sexta-feira, 29 de março de 2013

O acordo do Chipre e o desemaranhar do sistema bancário de reservas fraccionárias

Praticamente todos os analistas concordam que, após o ocorrido em Chipre, "nada será como dantes". O abalo telúrico que percorreu a zona euro tornou evidente, para um significativo número de pessoas, que, afinal, os bancos não eram - não são - um oásis de segurança para os valores lá "depositados" (as aspas são propositadas). Joseph Salerno, um especialista em questões monetárias da Escola Austríaca, dá-nos a sua perspectiva, num texto publicado em 27-03-2012, de quais poderão ser esses efeitos no seu texto The Cyprus Deal and the Unraveling of Fractional-Reserve Banking (abaixo traduzido por mim1), assinalando um facto que qualifica de "feliz", assim acompanhando a análise de Detlev Schlichter de que aqui fiz eco.

O tema do sistema bancário de reservas fraccionárias tem sido visto em Portugal como um tema desinteressante, do domínio do esotérico, de que só alguns excêntricos falam e escrevem (e só em ambientes "controlados"). Um caso notável na blogosfera, pela persistência denodada e praticamente solitária, tem sido Carlos Novais o qual, desde que ingressou no "quadro" dos bloggers do Portugal Contemporâneo, vem amplificando o seu significado (e respectivas consequências). Também ele viu uma oportunidade "feliz" para agora animar agora uma recolha de assinaturas para uma petição tendo em vista definir legalmente que os depósitos à ordem sejam cobertos a 100% por reservas - e, portanto, não tenham risco associado - e não, como hoje acontece, constituam na realidade empréstimos aos bancos e, consequentemente, estejam sujeitos aos riscos correspondentes. Eu já a assinei e convido todos os leitores a fazê-lo também.
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1 - Dei entretanto conta da existência de uma outra tradução no Mises Brasil.
O "acordo do Chipre", como tem sido amplamente designado nos meios de comunicação social, poderá assinalar algo próximo do último acto do lento colapso do sistema bancário de reservas fraccionárias o qual começou com a implosão da indústria das sociedades de poupança e empréstimos [S&L] nos EUA nos finais dos anos 80. Essa tendência continuou com as crises cambiais na Rússia, no México, na Ásia Oriental e na Argentina nos anos 90 onde o sistema de reservas fraccionárias desempenhou um papel decisivo. O desmoronamento do sistema de reservas fraccionárias tornou-se visível, até mesmo para o depositante comum, durante a crise financeira de 2008 que desencadeou corridas a bancos em algumas das maiores e mais veneráveis instituições financeiras do mundo. O colapso final só foi evitado pelo resgate, no montante de milhões de milhões de dólares, dos bancos americanos e estrangeiros levado a cabo pela Reserva Federal.

Mais do que a crise financeira sem precedentes de 2008, no entanto, os recentes acontecimentos no Chipre podem ter desferido o golpe mortal no sistema bancário de reservas fraccionárias. Isto porque o sistema bancário de reservas fraccionárias apenas pode existir enquanto os depositantes tiverem uma total confiança de que, independentemente das dificuldades financeiras que vierem a suceder ao banco a que confiaram os seus "depósitos", serão sempre capazes de os levantar em dinheiro, à sua ordem, a qualquer momento e integralmente. Desde a II Guerra Mundial que o seguro governamental de depósitos bancários, assegurado pelo poder emissor do banco central, foi tido como a garantia inabalável que justificava essa confiança. Com efeito, o sistema bancário de reservas fraccionárias foi percebido como sendo um sistema de reservas a 100 por cento pelos depositantes, que agiam como se o seu dinheiro estivesse sempre "no banco", graças à capacidade dos bancos centrais de fabricar dinheiro a partir do nada (ou no ciberespaço). Perversamente, as diversas crises envolvendo o sistema bancário de reservas fraccionárias, que emergiram uma e outra vez desde os finais dos anos 80, apenas reforçaram essa crença entre os depositantes, porque os bancos problemáticos e as instituições de poupança sempre foram resgatados entre grande animação, especialmente os maiores e os menos estáveis.

Foi assim que surgiu a doutrina do "grande demais para falir" [too big to fail]. Sob esta doutrina, os depositantes e obrigacionistas não segurados foram geralmente resgatados por inteiro sempre que um grande banco faliu, porque era amplamente entendido que a confiança em todo o sistema bancário era algo frágil e evanescente que se poderia quebrar e dissipar por completo em resultado da falência de uma única grande instituição.


Voltando ao acordo do Chipre, de um ponto de vista de uma solução de mercado livre, ele está longe do ideal. A solução em consonância com o mercado livre não implicaria a restrição no levantamentos de depósitos, a imposição fascistóide de controlos de capitais sobre residentes nacionais e investidores estrangeiros, nem a imposição aos contribuintes do resto da zona euro de contribuírem para o resgate, da ordem dos 10 mil milhões de euros. Não obstante, o acordo transmite uma mensagem salutar aos depositantes e credores de todo o mundo ao impor aos até aqui intocáveis grandes obrigacionistas e depositantes não segurados nos bancos cipriotas, que sobre eles recaia parte do custo do resgate. Os detentores de títulos obrigacionistas dos dois maiores bancos sofrerão perdas totais e quanto aos grandes depositantes (ou seja, aqueles que possuem depósitos não segurados superiores a 100.000 €) no Banco Laiki é relatado que também poderão sofrer perdas totais, num montante de 4,2 mil milhões de euros enquanto os grandes depositantes no Banco de Chipre irão perder entre 30 e 60 por cento dos seus depósitos. Os pequenos depositantes em ambos os bancos, que detêm depósitos segurados até 100.000 euros, manterão o valor total dos seus depósitos.

O resultado feliz será que os depositantes, tanto os segurados como os não-segurados, na Europa como por todo o mundo, tornar-se-ão muito mais cautelosos ou até mesmo desconfiados em lidar com bancos de reservas fraccionárias. Eles estarão preparados para correr aos bancos e levantar o seu dinheiro ao menor sinal ou rumor de instabilidade. Isso vai induzir os bancos a alterar radicalmente as suas fontes de recursos para financiar empréstimos e investimentos, afastando-se dos depósitos em  direcção ao financiamento pela emissão de acções e obrigações. Como foi relatado ontem, isto é já a expectativa de muitos analistas:
Como referido por analistas, uma potencial repercussão do acordo de ontem é o efeito em cadeia que se poderá gerar no financiamento bancário. Os bancos financiam-se normalmente através de uma combinação de depósitos, de emissão de acções, de títulos preferenciais, subordinados e obrigações cobertas [obrigações hipotecárias e sobre o sector público] que são garantidos por um conjunto de activos de alta qualidade que ficam no balanço do mutuante.

Poderá acontecer que das consequências do resgate ao Chipre resulte que os bancos fiquem mais propensos a usar obrigações convertíveis contingentes  - conhecidas por Cocos - para arrecadar dinheiro à medida que a sua capacidade de onerar activos através da emissão de obrigações cobertas atinja os limites regulamentados, afirmou Chris Bowie, do Ignis Asset Management Ltd., em Londres.

"Nós esperamos observar alguma fuga de depósitos e uma mudança no financiamento para uma combinação de obrigações cobertas, capital próprio e acções", disse Bowie, que é chefe de gestão de carteiras de crédito no Ignis, que gere uma carteira de cerca de 110 mil milhões de dólares.
Se isso de facto ocorrer, será um passo significativo em direcção a um sistema financeiro de mercado livre no qual o desfasamento radical entre as maturidades dos activos e passivos, no caso dos depósitos à ordem, será eliminado de uma vez por todas. Mais umas quantas crises bancárias na zona euro - em especial uma onde os depositantes segurados sejam chamados a participar no chamado "bail-in" -  provavelmente irá fazer com que a fé  nos seguros governamentais dos depósitos bancários se evapore completamente e com ela a confiança num sistema bancário de reservas fraccionárias.

Poderá então naturalmente surgir no mercado um sistema em que as acções, as obrigações e os genuínos depósitos a prazo - que não possam ser resgatados antes do seu vencimento - se tornem as fontes exclusivas de financiamento para empréstimos bancários e investimentos. Os depósitos à ordem, movimentáveis ou não através de cheques, seriam segregados em efectivos bancos de depósitos que mantêm reservas a 100 por cento e proporcionam uma gama de sistemas de pagamentos desde as caixas ATM aos cartões de débito. Embora esta conjectura nos possa soar excessivamente optimista, estamos certamente hoje bem mais perto de um tal resultado do que sucedia antes do "acordo do Chipre" ter sido alcançado.

É claro que estaríamos ainda mais perto se não houvesse resgate e todo o impacto das falências bancárias fosse suportado unicamente pelos credores e depositantes dos bancos falidos em vez de o ser parcialmente pelos contribuintes. A última solução teria completa e definitivamente exposto a verdadeira natureza do sistema bancário de reservas fraccionárias para que todos a pudessem ver.

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