos, esbate-se e desvanece-se sob um escrutínio atento. Não desaparece completamente no entanto porque, para uma parte da população governada, os esforços do governo na venda da sua legitimidade são bem sucedidos. Estes indivíduos seduzidos são os que se voluntarizam para servir como guardas do palácio estatal - nas suas forças armadas, na polícia e em outras agências de violência física e de intimidação - e que voluntariamente enviam os seus filhos para serem sacrificados nas guerras do estado no estrangeiro e em outras aventuras. Eles proporcionam, por assim dizer, legiões de "idiotas essenciais", paralelas às dos "idiotas úteis" entre a intelligentsia, que lutam em nome do estado na guerra das ideias e das ideologias.

De um país para o outro, a divisão da sociedade entre os irremediavelmente seduzidos e os meramente intimidados varia enormemente. Todos os estados procuram mover a linha de demarcação, de modo a que uma maior proporção de pessoas caia no primeiro grupo. Assim, todos os estados prosseguem esforços incessantes para convencer as pessoas da sua competência, das suas boas intenções, da representação próxima dos desejos das pessoas, e das suas normas de conduta moralmente impecáveis. Embora estes esforços proporcionem pouco mais que alimento para uma risada amarga entre os indivíduos de olhos abertos e corações imaculados, eles conseguem frequentemente ser suficientes para manter os governantes à superfície enquanto continuam na pilhagem e na repressão. A sua legitimidade prevalecente, no entanto, raramente é algo mais do que um ersatz ou contrafacção de uma fundação sólida para um estado cuja composição, funcionários e conduta são geralmente desejados e aprovados.

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