domingo, 15 de setembro de 2013

Um apelo à precaução vindo da Rússia (que terá valido a pena)

A última semana foi verdadeiramente febril quanto à evolução dos acontecimentos na Síria que culminou (?) hoje mesmo, com um notável desinteresse pouco entusiasmo dos jornais de "referência" europeus (não nos americanos), com o anúncio da celebração de um acordo entre os EUA e a Rússia, mediante o qual é aparentemente encontrada uma "saída" para a crise e evitada assim uma escalada de consequências imprevisíveis da situação que já de si era (e continua a ser) explosiva.

É impossível saber o que daqui a 20, 50 anos os livros de História registarão mas é talvez provável que façam menção a uma peça de jornal, assinada pelo ex-KGB, reincidente presidente russo vitalício em exercício (e sempre profissional) Vladimir Putin com o título "A Plea for Caution From Russia" ("Um apelo à precaução vindo da Rússia"). Um artigo que Patrick J. Buchanan classifica de "notável" (vídeo recomendado); que fez com que John Boehner, o Speaker da Câmara dos Representantes, se tivesse sentido "insultado"; que o neocon John McCain classificou como um "insulto à inteligência de cada americano" e que a outros lhes terá provocado a sensação de "vómito". Não é de admirar a reacção: Putin atreveu-se a pôr em causa o "excepcionalismo americano", uma espécie de elemento absorvente (e "absolvente") das malfeitorias feitas em seu nome...

Parecem-me motivos bastantes para justificar uma tradução do texto de V. Putin. Pro memoria.
Moscovo - Os recentes acontecimentos envolvendo a Síria impeliram-me a falar directamente ao povo americano e aos seus líderes políticos. É importante que o faça num tempo em que a comunicação entre as nossas sociedades é insuficiente.

As relações entre nós passaram por diferentes fases. Confrontámo-nos durante a guerra fria. Mas também já fomos aliados, e juntos derrotámos os nazis. A organização internacional universal - as Nações Unidas - foi então criada para evitar que uma tal devastação voltasse a acontecer.

Os fundadores das Nações Unidas compreenderam que as decisões que afectam a guerra e a paz somente devem ser tomadas por consenso, e foi com o consentimento da América que o veto dos membros permanentes do Conselho de Segurança foi consagrado na Carta das Nações Unidas. A profunda sabedoria desta decisão esteve na base da estabilidade das relações internacionais ao longo de décadas.

Ninguém deseja que as Nações Unidas sofram o destino da Liga das Nações, a qual entrou em colapso porque não detinha apoio real. Mas isto poderá suceder caso países influentes ignorem as Nações Unidas e levem a cabo acções militares sem autorização do Conselho de Segurança.

O potencial ataque dos Estados Unidos à Síria, apesar da forte oposição de muitos países e de grandes líderes políticos e religiosos, incluindo o Papa, resultará em mais vítimas inocentes e numa escalada do conflito que poderá, potencialmente, alargá-lo muito para além das fronteiras da Síria. Um ataque iria aumentar a violência e desencadear uma nova onda de terrorismo. Poderia prejudicar os esforços multilaterais para resolver o problema nuclear iraniano e o conflito israelo-palestiniano e desestabilizar ainda mais o Médio Oriente e o Norte da África. Poderia desequilibrar todo o sistema internacional de lei e ordem.

A Síria não está a assistir a uma batalha pela democracia, mas a um conflito armado entre governo e oposição num país multi-religioso. Existem poucos campeões da democracia na Síria. Mas há mais do que suficientes combatentes da Al-Qaeda e de extremistas de todos os matizes a lutar contra o governo. O Departamento de Estado dos Estados Unidos designou a Al-Nusra e o Estado Islâmico do Iraque e do Levante, que lutam ao lado da oposição, como organizações terroristas. Este conflito interno, alimentado por armas estrangeiras fornecidas à oposição, é um dos mais sangrentos do mundo.


Os mercenários provenientes de países árabes que por ali lutam e as centenas de militantes vindos de países ocidentais e mesmo da Rússia, constituem motivo para a nossa profunda preocupação. Não voltarão eles aos nossos países com a experiência adquirida na Síria? Afinal, depois de lutarem na Líbia, os extremistas deslocaram-se para o Mali. Isto ameaça-nos a todos.

Desde o início que a Rússia tem defendido o diálogo pacífico de modo a permitir aos sírios desenvolver um plano de compromisso para o seu próprio futuro. Nós não estamos a proteger o governo sírio mas sim o direito internacional. Precisamos usar o Conselho de Segurança das Nações Unidas e acreditar que a preservação da lei e da ordem no mundo complexo e turbulento de hoje é uma das poucas maneiras de evitar que as relações internacionais resvalem para o caos. A lei ainda é a lei, e nós devemos segui-la gostemos ou não dela. Sob a lei internacional vigente, a força só é permitida em situação de legítima defesa ou por decisão do Conselho de Segurança. Qualquer outra coisa, segundo a Carta das Nações Unidas, é inaceitável e constituiria um acto de agressão.

Ninguém duvida que tenha sido utilizado gás venenoso na Síria. Mas há todas as razões para acreditar que não foi usado pelas forças armadas sírias mas sim pelas forças da oposição, com o intuito de provocar a intervenção dos seus poderosos patronos estrangeiros, que se aliariam aos fundamentalistas. Informações segundo as quais os activistas estão a preparar um outro ataque - desta vez contra Israel - não podem ser ignoradas.

É alarmante que a interferência militar em conflitos internos em países estrangeiros se tenha tornado comum para os Estados Unidos. Mas será isto do interesse da América a longo prazo? Duvido. Milhões em todo o mundo vêem cada vez mais a América não como um modelo de democracia mas como dependendo exclusivamente da força bruta, promovendo coligações sob o slogan "ou estão connosco ou contra nós".

Mas a força tem-se revelado ineficaz e desprovida de sentido. O Afeganistão está periclitante, e ninguém pode dizer o que vai acontecer quando as forças internacionais se retirarem. A Líbia está dividida em tribos e clãs. No Iraque, a guerra civil continua, com dezenas de mortos todos os dias. Nos Estados Unidos, muitos estabelecem uma analogia entre o Iraque e a Síria, e perguntam por que razão o seu governo pretenderia repetir erros recentes.

Não importa quão precisos sejam os ataques ou quão sofisticadas sejam as armas, as vítimas civis são inevitáveis​​, incluindo idosos e crianças, aqueles que os ataques seriam supostos proteger.

O mundo reage com a pergunta: se não se pode contar com o direito internacional, é então necessário encontrar outras formas de garantir a segurança. Daí o número crescente de países que procuram adquirir armas de destruição maciça. Isso é lógico: se alguém possui a bomba, ninguém lhe irá tocar. Ficamos assim reduzidas às conversações sobre a necessidade de fortalecer a não-proliferação, quando na realidade esta está a ser erodida.

Temos que cessar a utilização da linguagem da força e regressar ao caminho da diplomacia civilizada e dos acordos políticos .

Uma nova oportunidade para evitar a acção militar surgiu nos últimos dias. Os Estados Unidos, a Rússia e todos os membros da comunidade internacional devem aproveitar a disponibilidade do governo sírio para colocar o seu arsenal químico sob controlo internacional para a sua subsequente destruição. A julgar pelas declarações do presidente Obama, os Estados Unidos vêem-na como uma alternativa à acção militar.

Saúdo o interesse do presidente em continuar o diálogo com a Rússia sobre a Síria. Devemos trabalhar em conjunto para manter viva esta esperança, como acordámos na reunião do G8 em Lough Erne, na Irlanda do Norte, em Junho, e conduzir a discussão de volta às negociações.

Se pudermos evitar a utilização da força contra a Síria, isso irá melhorar a atmosfera nos assuntos internacionais e reforçar confiança mútua. Será um sucesso partilhado e abrirá a porta à cooperação noutras questões críticas.

A minha relação com o presidente Obama, pessoal e de trabalho, está marcada pela confiança crescente. Aprecio isso. Estudei cuidadosamente o seu discurso à nação na Terça-feira [10 de Setembro]. E eu discordaria da defesa que ele fez do excepcionalismo americano, quando afirmou que a política dos Estados Unidos é "o que torna a América diferente. É o que nos torna excepcionais". É extremamente perigoso incentivar as pessoas a que se vejam a si próprias como excepcionais, seja qual for a motivação. Existem países grandes e países pequenos, ricos e pobres, aqueles com longas tradições democráticas e aqueles que estão ainda a encontrar o caminho para a democracia. As suas políticas são também diferentes. Somos todos diferentes, mas quando pedimos a bênção do Senhor, não nos devemos esquecer que quando Deus nos criou, criou-nos a todos iguais.

Vladimir V. Putin

(Op-Ed publicado no The New York Times, a 11 de Setembro de 2013)

2 comentários:

acoral disse...

Obrigado pela tradução. Sem dúvida um grande texto e uma grande chapada.

Tem dois parágrafos repetidos.

Eduardo Freitas disse...

Obrigado pela chamada de atenção para a repetição que já eliminei.