segunda-feira, 25 de março de 2013

Por que é a crise do Chipre de 2003 pior que a da Argentina em 2001 e do Kreditanstalt (1931)

Martin Sibileau, em Why Cyprus 2013 is worse than the KreditAnstalt (1931) and Argentina 2001 crises, publicado em 24-03-2013, oferece-nos uma leitura histórica comparada entre o "evento" Chipre 2013 e dois outros clássicos homólogos - o da Argentina em 2001 e um outro, mais recuado no tempo - a bancarrota do banco austríaco Kreditanstalt -, que muitos historiadores identificam como extremamente relevante para a hecatombe que se abateria sobre o mundo poucos anos depois. Como pertenço ao grupo daqueles que subscreve, em termos vigorosos, estas asserções de Maria do Carmo Tavares - particularmente, a necessidade de o economista saber História (para que possa ligar os acontecimentos) -, achei interessante partilhar mais um texto não ortodoxo sobre o "evento" Chipre 2013.  A tradução, rápida, é da minha responsabilidade.
O Chipre de 2013, como qualquer outro acontecimento, pode ser analisado em termos políticos e económicos.

Análise política: duas dimensões

Politicamente, consigo distinguir duas dimensões. A primeira dimensão pertence à história geopolítica da região, a que se juntaram as recém-descobertas reservas de gás natural. A relevância histórica vem desde 1853, o ano em que se iniciou a Guerra da Crimeia. A Guerra da Crimeia ocorreu no adjacente mar Negro, mas o propósito político era o mesmo: evitar a expansão da Rússia para o Mediterrâneo. A relevância desse episódio residiu no rompimento do equilíbrio de poder estabelecido após as Guerras Napoleónicas, fixado no Congresso de Viena, em 1815. A partir daí, toda uma nova série de acontecimentos inesperados levaria a uma França mais fraca, a uma Prússia mais forte, a novas alianças e a uma solução final 60 anos depois: a I Guerra Mundial. É neste mesmo quadro que eu vejo o Chipre de 2013 como um acontecimento político muito relevante: caso a Rússia, eventualmente, proporcione um resgate a Chipre (à hora que escrevo, tal não parece provável) contra o penhor das reservas de gás natural ou de uma base naval, um novo equilíbrio de poder terá sido alcançado na região, em que Israel será o maior perdedor.

A segunda dimensão política refere-se a um observação que fiz, há exactamente um ano atrás, precisamente inspirada no evento Kreditanstalt [link] de 1931. Num artigo intitulado: "Acerca do ouro, de acções, da repressão financeira e do Kreditanstalt de 1931", escrevi:
"(O evento Kreditanstalt) foi accionado porque a França, uma credora do sector público, introduziu uma condição política à Áustria, em troca de um resgate ao Kreditanstalt. Hoje, como em 1931, na zona euro, o sector público é, cada vez mais, o credor do sector público. Em 1931, a Inglaterra e a França eram credoras da Áustria e exigiram condições que nenhum investidor privado teria exigido.

Os investidores privados vivem e morrem pelos lucros e prejuízos que obtiverem. Os políticos vivem e morrem pelos votos que consigam alcançar. Os investidores privados preocupam-se com a sustentabilidade e estrutura de capital daquele que pede emprestado, com a exigência de garantias e com o perfil de financiamento dos seus créditos. Os políticos preocupam-se com a sustentabilidade do seu poder. É um facto e temos de aprender a viver com ele.

Em 2012, a Grécia e cada vez mais outros países periféricos da União Europeia são devedores de outros estados, do FMI e do Banco Central Europeu. Os investidores privados foram devastados e não regressarão tão cedo. Tememos que, tal como em 1931, quando o próximo resgate ocorrer, quer novamente à Grécia quer a Portugal ou a Espanha, serão exigidas condições políticas que um investidor privado, no seu pleno juízo, jamais teria exigido.

Pense-se nisto ... Que diabo tinha a união aduaneira entre a Áustria e a Alemanha, em 1931, a ver com o rácio de capitalização do Kreditanstalt??? Nada! E no entanto, milhões e milhões de pessoas no mundo inteiro foram condenadas à miséria em apenas uma questão de dias enquanto as suas poupanças se evaporavam! Senhoras e senhores, bem-vindos ao mundo das moedas fiat [fiduciárias]! Você foi avisado! Se o leitor, uns meses a partir de agora, ler nos jornais que Conselho da União Europeia irresponsavelmente vier a exigir  coisas estranhas a um país periférico necessitado de um resgate, lembre-se do Kreditanstalt. Lembre-se de 1931 ...

Por favor, compreenda que este não é um risco extremo [tail risk]. O risco extremo é precisamente o oposto [ou seja, é muito significativo]. O real risco extremo aqui [ou seja, o altamente improvável] é que, quando o próximo resgate ocorrer, os políticos pensem como investidores privados pensariam e dêem prioridade à economia e não a considerações políticas. Esse é o risco extremo! Se uma tal crise vier a ocorrer, os media irão falar de correlações crescentes e dir-lhe-ão que tudo está realmente bem neste lado do Atlântico. Mas se nos ler a nós, irá saber que tudo o que levou a tal situação era perfeitamente previsível e nada está realmente bem, também deste lado do Atlântico. Ter-se-á lembrado de 1931..."

Chegado aqui, eu acho que tudo está dito e não tenho mais nada a acrescentar. As minhas preocupações de há um ano estão-se mostrando demasiado correctas.

Análise económica: confisco e duas promessas quebradas

O Chipre de 2013 é pior do que as crises do Kreditanstalt e da Argentina de 2001 porque tem um elemento de confisco e duas promessas quebradas que estiveram ausentes nestas últimas.

O confisco

Nem em 1931 nem em 2001 foram os depositantes na Áustria ou na Argentina sujeitos a um confisco explícito e arbitrário das suas economias pelos seus representantes, reunidos num parlamento. Este é um elemento totalmente novo de violência no drama. Em 1931 e em 2001, os depositantes simplesmente acorreram aos seus bancos numa descoberta de preços: descobrir o verdadeiro valor das notas detidas em dólares dos EUA em vez de nas suas respectivas moedas fiat (shillings e pesos). Nisso consistiram esses exercícios (corridas aos bancos) . Os governos não intervieram para distorcer a descoberta final. Nos anos 30, por meio de contágio com os EUA, tal descoberta permitiu aos depositantes compreender que os seus dólares americanos valiam muito menos do que 1/20,67 avos de uma onça de ouro. No século XXI, o acto final do mesmo jogo verá os titulares de ouro fiat [i.e., "certificados"] concluindo que existe um prémio para o ouro físico.

Tanto em 1931 como em 2001, os governos intervieram apenas para retardar o processo de descoberta dos preços. Mas não puderam mudar o resultado do mesmo. No caso da Argentina, com um multiplicador de crédito para dólares americanos de 1/0.3 (30% era a taxa de reservas [obrigatórias]), o dólar dos EUA terminou a ser negociado a 3 pesos em 2003 [quando antes a paridade oficial era de 1:1]. Por conseguinte, ninguém deve ter sido surpreendido na Argentina que o peso tenha perdido dois terços do seu valor contra o dólar americano. A desvalorização não era um confisco. Os depositantes não resgataram os seus bancos ou o estado. Os depositantes simplesmente sofreram uma transferência de riqueza, ditada pelos preços de mercado, que beneficiou aqueles que detinham dólares físicos norte-americanos. E nem os bancos nem o governo tinham dólares físicos norte-americanos. Foi por isso que ambos entraram em bancarrota.

No Chipre de 2013, os depositantes não têm ideia alguma de qual será, no final, a recuperação do seu capital. As perdas esperadas não têm ligação com um multiplicador de crédito público (na Argentina, toda a gente (e respectivos avós) sabia que a partir de Março de 1995, por regulamentação do banco central, por cada três dólares fiat em circulação, fisicamente havia apenas um dólar). No Chipre, o montante da recuperação está a ser "debatido" neste momento por membros do parlamento  em consultas com poderes fora do país, em Bruxelas, em Berlim, em Washington DC e em Moscovo. Isto é muito pior. Isto irá trazer um elemento de conflito social, de ressentimento, que não irá ser fácil apaziguar.

Promessa quebrada nº 1: a promessa de uma união bancária

Durante 2012 foram envidados esforços reais pelos decisores políticos para convencer o público de que a zona euro se estava a aproximar primeiro de uma união bancária como trampolim para uma união política. A pedra basilar dessa promessa era o papel do Banco Central Europeu como emprestador de último recurso. Tinha de ser uma promessa unânime; uma promessa de cada jurisdição. Para todos os efeitos práticos, importa muito pouco qual seja o PIB ou população de um membro da união. De facto, se o Banco Central Europeu não consegue arranjar os 5,8 mil milhões de euros que se afirma serem minimamente necessários para manter a música cipriota a tocar... o que podemos esperar quando este problema chegar à Itália, que ainda não tem sequer um governo para negociar??

Em 1931, a promessa de apoio internacional à Áustria estava apenas implícita. Em 2001, a promessa de um emprestador de última instância estava explicitamente ausente na Argentina. Nunca ninguém na Áustria ou na Argentina tinha esperado algo. A ninguém foi prometido nada. Ninguém foi deixado cair. Este não é o caso em 2013.

Promessa quebrada nº 2: a promessa de que os depósitos abaixo dos 100 mil euros estão garantidos

Talvez me tenha escapado algo aqui, mas tanto quanto sei, eu nunca vi Mário Draghi a convocar uma conferência de imprensa para dizer: "Caros depositantes de euros na zona euro: enquanto este banco central a que presido existir, independentemente da geografia ou circunstância política, qualquer depósito até 100 mil euros está garantido pela minha instituição." Se eu perdi esta mensagem, por favor, aceitem as minhas desculpas e tenham a amabilidade de me enviar o link para que a possa ver online (eu desisti da assinatura de TV por cabo no ano passado, no interesse da educação dos meus filhos).

A garantia prometida aos depósitos até 100 mil euros não foi abertamente defendida no Chipre de 2013. Que seja do meu conhecimento, nunca houve tal promessa seja em 1931 ou em 2001. Portanto, os depositantes cipriotas foram deixados ao abandono em condições bem piores que as dos seus homólogos na Áustria ou Argentina, cujas expectativas nunca tinham sido altas.

Considerações finais

Se olharmos para o caso da Argentina de 2001, perceberemos que foi uma aposta bastante transparente. Na Argentina, o rácio de reservas em dólares era conhecido: 30%. Todos nós sabíamos que os depósitos em dólares americanos tinham sido emprestados ao estado e que o estado enfrentava uma probabilidade significativa de incumprimento. Não obstante, os bancos ofereceram aos depositantes em dólares uma taxa de juro de 20% ao ano. Deste modo, um depositante argentino foi confrontado com uma aposta honesta: ganhar 20% ao ano face à probabilidade de perder dois terços do seu capital. Se acaso tivesse pensado que a probabilidade de incumprimento do estado argentino estava para além dos quatro anos, teria feito uma aposta com uma chance de a ganhar.

Que enfrentam os depositantes em euros hoje? Tudo menos uma aposta honesta! Eles não sabem qual será a perda esperada sobre o seu capital , porque esta será decidida num fim-de-semana por políticos que nem sequer os representam. Na realidade não sabem para onde foram os seus depósitos e também ignoram a que jurisdição estão sujeitos . Finalmente, aos depositantes são pagos meros pontos base pela sua confiança no sistema versus os 20% por ano que a Argentina ofereceu em 2001 (graças às políticas de zero por cento  de juros do século XXI). À luz de tudo isto, só posso concluir que quem quer que ainda tenha um depósito inseguro num banco da zona euro deveria ir examinar a sua cabeça!

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