sábado, 29 de setembro de 2012

O Boykinism, o novo Macarthismo

Andrew J. Bacevich é um antigo coronel do exército americano que, após abandonar a carreira das armas  viria a dedicar-se ao estudo das matérias relativas às relações internacionais e, em particular, da política externa norte-americana. No texto, longo, publicado na American Conservative, sob o título Boykin’s World ("O mundo de Boykin"), Bacevich introduz-nos ao "Boykinism" doutrina que lhe parece ser "um novo macarthismo, mas mais perigoso que o antigo". Do meu ponto de vista, um artigo bem importante para a compreensão dos contornos da Guerra Global contra o Terrorismo por parte dos EUA. A tradução, algo livre, é minha.
Primeiro veio o alarido sobre a "mesquita no Ground Zero". Depois, foi o pastor Terry Jones, de Gainesville, Flórida, que conseguiu manchetes enquanto promovia o "Dia Internacional da Queima do Corão". Mais recentemente, tivemos um americano que publicou um insultuoso vídeo anti-muçulmano na internet com toda a agitação que se lhe seguiu.

Durante tudo isto, a posição oficial dos EUA manteve-se fixa: o governo dos Estados Unidos condena a islamofobia. Os americanos respeitam o Islão como uma religião de paz. Os incidentes sugerindo o contrário são o trabalho de uma pequena minoria de loucos, promotores de ódio e que apenas procuram publicidade. Entre os muçulmanos de Benghazi a Islamabad, este argumento tem provado ser difícil de vender.

E não sem razão: embora possa ser reconfortante tomar os surtos anti-islâmicos nos EUA como o trabalho de um grupo de fanáticos, o quadro é na realidade muito mais complicado. Essas complicações, por sua vez, ajudam a explicar por que a religião, outrora considerada um activo da política externa, se tornou, nos últimos anos, num passivo líquido.

Comecemos com uma breve lição de história. Do final dos anos 40 aos finais dos anos 80, quando o comunismo fornecia a abrangente fundamentação ideológica ao globalismo americano, a religião figurou, com proeminência, como tema da política externa dos EUA. A antipatia comunista em relação à religião ajudou a investir na Guerra Fria uma política externa consensual de uma notável durabilidade. O facto de que os comunistas serem ateus bastou para os colocar numa posição para além do admissível. Para muitos americanos, a Guerra Fria derivou a sua clareza moral da convicção de que se estava numa competição que colocava os tementes a Deus contra os que O negavam. Como estávamos do lado de Deus, parecia evidente que Deus deveria retribuir o cumprimento.

De tempos a tempos, durante as décadas em que o anticomunismo forneceu muito do espírito animador da política dos EUA, os estrategistas judaico-cristãos de Washington (não necessariamente, eles próprios, crentes), partindo da proposição teologicamente correcta de que os cristãos, judeus e muçulmanos adoram todos o mesmo Deus, procuraram recrutar muçulmanos, por vezes de convicções fundamentalistas, para a causa da oposição aos ímpios. Um exemplo especialmente notável foi a guerra soviético-afegã de 1979-1989. Para infligir dor nos ocupantes soviéticos, os Estados Unidos lançaram todo o seu peso por trás da resistência afegã, denominada em Washington de "combatentes da liberdade", e canalizaram ajuda (via sauditas e paquistaneses) aos religiosos mais extremistas de entre eles. Quando esse esforço resultou numa pesada derrota soviética, os Estados Unidos celebraram o seu apoio aos Mujahideen afegãos como prova do génio estratégico. Foi quase como se Deus tivesse anunciado um seu veredicto.

E todavia, sem que tenham passados assim tantos anos sobre a retirada soviética sob derrota, os combatentes da liberdade transformaram-se em Talibans ferozmente anti-ocidentais, proporcionando um santuário para a Al-Qaeda enquanto esta conspirava para atacar os Estados Unidos.


Com o lançamento da Guerra Global contra o Terrorismo, o islamismo sucedeu ao comunismo como o corpo de crenças que, a não ser controlado, ameaçava varrer todo o mundo, com consequências desastrosas para a liberdade. Aqueles que Washington tinha armado como "combatentes da liberdade" tornaram-se então nos mais perigosos inimigos da América. Assim acreditaram ou quiseram acreditar pelo menos os membros do establishment de segurança nacional, deste modo restringindo qualquer discussão adicional sobre se o globalismo militarizado representava realmente a melhor abordagem para a promoção dos valores liberais à escala global ou até se serviriam os interesses dos EUA.

No entanto, como slogan, uma guerra contra o islamismo apresentava dificuldades desde o início. Por mais que os responsáveis políticos se esforçassem para evitar que o islamismo, se fundisse, na mente popular, com o próprio Islão, um número significativo de americanos - quer os genuinamente com medo, quer os pobres de espírito - viu isto como uma distinção sem diferenças. Os esforços da administração Bush para contornar este problema ao formular a ameaça pós-11/9 sob a rubrica "terrorismo" falharam em última análise porque o termo genérico não oferecia explicação para o motivo. Por muito que a administração torcesse e virasse, o motivo neste caso parecia ligado a matérias de religião.

Exactamente onde situar Deus no pós-11/9 na política dos EUA representava um verdadeiro desafio para os responsáveis políticos, especialmente para George W. Bush, que acreditava, sem dúvida sinceramente, que Deus o havia escolhido para defender a América, no momento de perigo máximo. Ao contrário dos comunistas, longe de negar a existência de Deus, os islamitas abraçam Deus com uma ferocidade surpreendente. Com efeito, nas suas denúncias virulentas dos Estados Unidos e ao perpetrarem actos de violência anti-americana, eles apresentam-se audaciosamente como nada menos que agentes vingadores de Deus. Ao enfrentarem o Grande Satã, afirmam estar fazendo a vontade de Deus.

Travando uma guerra em nome de Jesus

É este debate sobre quem realmente representa a vontade de Deus que as sucessivas administrações de George W. Bush e Barack Obama têm cuidadosamente procurado evitar. Os Estados Unidos não estão em guerra contra o Islão per se, insistem as autoridades americanas. Ainda assim, entre os muçulmanos no estrangeiro e não obstante os repetidos desmentidos de Washington, a suspeita persiste e não sem razão.

Consideremos o caso do tenente-general William G. ("Jerry") Boykin. Enquanto ainda estava no activo, em 2002, este oficial do Exército altamente condecorado falou, de uniforme, numa série de cerca de 30 reuniões em igrejas durante as quais deu a sua própria resposta à famosa pergunta do presidente Bush: "Por que razão nos odeiam?" A perspectiva do general diferia marcadamente do seu comandante-em-chefe: "a resposta é porque somos uma nação cristã. Nós somos odiados porque somos uma nação de crentes."

Noutra ocasião, o general recordou o seu encontro com um senhor da guerra somali que alegou beneficiar de protecção de Alá. O senhor da guerra estava a iludir-se a si próprio, declarou Boykin, e tinha a certeza que iria obter a sua merecida retribuição: "Eu sabia que o meu Deus era maior que o dele. Eu sabia que o meu Deus era um Deus real e o dele era um ídolo." Como uma nação cristã, Boykin insistiu, os Estados Unidos só conseguiriam superar os seus adversários se "formos atrás deles em nome de Jesus."

Quando as observações de Boykin chamaram a atenção da grande imprensa, choveram denúncias das mais altas instâncias, com a Casa Branca, o Departamento de Estado e o Pentágono a apressaram-se a dissociar a Administração do ponto de vista do general. No entanto, indicações subsequentes sugerem que, mesmo que de uma forma crua, Boykin estava realmente a expressar perspectivas partilhadas por mais do que apenas alguns de seus concidadãos.

Uma dessas indicações surgiu imediatamente: apesar do furor, o general manteve o seu importante cargo no Pentágono, como subsecretário adjunto da defesa para as informações, o que sugeriu que a administração Bush tivesse considerado como menor a sua transgressão. Talvez Boykin tivesse falado despropositadamente, mas o seu delito não era caso para despedimento. (Apenas podemos especular sobre o destino provável de um oficial de alta patente que ousasse dizer do primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu: "o meu Deus é um Deus real e o dele é um ídolo.")

Um segundo indicador surgiu na sequência da sua reforma do serviço activo. Em 2012, o influente Family Research Council (FRC, "Conselho para a Pesquisa da Família"), em Washington, contratou o general para seu vice-presidente executivo. Dedicado ao "avanço da fé, da família e da liberdade", o Conselho apresenta-se a si próprio como enfaticamente cristão. Os eventos do FRC atraem, regularmente, pesos pesados do Partido Republicano. A organização faz parte da corrente dominante conservadora tanto quanto, digamos, a American Civil Liberties Union [ACLU]faz parte da corrente dominante liberal de esquerda.

Portanto, o facto de o CRF contratar alguém como seu director de operações que, como Boykin, defende vincados pontos de vista relativamente ao Islão, é algo de assinalável. No mínimo, aqueles que recrutaram o antigo general aparentemente não encontraram nada de especialmente censurável na sua visão de mundo. Eles não viram nada de politicamente arriscado na sua associação a Jerry Boykin. Ele é um dos seus. Mais provavelmente, com a sua contratação o FRC pretendeu enviar um sinal: nas questões em que o seu novo director de operações alegou experiência - à cabeça, sobre guerra -, a evidência do politicamente incorrecto tornava-se numa virtude. Imagine-se a NAACP [Associação Nacional para o Desenvolvimento das Pessoas de Cor]a escolher para seu presidente nacional, o líder da Nação do Islão, Louis Farrakhan, desse modo apoiando as suas opiniões sobre a raça, e ficar-se-á com a ideia.

O que a adopção pelo FRC do general Boykin deixa claro é isto: desconsiderar as manifestações de islamofobia imputando-as apenas ao trabalho de uma insignificante franja americana é um erro. Tal como sucedeu com os partidários do senador Joseph McCarthy, que durante os primeiros tempos da Guerra Fria viam comunistas em cada secretária do Departamento de Estado, os que se envolverem nessas acções ousam expressar abertamente atitudes que outros, em muito maior número, também alimentam silenciosamente. Dito de outra forma, o que os americanos nos anos 1950 conheceram como macarthismo reapareceu agora na forma do Boykinism.

Os historiadores diferem, de forma apaixonada, sobre se o macarthismo representou uma perversão do anti-comunismo ou se foi a sua expressão mais verdadeira. Assim, também hoje em dia os observadores vão discordar sobre se o Boykinism representa uma resposta meramente fervorosa ou totalmente demente quanto à ameaça islamita. E no entanto uma coisa é indiscutível: assim como o jovem senador de Wisconsin, na sua época áurea, encarnou uma estirpe não-trivial da política americana, o mesmo sucede com o ex-guerreiro-de-operações-especiais que se transformou num "ministro ordenado com uma paixão para espalhar o evangelho de Jesus Cristo."

Como principal expoente do Boykinism, as opiniões do antigo general têm uma semelhança notável com as defendidas pelo falecido senador. Como McCarthy, Boykin acredita que, enquanto os inimigos para além dos portões da América constituem grandes perigos, o inimigo interno é uma ameaça ainda maior. "Eu estudei as insurreições marxistas", declarou num vídeo de 2010. "Era parte do meu treino. E as coisas que eu sei que foram feitas em todas as insurreições marxistas estão sendo levadas a cabo na América de hoje." Explicitamente comparando os Estados Unidos governados por Barack Obama com a União Soviética de Stalin, a China de Mao Tsé-Tung e a Cuba de Fidel Castro, Boykin mantém que, sob o pretexto da reforma da saúde, o governo Obama está secretamente a organizar uma "força policial que irá controlar a população na América." Essa nova força está, segundo ele, concebida para ser maior do que o exército dos Estados Unidos, e funcionará exactamente como os camisas castanhas de Hitler uma vez levaram a cabo na Alemanha. Tudo isso se desenrola diante dos nossos inocentes e desavisados olhos.

Boykinism: O novo macarthismo

Quantos americanos aprovaram a visão conspirativa de McCarthy da política nacional e mundial? É difícil saber ao certo, mas foi o suficiente para ganhar em Wisconsin a reeleição em 1952, por uma confortável maioria de 54% contra 46%. O suficiente para espalhar o medo nos corações dos políticos que estremeciam ao pensar em McCarthy apontando-lhes o dedo por serem "suaves para com o comunismo".

Quantos americanos apoiam os pontos de vista comparavelmente incendiários de Boykin? Uma vez mais é difícil dizer. O suficiente para convencer os financiadores e simpatizantes do FRC para o contratarem, confiantes de que isso iria lustrar, e não manchar, a imagem da organização. Certamente que Boykin de forma alguma prejudicou a sua capacidade de atrair a direita doméstica. A recente "Cimeira dos Valores dos Votantes" do FRC incluiu notáveis como o candidato republicano à vice-presidência, Paul Ryan, o antigo senador republicano e candidato presidencial Rick Santorum, o líder da maioria na Câmara, Eric Cantor, e a Congressista Michele Bachmann, juntamente com o próprio Jerry Boykin, que leccionou os participantes sobre "Israel, o Irão e o futuro da Civilização Ocidental." (No início de Agosto, Mitt Romney reuniu-se privadamente com um grupo de " proeminentes sociais-conservadores ", incluindo Boykin).

Significará a aparição no pódio do FRC que Ryan, Santorum, Cantor e Bachmann, subscrevem os princípios essenciais do Boykinism? Não mais do que aqueles que exploravam o momento macarthista para a sua própria vantagem política (como Richard Nixon, por exemplo) necessariamente concordavam com todas as acusações temerárias de McCarthy. E todavia, a presença de líderes republicanos num programa do FRC de apresentação de Boykin, certamente sugere que não encontram nada de especialmente censurável ou politicamente prejudicial para a sua visão de mundo.

Ainda assim, as comparações entre O macarthismo e o Boykinism só vão até aí. O senador McCarthy causou estragos principalmente na frente doméstica, instigando a caça às bruxas, destruindo carreiras, e atropelando os direitos civis, enquanto conferia à política norte-americana uma atmosfera de circo ainda mais marcada do que o habitual. Em termos de política externa, o efeito do macarthismo, se aconteceu, foi reforçar um consenso anti-comunista já existente. Os comportamentos disparatados de McCarthy não criaram inimigos no exterior. O macarthismo apenas reafirmou que os comunistas eram realmente o inimigo, ao mesmo tempo que tornou o preço político de pensar de forma diferente demasiado alto para que pudesse ser contemplado.

O Boykinism, ao invés, faz com que o seu impacto se sinta no exterior. Ao contrário do macarthismo, não espalha o medo nos corações dos incumbentes na campanha eleitoral. Procurar o apoio do general Boykinou ou provocar a sua ira provavelmente não irá determinar o resultado de qualquer eleição. Contudo, nas suas várias manifestações, o Boykinism fornece os gravetos que ajudam a sustentar o sentimento anti-americano no mundo islâmico. Ele reforça a crença entre os muçulmanos de que a guerra global contra o terror é realmente uma guerra contra eles.

O Boykinism confirma o que muitos muçulmanos já estão preparados para acreditar: que os valores americanos e os valores islâmicos são irreconciliáveis. Os presidentes americanos e secretários de Estado mantêm os pontos do seu discurso, elogiando o Islão como uma grande tradição religiosa e apregoando as acções militares passadas dos EUA como tendo (ostensivamente) sido realizadas em nome dos muçulmanos. Porém, com a sua credibilidade entre os iraquianos, afegãos, paquistaneses e outros no Grande Oriente Médio a níveis perto do zero, eles estão mijando contra o vento.

Enquanto um número significativo de americanos não comprar o argumento ideológico construído para justificar a intervenção dos EUA no mundo islâmico - que a sua concepção da liberdade (incluindo a liberdade religiosa) é, em última análise, compatível com a nossa - então nem os muçulmanos o farão. Nesse sentido, os partidários do Boykinism, que rejeitam essa proposição, encorajam os muçulmanos a fazerem o mesmo. Isso assegura, por extensão, que aumentar a dependência da força armada como instrumento privilegiado da política dos EUA no mundo islâmico irá agravar os erros que produziram e definiram a era pós-11/9.

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