A torrente de escândalos que vem varrendo estrondosamente a administração de Obama (por que razão só agora?) não conheceu limites ao longo desta semana. Glenn Greenwald, de nacionalidade americana, colunista regular do The Guardian desde o Verão do ano passado (antes escrevia na Salon) que muito aprendi a apreciar, "ameaça" no seu texto de sexta-feira, dia 7 - On whistleblowers and government threats of investigation - que não iremos ficar por aqui. Trata-se, a meu ver, de matéria tão fundamentalmente importante que não é demais sublinhar a dimensão dos insidiosos ataques à liberdade que as fugas de informação revelaram. Não que seja ingénuo ao ponto de ter tido agora uma epifania tardia quanto à natureza do Estado mas para sublinhar a importância do que até agora já se soube.
A tradução do texto de Greenwald é, como habitualmente, da minha responsabilidade.
A tradução do texto de Greenwald é, como habitualmente, da minha responsabilidade.
ACTUALIZAÇÃO: Autor da fuga de informação sobre espionagem nos EUA revela identidade. O seu nome é Edward Snowden.
Assistimos à sucessão da história de quarta-feira, relativa à recolha massiva de registos de chamadas telefónicas por parte da NSA [National Security Agency], por uma outra ontem [quinta-feira, dia 6 de Junho] agora dizendo respeito ao acesso directo, pela mesma agência, aos servidores das maiores empresas prestadoras de serviços de internet em todo o mundo. Não tenho tempo de momento para abordar todas as repercussões destas revelações pois - pedindo emprestada uma frase de alguém - estou ansioso pelas futuras revelações que estão por surgir (o que acontecerá em breve), e não em olhar para trás para aquelas que já vieram à luz.
Mas pretendo assinalar dois pontos. Um acerca dos whistleblowers, e o outro relativamente às ameaças de investigação emanadas de Washington:
1) Desde que a administração Nixon assaltou o escritório do psicanalista Daniel Ellsberg, a táctica do governo dos EUA tem sido a de atacar e demonizar os denunciantes, como forma de desviar a atenção da exposição das suas próprias prácticas preversas, tentando destruir a credibilidade do mensageiro para que todo o mundo não ligue à mensagem. Sem sombra de dúvida, essa manobra também aqui será tentada.
Daniel Ellsberg
Direi algo mais adiante, mas por agora: como estes actos de denúncia são cada vez mais demonizados ("repreensíveis", como ontem os classificou o Director da National Intelligence, James Clapper), disponha o leitor por favor de um momento para considerar as opções disponíveis a alguém com acesso a numerosos documentos classificados de Top Secret [Muito Secreto].
Poderiam enriquecer facilmente vendendo esses documentos em troca de enormes somas de dinheiro a serviços secretos estrangeiros. Eles poderiam tentar prejudicar o governo dos EUA dirigindo-se a um adversário estrangeiro e, secretamente, transmitindo-lhe esses segredos. Poderiam, gratuitamente, expor a identidade de agentes secretos.
Nenhum dos denunciantes perseguidos pela administração Obama, no seu ataque sem precedentes aos denunciantes, fez nada disso: nenhum deles. Nem nenhum daqueles que são responsáveis pela divulgação dos factos correntes.
Eles não agiram com qualquer interesse próprio em mente. A verdade está no pólo oposto: eles incorreram em grandes riscos pessoais e sacrifícios por uma razão abrangente: tornar os seus concidadãos cientes de que o seu governo está a fazer nos bastidores. O seu objectivo é educar, democratizar e responsabilizar os que estão no poder.
As pessoas que fazem isto são heróis. Elas são a personificação do heroísmo. Elas fazem isto sabendo exactamente o que é provável que lhes venha a acontecer pela mão do governo mais poderoso do planeta, mas fazem-no não obstante. Elas não retiram quaisquer benefícios para si destes actos. Eu não pretendo simplificar excessivamente: os seres humanos são complexos e geralmente agem sob motivos mistos e múltiplos. Mas leia-se este notável ensaio sobre as revelações desta semana do especialista em segurança do The Atlantic, Bruce Schneier, para entender por que são esses bravos actos tão cruciais.
Bradley Manning
Aqueles que tomam a iniciativa de expor estes casos raramente retiram daí qualquer benefício . Aqueles que beneficiam são vocês que descobrem o que se deveria saber mas que vos é ocultado : nomeadamente, os actos de maiores consequências que são levados a cabo por aqueles com o maior dos poderes, e de como essas acções estão afectando a sua vida, o seu país e o seu mundo.
Em 2008, o candidato Obama decretava que "muitas vezes a melhor fonte de informação sobre o desperdício, a fraude e o abuso no estado é de um seu funcionário comprometido com a integridade pública e disposto a falar em voz alta", e saudou a actividade de denúncia de maus actos como:
"actos de coragem e patriotismo, que às vezes podem salvar vidas e frequentemente fazer poupar o dinheiro do contribuinte, devem ser incentivados em vez de sufocados como tem sucedido durante a administração Bush."A encarnação actual de Obama persegue aqueles mesmos whistlelblowers num número que é duplo do de todos os presidentes anteriores somados, e passou a temporada de campanha gabando-se disso.
A versão 2008 de Obama tinha razão. À medida que os vários ataques são inevitavelmente lançados sobre o(s) denunciante (s), eles merecem a gratidão e - especialmente - o apoio de todos, incluindo os meios de comunicação social, pelos nobres actos que cometeram para o bem de todos nós. No que diz respeito ao que o Estado de Vigilância está construindo e fazendo na obscuridade, estamos hoje muito mais informados do que estávamos ontem, e estaremos muito mais informados amanhã do que estamos hoje, graças a eles.
(2) Como marionetas lendo um guião, vários funcionários de Washington começaram, praticamente de imediato, a fazer jorrar todos os tipos de ameaças sobre "investigações" que pretendem lançar acerca destas revelações. Esta tem sido a sua cartilha há vários anos: querem impedir e intimidar todo e qualquer um que possa lançar luz sobre o que estão fazendo através da sua manipuladora e abusiva exploração do poder da lei para punir aqueles que promovem a transparência.
Isto não irá funcionar. Pelo contrário, o tiro está já a sair pela culatra. É precisamente porque esse tipo de comportamento revela o seu verdadeiro carácter, a sua propensão para o abuso do poder, que mais e mais pessoas estão determinadas a agir para que se consiga mais responsabilização e transparência sobre o que aqueles fazem.
Eles podem ameaçar investigar tudo o que queiram. Mas, como esta semana deixa claro, e continuará a deixar claro, os que irão ser realmente investigados serão eles .
O modo como é suposto que as coisas funcionem é que nós somos supostos saber praticamente tudo sobre o que eles fazem: é por isso que eles são designados por funcionários públicos. Eles, supostamente, deveriam saber praticamente nada sobre o que nós fazemos: é por isso que somos designados por indivíduos privados.
Esta dinâmica - característica de uma sociedade saudável e livre - foi radicalmente invertida. Agora, eles sabem tudo sobre o que fazemos, e estão constantemente a construir sistemas para saber mais. Entretanto, sabemos cada vez menos sobre o que eles fazem, pois eles constroem muros de secretismo atrás dos quais funcionam. Esse é o desequilíbrio que é necessário terminar. Nenhuma democracia pode ser saudável e funcional se os actos de maiores consequências daqueles que exercem o poder político forem completamente desconhecidos daqueles a quem eles são supostos responder.
Parece existir esta mentalidade em Washington segundo a qual logo que eles usem o carimbo TOP SECRET em algo que eles fizeram, é suposto que todos nós tremamos e que lhes permitamos fazer o que quiserem, sem transparência ou responsabilização . Estas investigações intermináveis e processos e ameaças são concebidas para reforçar essa dinâmica alimentada pelo medo. Mas ela não está funcionando. Está produzindo o efeito contrário.
As vezes na história americana em que o poder político foi constrangido aconteceram quando eles foram longe demais e o sistema reagiu e impôs limites. Foi o que aconteceu em meados dos anos 1970, quando os excessos de J. Edgar Hoover e Richard Nixon se tornaram tão extremos que a legitimidade do sistema político dependia da imposição de restrições sobre si mesmo. E é isso que está acontecendo agora, quando o governo prossegue nas suas orgias acusatórias contra os whistleblowers, tentando criminalizar o jornalismo, e construindo um massivo aparato de vigilância que destrói a privacidade, tudo isto em segredo. Quanto mais eles reagirem de forma exagerada a medidas de responsabilização e transparência - mais flagrantemente abusam do seu poder de secretismo e de lançar investigações e processos - mais rapidamente a reacção chegará.
Eu irei prosseguir tomando a Constituição à letra, que nos garante o direito a uma imprensa livre. O mesmo, obviamente, sucederá com outras pessoas. E isso significa que não são as pessoas que estão sendo ameaçadas que merecem ser alvo de investigações, mas sim aquelas que estão proferindo as ameaças. É por isso que há uma imprensa livre. É isto que significa o jornalismo adversarial.
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