domingo, 9 de junho de 2013

Elogio aos whistleblowers em pleno Estado de Vigilância

A torrente de escândalos que vem varrendo estrondosamente a administração de Obama (por que razão só agora?) não conheceu limites ao longo desta semana. Glenn Greenwald, de nacionalidade americana, colunista regular do The Guardian desde o Verão do ano passado (antes escrevia na Salon) que muito aprendi a apreciar, "ameaça" no seu texto de sexta-feira, dia 7 - On whistleblowers and government threats of investigation - que não iremos ficar por aqui. Trata-se, a meu ver, de matéria tão fundamentalmente importante que não é demais sublinhar a dimensão dos insidiosos ataques à liberdade que as fugas de informação revelaram. Não que seja ingénuo ao ponto de ter tido agora uma epifania tardia quanto à natureza do Estado mas para sublinhar a importância do que até agora já se soube.

A tradução do texto de Greenwald é, como habitualmente, da minha responsabilidade.

ACTUALIZAÇÃO: Autor da fuga de informação sobre espionagem nos EUA revela identidade. O seu nome é Edward Snowden.

Assistimos à sucessão da história de quarta-feira, relativa à recolha massiva de registos de chamadas telefónicas por parte da NSA [National Security Agency], por uma outra ontem [quinta-feira, dia 6 de Junho] agora dizendo respeito ao acesso directo, pela mesma agência, aos servidores das maiores empresas prestadoras de serviços de internet em todo o mundo. Não tenho tempo de momento para abordar todas as repercussões destas revelações pois - pedindo emprestada uma frase de alguém - estou ansioso pelas futuras revelações que estão por surgir (o que acontecerá em breve), e não em olhar para trás para aquelas que já vieram à luz.

Mas pretendo assinalar dois pontos. Um acerca dos whistleblowers, e o outro relativamente às ameaças de investigação emanadas de Washington:

Daniel Ellsberg
1) Desde que a administração Nixon assaltou o escritório do psicanalista Daniel Ellsberg, a táctica do governo dos EUA tem sido a de atacar e demonizar os denunciantes, como forma de desviar a atenção da exposição das suas próprias prácticas preversas, tentando destruir a credibilidade do mensageiro para que todo o mundo não ligue à mensagem. Sem sombra de dúvida, essa manobra também aqui será tentada.

Direi algo mais adiante, mas por agora: como estes actos de denúncia são cada vez mais demonizados ("repreensíveis", como ontem os classificou o Director da National Intelligence, James Clapper), disponha o leitor por favor de um momento para considerar as opções disponíveis a alguém com acesso a numerosos documentos classificados de Top Secret [Muito Secreto].

Poderiam enriquecer facilmente vendendo esses documentos em troca de enormes somas de dinheiro a serviços secretos estrangeiros. Eles poderiam tentar prejudicar o governo dos EUA dirigindo-se a um adversário estrangeiro e, secretamente, transmitindo-lhe esses segredos. Poderiam, gratuitamente, expor a identidade de agentes secretos.

Nenhum dos denunciantes perseguidos pela administração Obama, no seu ataque sem precedentes aos denunciantes, fez nada disso: nenhum deles. Nem nenhum daqueles que são responsáveis pela divulgação dos factos correntes.

Eles não agiram com qualquer interesse próprio em mente. A verdade está no pólo oposto: eles incorreram em grandes riscos pessoais e sacrifícios por uma razão abrangente: tornar os seus concidadãos cientes de que o seu governo está a fazer nos bastidores. O seu objectivo é educar, democratizar e responsabilizar os que estão no poder.

Bradley Manning
As pessoas que fazem isto são heróis. Elas são a personificação do heroísmo. Elas fazem isto sabendo exactamente o que é provável que lhes venha a acontecer pela mão do governo mais poderoso do planeta, mas fazem-no não obstante. Elas não retiram quaisquer benefícios para si destes actos. Eu não pretendo simplificar excessivamente: os seres humanos são complexos e geralmente agem sob motivos mistos e múltiplos. Mas leia-se este notável ensaio sobre as revelações desta semana do especialista em segurança do The Atlantic, Bruce Schneier, para entender por que são esses bravos actos tão cruciais.

Aqueles que tomam a iniciativa de expor estes casos raramente retiram daí qualquer benefício . Aqueles que beneficiam são vocês que descobrem o que se deveria saber mas que vos é ocultado : nomeadamente, os actos de maiores consequências que são levados a cabo por aqueles com o maior dos poderes, e de como essas acções estão afectando a sua vida, o seu país e o seu mundo.


Em 2008, o candidato Obama decretava que "muitas vezes a melhor fonte de informação sobre o desperdício, a fraude e o abuso no estado é de um seu funcionário comprometido com a integridade pública e disposto a falar em voz alta", e saudou a actividade de denúncia de maus actos como:
"actos de coragem e patriotismo, que às vezes podem salvar vidas e frequentemente fazer poupar o dinheiro do contribuinte, devem ser incentivados em vez de sufocados como tem sucedido durante a administração Bush."
A encarnação actual de Obama persegue aqueles mesmos whistlelblowers num número que é duplo do de todos os presidentes anteriores somados, e passou a temporada de campanha gabando-se disso.

A versão 2008 de Obama tinha razão. À medida que os vários ataques são inevitavelmente lançados sobre o(s) denunciante (s), eles merecem a gratidão e - especialmente - o apoio de todos, incluindo os meios de comunicação social, pelos nobres actos que cometeram para o bem de todos nós. No que diz respeito ao que o Estado de Vigilância está construindo e fazendo na obscuridade, estamos hoje muito mais informados do que estávamos ontem, e estaremos muito mais informados amanhã do que estamos hoje, graças a eles.

(2) Como marionetas lendo um guião, vários funcionários de Washington começaram, praticamente de imediato, a fazer jorrar todos os tipos de ameaças sobre "investigações" que pretendem lançar acerca destas revelações. Esta tem sido a sua cartilha há vários anos: querem impedir e intimidar todo e qualquer um que possa lançar luz sobre o que estão fazendo através da sua manipuladora e abusiva exploração do poder da lei para punir aqueles que promovem a transparência.

Isto não irá funcionar. Pelo contrário, o tiro está já a sair pela culatra. É precisamente porque esse tipo de comportamento revela o seu verdadeiro carácter, a sua propensão para o abuso do poder, que mais e mais pessoas estão determinadas a agir para que se consiga mais responsabilização e transparência sobre o que aqueles fazem.

Eles podem ameaçar investigar tudo o que queiram. Mas, como esta semana deixa claro, e continuará a deixar claro, os que irão ser realmente  investigados serão eles .

O modo como é suposto que as coisas funcionem é que nós somos supostos saber praticamente tudo sobre o que eles fazem: é por isso que eles são designados por funcionários públicos. Eles, supostamente, deveriam saber praticamente nada sobre o que nós fazemos: é por isso que somos designados por indivíduos privados.

Esta dinâmica - característica de uma sociedade saudável e livre - foi radicalmente invertida. Agora, eles sabem tudo sobre o que fazemos, e estão constantemente a construir sistemas para saber mais. Entretanto, sabemos cada vez menos sobre o que eles fazem, pois eles constroem muros de secretismo atrás dos quais funcionam. Esse é o desequilíbrio que é necessário terminar. Nenhuma democracia pode ser saudável e funcional se os actos de maiores consequências daqueles que exercem o poder político forem completamente desconhecidos daqueles a quem eles são supostos responder.

Parece existir esta mentalidade em Washington segundo a qual logo que eles usem o carimbo  TOP SECRET em algo que eles fizeram, é suposto que todos nós tremamos e que lhes permitamos fazer o que quiserem, sem transparência ou responsabilização . Estas investigações intermináveis ​​e processos e ameaças são concebidas para reforçar essa dinâmica alimentada pelo medo. Mas ela não está funcionando. Está produzindo o efeito contrário.

As vezes na história americana em que o poder político foi constrangido aconteceram quando eles foram longe demais e o sistema reagiu e impôs limites. Foi o que aconteceu em meados dos anos 1970, quando os excessos de J. Edgar Hoover e Richard Nixon se tornaram tão extremos que a legitimidade do sistema político dependia da imposição de restrições sobre si mesmo. E é isso que está acontecendo agora, quando o governo prossegue nas suas orgias acusatórias contra os whistleblowers, tentando criminalizar o jornalismo, e construindo um massivo aparato de vigilância que destrói a privacidade, tudo isto em segredo. Quanto mais eles reagirem de forma exagerada a medidas de responsabilização e transparência - mais flagrantemente abusam do seu poder de secretismo e de lançar investigações e processos - mais rapidamente a reacção chegará.

Eu irei prosseguir tomando a Constituição à letra, que nos garante o direito a uma imprensa livre. O mesmo, obviamente, sucederá com outras pessoas. E isso significa que não são as pessoas que estão sendo ameaçadas que merecem ser alvo de investigações, mas sim aquelas que estão proferindo as ameaças. É por isso que há uma imprensa livre. É isto que significa o jornalismo adversarial.

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