quinta-feira, 21 de março de 2013

Por favor, acordem!

É o apelo que Detlev Schlichter deixa ficar quando, ainda que a contragosto, defende a opção de haircut dos depositantes cipriotas e, por extensão, de outros cidadãos de outras nacionalidades, Portugal incluído - Cyprus and the reality of banking: Deposit haircuts are both inevitable and the right thing to do. Artigo a ler com muita atenção diria (acompanhando Carlos Novais na recomendação), datado de dia 19 de Março. Esta é uma análise que, a meu ver, tem muitos pontos de contacto com a que Jesús Huerta de Soto aqui fez em defesa do euro e que eu subscrevo (como expliquei anteriormente). A tradução é, como habitualmente, da minha responsabilidade.
Imagem por Pixomar
Também eu fiquei chocado ontem de manhã. Não tanto com a notícia de que os depositantes em bancos cipriotas teriam de enfrentar um haircut, ou uma "taxa" ou um "imposto" sobre os seus depósitos, entendido como uma contribuição para ainda mais outro bailout na zona euro financiado pelos contribuintes de outros países, mas antes pela reacção da imprensa. Aqui estava, de acordo com a maioria dos comentadores internacionais, mais um exemplo da inépcia, ou mesquinhez pura e simples, da elite política da zona euro, um outro exemplo da imposição de sofrimento desnecessário e contraproducente e de uma brutal "austeridade" sobre os cidadãos inocentes dos pequenos e conturbados países. O Daily Telegraph, na sua primeira página, fez uso da hipérbole habitual de um "raide da União Europeia sobre as poupanças" e, naturalmente, de outra "ameaça à recuperação". O que agitou a maioria dos comentadores foi ter sido violada, levianamente, a "santidade" do seguro de depósitos pois mesmo os depósitos de montante inferior a 100 mil euros foram, pelo menos inicialmente, também sujeitos a um haircut, se bem que reduzido. É suposto que este tipo de depósitos desfruta de uma "garantia" que, por um passe de mágica, os protege da dura realidade feita de bancos falidos e de estados falidos. Minar essa "garantia" pode ter consequências de grande alcance para além do pequeno Chipre, uma vez que tem o potencial de erodir a confiança nos sistemas bancários na Grécia, em Espanha e em Portugal.

Concordo que esta é uma medida arriscada. O sistema bancário internacional está altamente alavancado [escorado em dívida] e boa parte dele vem oscilando à beira do abismo há já  muitos anos. Qualquer coisa que afecte os depositantes pode ter graves consequências. Mas, dado o estado de coisas, qualquer tentativa séria para lidar com os problemas dos sistemas bancários deve, inevitavelmente, acarretar riscos. As perguntas são as seguintes: Estão a ser avaliados os tipos correctos de riscos? E qual deveria ser a alternativa?

A banca é um negócio arriscado porque os bancos são empresas altamente alavancadas. (Desculpem-me por lhes dar esta notícia). Num  sistema bancário de reservas fraccionárias os "depósitos" não são depósitos (ou seja, contratos relativos aos serviços de custódia) mas antes empréstimos aos bancos e, como tal, empréstimos a negócios altamente alavancados.

A maioria das pessoas nos países desenvolvidos acostumou-se a não se preocupar com a saúde de cada um dos bancos individualmente considerados. Elas têm sido, ao longo de décadas, levadas a acreditar que todos os bancos são regulados pelo Estado e, em última análise, protegidos pelo estado. É verdade, mas apenas na medida necessária para que os bancos possam assumir riscos ainda maiores e se alavancarem ainda mais. A "protecção" do estado criou agora um monstro bancário que está engolindo os recursos do próprio estado. E isto dificilmente pode constituir um choque surpresa nos inícios de 2013!

A crença ingénua de que os depósitos bancários são sempre "dinheiro bom" por serem garantidos pelo estado e o estado, afinal de contas, é uma cornucópia sem fim, foi talvez compreensível, ou pelo menos desculpável, até cerca de 2008, quando o então primeiro-ministro da Irlanda, Brian Cowen, em plena crise bancária irlandesa, teve a genial ideia de simplesmente declarar que estariam garantidos pelo estado todos os depósitos em bancos irlandeses. E, pronto, problema resolvido! Obviamente, Cowen não tinha feito as contas e não percebeu quão grande essa garantia iria ser. Bem, tal foi determinado pelos mercados - e a Irlanda, o país, foi à falência.



Após o Lehman [Brothers], depois da Irlanda e da Islândia, e depois da Grécia, eu acho que terão vivido numa caverna nos últimos 5 anos aqueles que realmente pensam que os bancos são seguros porque são garantidos pelos seus governos. Vamos lá! Por favor, acordem!

Desculpem-me mas a minha simpatia para com os depositantes cipriotas é um tanto limitada. Se o leitor é um depositante num banco cipriota, com depósitos superiores ou inferiores a 100 mil euros, quem é que acha que estava garantindo o seu depósito? A Fada Azul? O leitor realmente acha que num país pequeno, com um sistema bancário bizarramente inchado - que durante anos, sabemo-lo agora, muito publicamente investiu em títulos da dívida do estado grego! - que o seu governo tinha os recursos para proteger todos os depositantes? O resgate dos dois maiores bancos do Chipre irá custar o equivalente a 60% do PIB! E depois do que aconteceu na Grécia, o leitor realmente acha que os alemães estavam dispostos a pagar a totalidade da conta?

Eu sou um defensor do mercado livre. Eu sou a favor do laissez-faire pelo que sempre gosto de ver cartazes onde se lê "Tirem daqui as mãos". Era possível ver cartazes destes nas manifestações ontem no Chipre: "Tirem as mãos do Chipre". Óptimo. Mas tome-se cuidado com o que se pretende. Uma política adequada de não-intervenção significa deixar que as fichas caiam onde tiverem que cair. Isso certamente significaria a ausência de resgate e, em consequência, o total colapso do sistema bancário e da economia cipriotas. Não se esqueça que o Chipre e os seus bancos e os seus depositantes ainda estão sendo resgatados com o dinheiro de outros.

Isso é também o que alguns dos meus amigos libertários não parecem perceber quando, como alguns ontem fizeram, referiram um novo incidente de "roubo pelo estado aos seus cidadãos" ou de confisco da sua propriedade. Por muita simpatia que geralmente costumo ter para com estes pontos de vista, neste caso, eles simplesmente estão errados. Se isto se tratasse de uma expropriação tal significaria que o acto de abstenção de expropriar - do expropriador simplesmente, nada fazer - significaria que a "vítima" manteria a sua propriedade. Mas, se a UE não fizesse nada nesta situação - "mãos longe daqui", laissez-faire - isso significaria que a maioria dos depositantes, incluindo aqueles abaixo dos 100 mil euros, teriam sido completamente espoliados. A escolha não é entre manter tudo e pagar uma "taxa", mas entre pagar uma "taxa" e perder quase tudo.

Alguns comentadores objectarão neste ponto dizendo que, a bem de um sentimento público mais animado e da recuperação nascente, o resgate deveria ser mais generoso e proporcionar um maior grau de protecção aos cipriotas. Mas isso significaria quer mais expropriação (e agora a palavra é realmente apropriada) dos contribuintes nos países nórdicos, ou mais money-printing pelo BCE. E é neste ponto que muitos comentadores ou são míopes ou até mesmo hipócritas.

Recorrer a máquina impressora para cobrir qualquer excesso cometido pelos bancos e governos, não importando quão ultrajante ele tenha sido, tem de significar inflação e isso certamente prejudica todos os aforradores, incluindo aqueles com poupanças inferiores a cem mil euros. Achei particularmente irritante que muitos dos comentadores que agora posam como defensores do pequeno aforrador sejam geralmente os mais estridentes defensores da saída do euro, da emissão de novas e fracas moedas recorrendo à desvalorização para ganhar competitividade de curta duração - tudo medidas que defraudam o aforrador doméstico. Todos aqueles que persistentemente argumentam contra  a "austeridade" e clamam por mais estímulos, mais dívida, moedas fracas, inflação mais elevada, não se preocupam rigorosamente nada com os aforradores. Como Keynes famosamente sugeriu, pretendem matar a classe rentista [os que vivem de rendimentos], sejam os rentistas grandes ou pequenos. E agora alegam ser os defensores dos aforradores?

Claro, há excepções notáveis. No Telegraph de hoje, Jeremy Warner faz um bom trabalho explicando quão dispendoso tem sido o resgate dos bancos britânicos - e ainda o é - para os aforradores britânicos, especialmente, através de inflação mais elevada, de taxas de juros de zero por cento e do interminável alívio quantitativo . Eu também achei que a peça de Simon Nixon no Wall Street Journal de ontem foi informativa e equilibrada. Mas eles são a excepção.

Eu não sou amigo União Europeia e sinto-me desconfortável por me encontrar  numa posição em que tenho que defender as suas políticas, mas sinto que aqueles aspectos em que a União Europeia é mais violentamente atacada nos media - a "austeridade, o ter deixado a Grécia incumprir, ainda que parcialmente, o resgate dos depositantes - são-me particularmente sensíveis pois estas políticas, pelo menos em princípio, estão baseadas no reconhecimento dos principais problemas subjacentes não procurando um conforto de curto prazo através do recurso a políticas enganosas e prejudiciais de infindáveis transferêncas fiscais e de sessões de money-printing.

Detlev Schlichter, 19-03-2013

2 comentários:

JS disse...

Sólidos argumentos de um de outro lado.
Jesús Huerta de Soto é (quase) exaustivo e convicente.
Mas o facto é que mesmo estando mergulhados na "disciplinadora" ZonaEuro nada evitou a "indisciplina" do executivo local.
PS.- Porque não têm a coragem de substituir o apodo "Banco de Portugal" por "Delegação Regional do Banco Central Europeu"?. Seria muito mais didáctico.
rrrrrrrrr fiuuuuu

Eduardo Freitas disse...

Caro JS,

A questão, evidentemente, é a de se especular sobre qual seria o resultado para os cidadãos dos países cujos governos são, de modo sistemático, financeiramente irresponsáveis, se estivessem fora de uma zona monetária que, apesar de todas as imperfeições, constitui uma limitação de actuação para esses governantes. O "céu não é o limite".

Isto independentemente, repito-me, de também estar muito longe, de facto nos antípodas, do projecto político que os que criaram o euro pretenderam.

Cumprimentos.